A COLETA DE PERFIL GENÉTICO COMO FORMA DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL SOB A ÓTICA DO "NEMO TENETUR SE DETEGERE" E DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI Nº 12.654/12

11/10/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Nos últimos dias, foi intensa a repercussão sobre o desfecho do caso Rachel Genofre. Em 2008, o corpo da menina de nove anos foi encontrado dentro de uma mala em Curitiba, com sinais de violência sexual e estrangulamento. Agora, passados mais de onze anos desde o início das investigações, um suspeito foi identificado com base no cruzamento de dados do Banco Nacional de Perfis Genéticos[1].

A criação do Banco Nacional de Perfis Genéticos tem como marco jurídico a Lei n. 12.654 de 2012, que alterou a Lei de Execuções Penais para acrescentar em seu texto o artigo 9º-A, cuja redação determina que os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer crime hediondo sejam submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico.

Em acesso a esse banco de dados, a Polícia Civil do Paraná comparou os materiais genéticos encontrados no lençol que envolvia o corpo de Rachel Genofre com o DNA de milhares de condenados. O homem identificado como autor do crime pelo exame de comparação genética jamais fora apontado como suspeito. Apesar de viver em rua próxima à casa da vítima, seu perfil genético somente foi submetido à perícia em razão de ostentar condenações criminais prévias.

A princípio, o caso Rachel Genofre parece ter sido efetivamente solucionado. Ainda que tardiamente, o crime foi desvendado com o apoio da prova técnica, a exemplo do que acontece em vários episódios de CSI ou Law & Order. Mais que isso, pode-se dizer que, finalmente, seus familiares encontraram resposta definitiva para a pergunta que faziam há mais de década.

Todavia, colocada de lado a satisfação moral por ver, finalmente, identificado e responsabilizado o autor de crime tão reprovável, deve ser analisada – processualmente – a licitude da prova obtida a partir da coleta obrigatória de material genético que é imposta pela Lei n. 12.654 /12 a determinados tipos de condenados[2].

Sabe-se que são ilícitas aquelas provas colhidas “com infração a normas ou princípios de direito material – sobretudo de direito constitucional[3]. Igualmente conhecida é a importância do princípio da não-autoincriminação ou nemo tenetur se detegere, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo.

Apesar de não expresso no texto da Constituição de 1988, o princípio foi consagrado na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8º, 2, g), ratificada pelo Brasil em 1992, onde é garantido o direito da pessoa de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Feitas essas colocações iniciais, pergunta-se: é lícita a prova pericial produzida a partir de material genético coletado sem a autorização do indivíduo, que teria – ao menos em tese – o direito de não produzir contra si nenhuma prova de caráter incriminatório?

Historicamente, a doutrina processual penal se divide sobre esse assunto. Aury Lopes Júnior[4] e Antônio Magalhães Gomes Filho[5] entendem que deve ser assegurado ao indivíduo o direito de não colaborar com as investigações e de não fornecer provas que possam ser utilizadas em seu desfavor.

Por outro lado, Maria Elizabeth Queijo[6] observa serem possíveis limitações ao nemo tenetur se detegere, desde que previstas em Lei e observado o princípio da proporcionalidade. Para a autora, haveria uma divisão entre as intervenções corporais invasivas e as não invasivas, sendo que para a obtenção de material genético por meio indolor e sem a cooperação ativa do indivíduo, não seria necessário o consentimento.

Esse parece ser o entendimento adotado também pelos Tribunais Superiores. Em julgamento recente[7], o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em caso no qual o DNA do suspeito foi coletado em material descartado por ele após refeição, que não haveria que se falar em violação ao nemo tenetur se detegere porque a saliva seria parte do corpo humano desintegrada a ele, podendo ser apreendida e submetida a exame normalmente, sem nenhum tipo de consentimento do agente:

“5. No caso, entretanto, não há que falar em violação à intimidade já que o investigado, no momento em que dispensou o copo e a colher de plástico por ele utilizados em uma refeição, deixou de ter o controle sobre o que outrora lhe pertencia (saliva que estava em seu corpo). 6. Também inexiste violação do direito à não autoincriminação, pois, embora o investigado, no primeiro momento, tenha se recusado a ceder o material genético para análise, o exame do DNA foi realizado sem violência moral ou física, utilizando-se de material descartado pelo paciente, o que afasta o apontado constrangimento ilegal. Precedentes. 7. Partes desintegradas do corpo humano: não há, nesse caso, nenhum obstáculo para sua apreensão e verificação (ou análise ou exame). São partes do corpo humano (vivo) que já não pertencem a ele. Logo, todas podem ser apreendidas e submetidas a exame normalmente, sem nenhum tipo de consentimento do agente ou da vítima.”

Há, todavia, significativa diferença entre o material genético colhido sem o consentimento do indivíduo e aquele conteúdo cuja cessão ao Estado lhe é imposta exclusivamente pelo fato de ter sido condenado por determinado tipo de crime.

Na primeira hipótese – e no caso retratado julgado pelo STJ – o sujeito não se viu obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. É certo que não foi consultado e não concordou com o exame de DNA, mas não houve – de sua parte – a produção de provas contrárias aos seus próprios interesses.

Por outro lado, a determinação inserida no artigo 9º-A da Lei de Execução Penal, alterada pela Lei 12.654/12, obriga ao condenado o fornecimento de seu material genético, que pode ser utilizado contra ele a qualquer momento – inclusive para investigações que sequer estão em curso no momento da coleta.

Mais que isso, a referida obrigatoriedade estaria vinculada à mera condição pessoal do sujeito, apenado por crime violento ou hediondo. É como se, por ter sido condenado uma vez, fosse suspeito para sempre, carregando consigo eterna e constantemente o estigma penal.

Verifica-se, nesse cenário, a violação não somente do nemo tenetur se detegere – na medida em que impõe ao condenado a produção de provas que podem vir a ser utilizadas contra seus interesses no futuro – mas também da presunção de inocência, consagrada no processo penal moderno como garantia dos direitos fundamentais do imputado frente ao poder punitivo do Estado[8].

Importante, nesse aspecto, relembrar que durante a Inquisição, eram realizados registros sobre todos os presos e acusados, exatamente com o objetivo de otimizar o procedimento de identificação criminal e partir do pressuposto de que uma vez criminoso, sempre perigoso[9]

As críticas, todavia, não se limitam ao contexto de inadequação da Lei 12.654/12 à processualidade democrática, estendendo-se os questionamentos até o campo da bioética, especialmente no que se refere aos aspectos funcionais e estruturais, de segurança dos dados, tempo de permanência no sistema e privacidade dos dados genéticos[10].

Nesse contexto, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos[11] “busca promover a integração dos valores éticos às questões sociais, sobretudo em questões que envolvam populações em situações de vulnerabilidade, além de destacar a importância que estes valores devem exercer na promoção do bem-estar dos cidadãos e no desenvolvimento científico e tecnológico”[12].

Como apontam Célia Marques e Elias Abdalla, alguns dos princípios da bioética explicitados no texto da Declaração Universal se relacionam diretamente à controvérsia do arquivamento de perfis genéticos em base de dados para fins de identificação criminal.

Os autores destacam, nesse sentido, a autonomia, prevista no artigo 5º e considerada como a autodeterminação e o direito de usar o próprio corpo de acordo com os interesses pessoais; o consentimento, estabelecido no artigo 6º como imprescindível para qualquer intervenção preventiva, diagnóstica ou terapêutica; da privacidade, constante no artigo 9º e que garante o direito de não ver, sem seu consentimento, divulgadas informações sobre sua intimidade; e da igualdade e da vedação à discriminação e estigmatização, expressas nos artigos 10ºe 11 como a vedação a tratamento desigual entre seres humanos, especialmente quando direcionados a determinado indivíduo ou grupo.

Do mesmo modo, Marques e Abdalla fazem referência à Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos[13], da qual extraem-se os seguintes princípios:

ARTIGO 7º: (a) Deverão ser feitos todos os esforços no sentido de impedir que os dados genéticos e os dados proteómicos humanos sejam utilizados de um modo discriminatório que tenha por finalidade ou por efeito infringir os direitos humanos, as liberdades fundamentais ou a dignidade humana de um indivíduo, ou para fins que conduzam à estigmatização de um indivíduo, de uma família, de um grupo ou de comunidades.

ARTIGO 8º: (a) O consentimento prévio, livre, informado e expresso, sem tentativa de persuasão por ganho pecuniário ou outra vantagem pessoal, deverá ser obtido para fins de recolha de dados genéticos humanos, de dados proteómicos humanos ou de amostras biológicas, quer ela seja efetuada por métodos invasivos ou não-invasivos, bem como para fins do seu ulterior tratamento, utilização e conservação, independentemente de estes serem realizados por instituições públicas ou privadas. Só deverão ser estipuladas restrições ao princípio do consentimento por razões imperativas impostas pelo direito interno em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos.

A leitura desses dispositivos conduz à conclusão de que a Lei 12.654/12, além de negar vigência aos princípios constitucionais que asseguram a presunção de inocência e a não-autoincriminação, também é incompatível com as Declarações Universal de Bioética e Internacional sobre Dados Genéticos, ambas elaboradas com a colaboração do Estado brasileiro e às quais deveria, em tese, se comprometer.

Por sua vez, o Banco Nacional de Perfis Genéticos, alimentado com dados coletados sem o consentimento dos indivíduos e tão-somente em razão do status de condenado, está longe de representar o avanço científico que aparenta.  Parte, na verdade, da estigmatização do criminoso e da mesma tendência delinquente defendida por Cesare Lombroso ainda no século XIX.

Não se pode, todavia, ignorar a importância da prova pericial para a solução de investigações criminais. Apesar de não ser prova absoluta, oferece inegável contribuição em casos como o de Rachel Genofre. Inadmissível, contudo, que o desfecho dessas histórias dependa da extração ilícita e compulsória de material genético, direcionada a um grupo minoritário de pessoas consideradas indesejáveis e perigosas.

 

Notas e Referências

[1] Mais detalhes sobre o caso estão disponíveis em: < https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2019/09/19/suspeito-de-matar-rachel-onofre-e-identificado-quase-11-anos-depois-do-crime.ghtml>. Acesso em: 30 set. 2019.

[2] Cumpre registrar que a matéria é tema de Repercussão Geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ainda pendente de julgamento. Nesse sentido, veja-se: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319797>. Acesso em: 30 set. 2019.

[3] Para estudo mais aprofundado do tema, sugere-se: AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas Ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. São Paulo: Saraiva, 2019.

[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 13ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

[5] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

[6] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do “nemo tenetur se detegere” e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003.

[7] STJ, Habeas Corpus n. 354.068/MG, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, 13/03/2018.

[8] Nesse sentido: MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al derecho procesal penal del enemigo. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. p. 17.

[9] Alguns exemplos podem ser encontrados no Arquivo Nacional português, disponível em: <https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2299704> Acesso em: 30 set. 2019.

[10] MARQUES, Célia; ABDALLA, Elias. Banco Nacional de Perfis Genéticos Criminal: uma discussão bioética. Revista Brasileira de Bioética, v. 8, n. 1-4, p. 31-46, 2012.

[11] Disponível em: < Alguns exemplos podem ser encontrados no Arquivo Nacional português, disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf> Acesso em: 30 set. 2019> Acesso em: 01 out. 2019.

[12] MARQUES, Célia; ABDALLA, Elias. Banco Nacional de Perfis Genéticos Criminal: uma discussão bioética. Revista Brasileira de Bioética, v. 8, n. 1-4, p. 31-46, 2012.

[13] Disponível em: < Alguns exemplos podem ser encontrados no Arquivo Nacional português, disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_inter_dados_genericos.pdf> Acesso em: 30 set. 2019> Acesso em: 01 out. 2019.

 

 

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