A colonialidade no Direito

07/03/2016

Por Fernanda Frizzo Bragato - 07/03/2016

A forma como o poder é apropriado e exercido ainda segue a lógica do padrão colonial estabelecido na modernidade, mais precisamente desde a conquista da América pelos ibéricos passando pelo controle territorial global empreendido por outras nações europeias, dizem Enrique Dussel, Anibal Quijano e vários pensadores do chamado giro descolonial. A modernidade foi a idade da hegemonia europeia sobre o resto do mundo à custa de relações de poder advindas do controle das formas de produção econômica (trabalho e recursos naturais), de construção do conhecimento (ciência como única forma legítima de saber) e da essencialização e hierarquização das identidades subjetivas (raça e gênero como elementos centrais de negação de humanidade). O fato de continuarmos a viver sob a égide da matriz colonial de poder denota que embora o colonialismo tenha praticamente chegado ao fim, é a colonialidade que marca as relações de poder contemporâneas. O poder afirma-se basicamente por meio do controle da economia, mas curiosamente os pobres e os ricos, ainda que não possam ser divididos a partir de critérios meramente geográficos, residem nas fronteiras simbólicas habitadas por quem controla e vivencia o discurso sobre o que são as melhores e mais corretas visões de mundo e sobre quem é capaz de capitaneá-las. Todas as formas de racismo, machismo e xenofobia pressupõem uma ideia de superioridade de um grupo que tem em comum certa identidade sobre outro, considerado inferior, pois desafia, com seu modo de ser e estar no mundo, o padrão de excelência ditado por quem tem poder de definir o certo e o errado de acordo com seus próprios interesses. Descolonizar implica, basicamente, romper com o monopólio de produção de discursos sobre concepções epistemológicas, antropológicas, políticas e históricas que priorizam, respectivamente, as ideias de conhecimento científico, racionalismo/humanismo, liberalismo e progresso e que, necessariamente, convergem para o capitalismo. De acordo com este ideário, conhecimento é ciência, homem é sujeito racional, sociedade é liberal e história é trajetória rumo ao progresso. Esse conjunto de concepções não apenas se tornou hegemônico, mas se converteu no padrão universal para a análise de qualquer realidade e em proposições normativas que definem o dever ser de forma universal. Qualquer estrutura, instituição, organização ou sistema pode, portanto, ser colonizado; basta operar de forma a perpetuar o conjunto de ideias que dá sustentação ao exercício do poder de matriz colonial. Basta negar a pluralidade e o valor de formas diferenciadas de ser e de se relacionar com o mundo, mantendo excluídos e estigmatizados diversos grupos e sujeitos. Em geral, a mídia, a universidade, as polícias e o Direito estão colonizados. Digo “estão”, porque poderiam não estar, ainda que esta seja uma perspectiva utópica. Mas aqui nos interessa basicamente o Direito. O Direito é o sistema de normas que regula ações, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito; cria obrigações e concede direitos de acordo com uma determinada visão de mundo. Essa visão pode ser realmente compartilhada pelos afetados que entendem ser esta a melhor forma de conduzir suas vidas, mas como falamos anteriormente é improvável que assim seja. O Direito tem funcionado, historicamente, como a garantia de exclusão de certos grupos e sujeitos, a exemplo da forma de proteção da família a partir de um critério absolutamente monológico. Assim, há demandas cujo reconhecimento dependem, em algum grau, da descolonização jurídica, como é o caso das demandas por direitos de pessoas homossexuais. Reivindicações como o casamento gay trazem muitas discussões sobre se seu reconhecimento judicial é uma transgressão da lei ou uma incorporação das demandas excluídas a um modelo normativo já existente e adaptado a realidades que não necessariamente refletem a das relações homossexuais. Muitas decisões judiciais que reconhecem o casamento gay esforçam-se por encontrar similitudes entre as situações de casais hetero e homossexuais, como um pressuposto para reconhecer o direito dos últimos. Não há, em verdade, o reconhecimento da diferença, mas a busca por semelhanças, o que torna mais fácil operar as demandas de grupos inadaptados segundo a lógica de poder que o Direito reproduz. Não se muda o Direito, apenas se fazem concessões como forma de controlar futuras demandas que desafiam demais os valores sociais que interessam a quem detém podem. Isso demonstra que a lei poderia subverter a ela própria, incorporando padrões das demandas que ela mesma excluía, no entanto, em relação a grupos desconformes ao padrão, costuma-se integrar demandas aos modelos dominantes já instituídos, por meio da extensão do princípio da igualdade (aqui tenho em mente o modelo teórico de Nancy Fraser de ações afirmativas e transformativas). O Direito mantém-se fiel a sua lógica excludente, mas faz concessões por meio da equiparação com o grupo de comparação (neste exemplo, os casais heterossexuais), como forma de manter um limite tolerável nas reivindicações destes grupos que não se encaixam nos modelos protegidos pela lei. Ou seja, continua colonizado. A descolonização jurídica passa, assim, pela visibilidade e valorização do que comumente consideramos atípico ou excêntrico, o que, por si só, desafia a monológica colonial que preside a distribuição dos bens e dos ônus sobre as pessoas de acordo com sua identidade e seu modelo de vida. De qualquer forma, o Direito amarra-se à colonialidade quando nega a existência deste direito de ser e de viver de forma diferente do padrão consagrado e protegido e se apega aos mitos de superioridade moral e epistemológica criados na modernidade colonial.

Fernanda Fizzo Bragato. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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