A colaboração premiada na Lei 12.850/2013 e o Processo Penal de Emergência

07/07/2016

Por Luís Eduardo Colavolpe - 07/07/2016

1. INTRODUÇÃO

Em tempos de penalização exacerbada, provocada pela crença equivocada de que o Direito Penal e tudo o que a ele se associa são capazes de arrefecer os ânimos da sociedade, destacam-se dois fenômenos do contexto em referência: a expansão da justiça negocial, em especial a colaboração premiada, e o retrocesso no âmbito das garantias processuais e constitucionais.

Este último vem sendo ocasionado devido ao tratamento equivocado para com as questões de política criminal no Brasil. É que cada vez mais intensamente ouvem-se encômios proferidos por parte de setores do poder legislativo e meios de comunicação, aos chamados discursos de emergência.

Eis aqui o problema: a colaboração premiada, tem se mostrado terreno fecundo para a amplificação destes discursos no âmbito do Processo Penal. Apesar de não se tratar de um novel instituto, a colaboração premiada vem passando por freqüentes alterações nas duas últimas décadas, em especial no que tange a amplitude do rol de crimes por ela abarcados; razão pela qual, preocupação incide para os defensores de um Direito Penal subsidiário e de um Processo Penal de garantias.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A COLABORAÇÃO PREMIADA. 

A colaboração premiada consiste em um benefício que pode prever uma significativa diminuição, ou até mesmo a extinção da pena para o acusado que cooperar com a investigação. Para tal, o colaborador deve, espontaneamente, prestar informações e satisfazer os requisitos impostos pela legislação específica. Pode-se exemplificar: quando o colaborador aponta a presença de co-autores e participes no que tange a organizações criminosas, no fornecimento de dados que favoreçam a libertação do seqüestrado em casos de extorsão mediante seqüestro e na localização de valores quando tratar-se de lavagem de capitais.

A colaboração premiada poderá ser extrajudicial ou judicial. Na modalidade extrajudicial, o acordo colaborativo será feito na fase preliminar das investigações e pode ser firmado com Ministério Público ou com o Delegado de Polícia, necessitando de posterior homologação judicial pelo juiz competente, em atenção ao princípio do juiz natural.

Em sua forma judicial, figuram como legitimados apenas o colaborador, seu defensor e o Ministério Público. O juiz (evidentemente) não interfere no processo de negociação entre as partes, contudo para que produza eficácia, esta também pende de homologação do magistrado.

Nesta senda, insta constar que em qualquer das modalidades supramencionadas, o colaborador poderá arrepender-se do acordo firmado e retratar-se perante autoridade judiciária competente. Pode-se vislumbrar tal entendimento em transcrição de trecho do HC 120.454, relatado pela Ministra Laurita Vaz, senão vejamos:

Não obstante tenha havido inicial colaboração perante a autoridade policial, as informações prestadas pelo Paciente perdem relevância, na medida em que não contribuíram, de fato, para a responsabilização dos agentes criminosos. O magistrado singular não pôde sequer delas se utilizar para fundamentar a condenação, uma vez que o Paciente se retratou em juízo. Sua pretensa colaboração, afinal, não logrou alcançar a utilidade que se pretende com o instituto da delação premiada, a ponto de justificar a incidência da causa de diminuição de pena. (STJ, HC 120.454 Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 23/02/2010, T5 - QUINTA TURMA)  

Outra questão fundamental para o estudo da colaboração premiada refere-se à natureza jurídica das provas obtidas. Isto porque, as informações coletadas com os colaboradores não possuem nenhum valor comprobatório isoladamente, mas sim se estiverem cotejadas com as respectivas provas, nessa perspectiva Gustavo Badaró e Pierpaolo Cruz Botini afirmam:

Embora na delação premiada o delator confesse a sua participação nos delitos, isso por si só não será suficiente. É necessário, também, que a declaração seja acompanhada de outros elementos que corroborem o seu conteúdo. A delação isolada, não corroborada por outros meios de prova, não é suficiente para fundamentar uma sentença condenatória (BADARÓ; BOTTINI, 2014, p.174-175)

Porém, deve-se levar em consideração as reflexões de MANZINI, ao criticar a atribuição de valor testemunhal as declarações do colaborador. Para o autor, proceder desta forma perpassa as razões de moralidade nas investigações, mas facilita as freqüentes, tentativas de vingança, extorsões e chantagem de terceiros, além de asseverar não ser possível a presumir do colaborador a mesma liberdade moral que se propõe a testemunha (MAZINI apud BADARÓ; BOTTINI, 2014, p.173).

2.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO 

O sobredito instituto tem origem controversa na doutrina pátria. Para BITTAR, a inspiração para o modelo colaborativo adotado no Brasil advém unicamente do modelo italiano, embora pondere que a legislação italiana seja mais completa e abrangente, diferente da legislação brasileira a qual considera falha e lacunosa. (BITTAR, 2011, p.226-230)

Em outra linha, defende GEDER GOMES que apesar da colaboração premiada ser perceptível no Brasil a partir das ordenações filipinas, para o autor, o atual modelo utilizado no Brasil foi influenciado pelos modelos adotados nos Estados Unidos (bargain), França, Inglaterra, Espanha, Itália, entre outros (GOMES,2009, p.77-79). Posição esta que é acompanhada por Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato (BITENCOURT; BUSATO, 2014, p.116).

2.2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEI 12.850/2013 

A lei 12.850/2013, também conhecida como lei de organizações criminosas, dispõe sobre a investigação, meios de prova, infrações penais correlatas e o respectivo procedimento criminal a ser aplicado no âmbito das organizações criminosas.

O referido diploma infraconstitucional, que já completa dois anos de existência, trouxe modificações polêmicas e de constitucionalidade discutível, uma delas em relação ao instituto da colaboração premiada.

Como já dito anteriormente, a colaboração premiada consiste em um benefício que pode prever uma significativa diminuição, ou até mesmo a extinção da pena para o acusado que cooperar espontaneamente com as investigações. Contudo, os respectivos requisitos para adesão ao sobredito instituto na lei 12.850/2013 vêm sendo duramente criticados por parte da doutrina, a exemplo de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Cezar Roberto Bittencourt e Rômulo Moreira. Isto porque, princípios balizadores do judiciário e do Estado Democrático de Direito, como moralidade, ampla defesa e o Nemo Tenetur Se Detegere, foram flexibilizados em prol de uma maior facilidade para o Estado executar a persecução penal e sua ambição punitiva.

Nesta perspectiva, questiona-se acerca do real caráter voluntário da colaboração. Esta condição encontra-se expressa no art. 4º, caput do texto normativo, porém não se pode afirmar que o arrependimento da justiça premial se assemelha ao arrependimento já existente em outras leis penais, destaca BEIRAS.

Em primeiro lugar, há de se apontar que o “arrependimento” do sujeito a premiar, não é nem muito nem menos o arrependimento “espontâneo” que sempre existiu nas legislações penais ordinárias. Muito pelo contrário, trata-se de um arrependimento “calculado”. E, semelhante “calculo” se verifica sobre a base de medir os benefícios – processuais penológicos ou penitenciários – que o “arrependido” pense que pode obter. (BEIRAS, 2012, p.106)  

Em outro giro, cabe ressaltar as observações de Manuel Monteiro Guedes Valente acerca da legalidade e legitimidade da prova, e também no que diz respeito à condução da investigação criminal a luz dos princípios fundamentais. Este pontifica que:

Perigos maiores sobressaem quando o meio de obtenção da prova já por si só acarreta a desconfiança da legalidade e legitimidade (...) a investigação criminal, baseada no respeito da dignidade da pessoa humana, deve ser entendida como um pilar fundamental não só para o aprofundamento dos valores de solidariedade e da democracia, mas também para o exercício do valor supremo de justiça:a liberdade. (VALENTE, 2014, p.388-391)

Trata-se de valores preciosos ao Estado Democrático de Direito, razão pela qual, a controvérsia aludida ganha relevante destaque. Isto porque com a justificativa baseada na defesa social, em especial no que tange ao “princípio do interesse social e do delito natural” (BARATTA,2011, p.42), o processo elucidativo do delito é conduzido ao patamar de Processo Penal de Emergência, conceito que será trabalhado posteriormente.

2.3 INCONSTITUCIONALIDADES DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEI 12.850/2013

Um dos principais questionamentos opostos a Colaboração Premiada na Lei 12.850/2013, está relacionado ao óbice do exercício da ampla defesa. Isto porque, depois de colhidos os dados com o colaborador, estes deverão seguir para a homologação do magistrado que terá quarenta e oito horas para decidir. Contudo o acesso aos autos se restringirá ao Ministério Público, ao Delegado de Polícia e ao Magistrado, sob a justificativa de eficiência da investigação, Necessitando à defesa, de autorização do juiz para ter acesso aos autos para exercer o contraditório.

Diante do caso em tela, com base no Art. 5º, LV/ CF “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” e na súmula vinculante 14, “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”, não se pode perceber congruência entre o que dispõe o texto infraconstitucional e a Constituição Federal. Nesta querela, remete-se ao voto do Ministro Cezar Peluso no HC 88190, senão vejamos:

4. Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob o risco do comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. (...) Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício. (...) 5. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade dos investigados (...) não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais acusados, para impedir o acesso aos autos, importa restrição ao direito de cada um do envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito ao seu constituinte." (STF, HC 88190, Relator Ministro Cezar Peluso, Segunda Turma, julgamento em 29.8.2006, DJde 6.10.2006)

Outro ponto bastante controverso no diploma legal aludido, é a renúncia obrigatória do colaborador ao direito ao silêncio e a prestação do compromisso de dizer a verdade, descrita em seu art. 4º, §14.

O Direito ao silêncio encontra-se insculpido na Constituição Federal no seu art. 5º, LXIII (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (...)), ressalte-se que tal dispositivo aplica-se tanto aos indivíduos com a liberdade constrita, como (logicamente) aos indivíduos livres (LOPES JR.,2015, p.100).

Nesta senda, diverge-se aqui, da possibilidade jurídica de uma lei, independentemente de sua natureza, impor a qualquer indivíduo, a renúncia de um Direito Constitucional. Insta constar, que a violação aqui reportada não se limita apenas ao direito de silenciar, é a mitigação do (mais amplo) direito de não produzir provas contra si mesmo, também chamado de Nemo Tenetur Se Detegere, princípio este, fundamental para um Processo Penal de garantias. Para BITENCOURT e BUSATO:

(...) o dispositivo legislativo é claramente inconstitucional enquanto obriga (ou condiciona, o que dá no mesmo) o réu a abrir mão de um direito seu consagrado não apenas na constituição como em todos os pactos internacionais de Direitos Humanos. Afinal, o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de “colaborar” com a justiça,ou seja, na condição de colaborador. Afinal, interessa-lhe muito mais (é-lhe muito mais benéfico) uma sentença absolutória, que a aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração (BITENCOURT; BUSATO, 2014, p.134-135).

Ou seja, a obrigatoriedade da renúncia do direito ao silêncio, como requisito fundamental para se obter o benefício oferecido pela investigação, traduz-se em uma verdadeira coação estatal de modo a prejudicar a espontaneidade da colaboração. Importante que fique claro, que não se estar a afirmar aqui que o colaborador não possa abrir mão do seu Direito Constitucional, pelo contrário. Impende-se ressalvar que para o ato ser plenamente voluntário, a renúncia do direito ao silêncio jamais poderia vir através de qualquer imposição legal. 

2.4 A AMBIÇÃO INQUISITORIAL DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEI 12.850/2013

Ao passo em que se percebe um desequilíbrio entre acusação e defesa, em especial no que tange ao princípio da ampla defesa e do Nemo Tenetur Se Detegere, não pairam dúvidas que a colaboração premiada possui estrutura inquisitorial. Tal afirmação decorre da forte influência que a ideia de busca da verdade real no processo penal, exerce sobre o instituto.

A idéia de buscar a verdade real no processo penal se mostra incongruente com um processo penal de garantias e conseqüentemente com o sistema acusatório. Isso porque, tal ideia não passa de um senso comum teórico, uma justificativa desenhada para legitimar a máxima flexibilização dos limites investigativos. Para STRECK, a ideia de verdade real prova-se equivocada e contraditória com a mera observação da atividade forense, senão vejamos:

Ora, um simples olhar sobre a cotidianidade das práticas jurídicas aponta para o sentido contrário… Afinal, como se explicam tantas reformas de decisões do primeiro grau em sede recursal? Nem ao menos a fundamentação das decisões obedece o minumum constitucional. Na verdade, a “verdade” aparece apenas como artifício retórico, ou seja, ela é “utilizada” para fundamentar exatamente a “verdade formal”, porque o artifício é utilizado para dar um colorido material àquilo que é meramente formal e fictício. (STRECK, 2012, p.364-365)

Nesta seara, LOPES JR. segue a mesma linha quando pontifica que a “verdade real” não passa de um mito, que relacionado com idéias como “interesse público” e sistemas políticos autoritários; com a busca de uma verdade a qualquer custo e ainda com a figura do juiz-ator, que assume o papel do inquisidor, a relação entre verdade real e sistema inquisitório se dá de forma estruturante. (LOPES JR,2015, p.381)

No caso da colaboração premiada, a busca por provas e evidencias a qualquer preço, sob o pretexto de se alcançar a (mítica) verdade real, leva o investigador, mesmo que com a chancela da lei 12.850/2013, a suprimir garantias processuais e constitucionais.

Para FERRAJOLI, a ideia de uma colaboração premiada, rompe com o sistema acusatório, na perspectiva em que este promoveria a quebra do modelo triádico das relações processuais, degenerando o devido processo legal, vejamos em detalhes.

Agora é indubitável que o prêmio pela confissão e, mais genericamente, os benefícios concedidos ao processado pelo mérito acusatório antes que defensivo de seu interrogatório, rompem de raiz, o modelo triádico do processo; transforma o interrogatório no meio de inquisição e aquisição de provas; eliminam as possibilidades de contraditar as provas; fazem possíveis a falsificação das hipóteses acusatórias; e degradam a relação processual a um “Tête a Tête” inquisitório  onde  visando a confissão, o inquisidor-confessor, suprime o papel de antagonista da defesa, e extrai a prova da colaboração do inquirido. (FERRAJOLI apud BARATTA; SILBERNAGL, 1985, p.592-593)        

Como já visto anteriormente, não interessa a investigação se há uma motivação de chantagem, extorsão ou vingança entre o colaborador e o apontado, tampouco os métodos de obtenção das provas. Desta forma, torna-se tarefa hercúlea para a defesa contraditar uma prova que é introduzida ao processo com a falsa chancela de verdade absoluta.

3. PROCESSO PENAL DE EMERGÊNCIA.

Para se introduzir a temática do Processo Penal de Emergência, há de se fazer, em caráter preliminar, algumas diferenciações acerca do conceito aqui trabalhado, para posteriormente proceder às devidas delimitações.

Segundo CHOUKR, conceitua-se Emergência como aquilo que foge aos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade (CHOUKR,2002, p.5)

Ou seja, qualifica-se como Emergência o tratamento diferenciado do poder punitivo a uma seleção de demandas, que voltadas para um determinado estrato social destoam da procedência ordinária da conduta normativa

No entanto, quando trazemos o conceito de Emergência para o âmbito do Processo Penal nos deparamos com uma situação paradoxal. Explica-se: a “fuga aos padrões tradicionais” supramencionadas por CHOUKR nos conduz a dois caminhos conflitantes, o retributivo e o restaurativo.

O Processo Penal de Emergência, sob a ótica retributiva, consiste na flexibilização de garantias processuais e a imposição de condições mais restritivas para um determinado estrato do contingente, diferenciando-os dos demais, no intuito de simbolicamente apresentar uma resposta ao clamor social.

Neste sentido, aponta-se que apenas através do Direito Penal do inimigo ou de terceira velocidade, torna-se possível a existência do Processo Penal de Emergência sob a ótica retributiva. Isto porque, é justamente a persecução a esses inimigos sociais que justifica a aludida emergência e as suas conseqüências. Nesta perspectiva, anotam EL HIRECHE e FIGUEIREDO que:

Efetivamente, o Direito Penal do Inimigo veicula o discurso de dominação perfeito em períodos de emergência, em que a sociedade clama por combate ao crime e aos criminosos, notadamente, a sociedade de riscos hodierna, quando se vê solapada por delitos graves ou pelo medo. Através do Direito Penal do Inimigo, a pretexto de combater os inimigos, o poder de punir transborda e os direitos e garantias das pessoas são engolfados por seus deletérios efeitos. Afinal, consoante esta linha intelectiva, não há limites para a obtenção de segurança, a um direito, em verdade, ao combate, um direito do combatente contra o inimigo. (EL HIRECHE; FIGUEIREDO,2015, p.156)    

Diferente análise se faz a partir da ótica restaurativa, nesta modalidade busca-se trazer a vítima para o protagonismo do processo penal, de modo a viabilizar o diálogo entre as partes, o arrependimento, a compensação e o perdão da vítima.

Levando em consideração que não há o que se falar em restauração para a análise a qual este trabalho se propõe, todas as menções referentes a Processo Penal de Emergência serão referentes a sua modalidade retributiva.

3.1 A (IN) COMPATIBILIDADE DO PROCESSO PENAL DE EMERGÊNCIA COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Aponta FERRAJOLI, que a mudança das fontes de legitimação da razão jurídica no Direito Penal, é representada por idéias de emergência. Estas funcionam como justificativa política da mudança das regras do jogo, de modo a sobrepor a razão do Estado sobre a razão jurídica. Esta sobreposição equivale a um princípio normativo de legitimação da intervenção punitiva, não mais jurídica, mas sim, imediatamente política, desta forma não estando vinculado a lei e as garantias. (FERRAJOLI,1984, p.271-272)

Neste gizado, impende-se recordar que as garantias do Processo Penal estão, implícita ou explicitamente, elencadas no texto constitucional, em especial protegidas no rol que constituem as chamadas cláusulas pétreas. Logo, não há o que se falar em legalidade e constitucionalidade de dispositivos de emergência, ressalvando os arts. 137 a 139/CF (que versam sobre Estado de Sítio), sob o risco de se constituir um Estado de Exceção.

Neste ponto, concorda-se com CANOTILHO quando afirma que “(...) não há qualquer fonte de legitimidade para regimes de excepção a não ser pela própria lei fundamental de onde resulta a inadmissibilidade do recurso a princípios ou razões extraconstitucionais para introduzir legalmente regimes de excepção.” (CANOTILHO,2003, p.1104)

Pode-se vislumbrar o afirmado supra, por exemplo, com base no posicionamento da Suprema Corte em relação à inconstitucionalidade do art. 2º, §1º da lei 8.072/90, lei de crimes hediondos. No dispositivo legal em questão, constava que os crimes hediondos, de trafico de drogas e entorpecentes, que envolvessem tortura e terrorismo, teriam, obrigatoriamente, seu regime de cumprimento de pena integralmente na modalidade fechado.

No entanto, foi concedida ordem de Habeas Corpus (HC 111.840/ES), para fins de revisão do regime aplicado (de fechado para semi-aberto), em favor de um indivíduo condenado a seis anos de prisão pelo crime de tráfico de drogas, declarando subseqüentemente, a respectiva inconstitucionalidade do dispositivo.

Para o STF, a impossibilidade de progredir de regime, geraria violação ao direito a individualização da pena, insculpido no art.5º, LXVI/CF. Neste caso, o controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal, desvela que independentemente da previsão legal atribuída à norma supressora, na perspectiva constitucional, esta não poderá ser eficaz.

Cabe recordar os ideais iluministas que permeiam a Constituição Federal, em especial seu art. 5º, e memorar que a própria concepção de Estado Democrático de Direito foi desenvolvida, também, com fulcro na idéia de transformar o Processo Penal mais justo e menos cruel para o acusado.

Neste diapasão, traz-se a lume a idéia do caráter subsidiário do Direito Penal ou Direito Penal a ultima ratio como balizador de um Processo Penal de garantias. A atuação do controle social para além do estritamente necessário, além de abusiva vai de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana. Convém colacionar aqui as lições de BECCARIA.

Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível, apenas a suficiente para induzir os outros a defendê-lo. O agregado dessas mínima porções possíveis é que forma o direito de punir. O resto é abuso e não justiça é fato, mas não direito. (BECCARIA, 2013,p.33)

Porém, com a expansão dos discursos de emergência, caminha-se para um inevitável retrocesso, no que diz respeito à proteção desses princípios constitucionais. Isso porque, apresentando o recrudescimento penal como solução miraculosa, o legislador, pressionado pela ilusão social da “leniência normativa” com a criminalidade, acaba aderindo a uma política pseudo-utilitarista, contudo altamente excludente.

3.2 O PROCESSO PENAL DE EMERGÊNCIA E A COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEI 12.850/2013.

Conforme já dito neste trabalho, a colaboração premiada não se trata de uma inovação do legislador brasileiro, pelo contrário, sua origem data de muitos anos (para alguns desde o Brasil colônia). Não obstante, a colaboração premiada na lei de organizações criminosas traz uma diferença crucial em relação aos outros diplomas.

Ao passo que em outras leis onde também se observa a presença da colaboração premiada, esta se reserva apenas a algumas condutas delimitadas, o mesmo não pode se dizer da lei 12.850/2013. Nesta não há limitações quanto à conduta delituosa praticada, desde que sua consumação esteja envolvida com alguma organização criminosa.

BARATTA e SILBERNAGL observaram que a regulamentação sobre o arrependimento prossegue e se destina a legalizar, de fato, um instituto experimentado na prática de repressão contra grupos terroristas. Ela é uma “juridificação” de negociações políticas realizadas fora do raio de ação da autoridade judicial, que assume assim, uma função de legitimação posterior (BARATTA; SILBERNAGL 1985, p.591)

Nesta perspectiva, aponta-se para o fenômeno da expansão do Direito Penal, onde em nome da “insegurança sentida” (SILVA SÁNCHEZ,2013, p.40), amplia-se a difusão da política do medo, e conseqüentemente, o alcance da supressão de garantias de forma exponencial, perpetuando institutos que se sustentariam na excepcionalidade.

Porém, a presença do caráter de emergência da norma aqui trabalhada, não se dá apenas devido a sua concepção. Na observância do conteúdo, nota-se claramente a presença de um subsistema processual, segregador e redutor.

Neste contexto, no que tange aos procedimentos, cabe trazer a baila o art.4º, §1º do texto normativo supracitado, onde o caráter emergencial do instituto é facilmente comprovado, senão vejamos: “Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração” (BRASIL,2013).

No Excerto acima, nota-se claramente a preocupação do legislador de apresentar uma “resposta a sociedade” (uma das principais justificativas dos discursos de emergência) como um dos requisitos primordiais para a concessão do benefício. Chama a atenção também à idéia de examinar a personalidade do colaborador, fazendo clara (e lamentável) remissão a Escola Positiva do Direito Penal.

3.3 O EFICIENTISMO PENAL OU PROCESSO PENAL DE RESULTADOS NO ÂMBITO DA COLABORAÇÃO PREMIADA.

No Brasil, o eficientismo ou processo de resultados, é uma característica mais relacionada aos ramos do Direito Privado, aonde acordos são incentivados com o intuito de por fim aos conflitos de forma célere, assim reduzindo o volume de processos em curso.

Não obstante, com as freqüentes movimentações de privatização do Direito Público, essa característica vem ganhando força neste ramo, em especial no Direito Penal e no Processo Penal.

De acordo com BARATTA, o eficientismo penal propõe-se a fazer de forma mais eficaz e mais rápida a resposta punitiva, limitando ou suprimindo garantias substancias e processuais que foram estabelecidas na tradição do Direito Penal liberal. (BARATTA,1998, p.30)

Para exemplificar o que foi dito anteriormente traz-se a baila a lei 9.099/95, lei de transação penal. Nesta, em busca de um Processo Penal mais ágil e apoiando-se no discurso jurídico do entendimento entre as partes, o Ministério Público negocia a atividade probatória e o direito de defesa em troca da continuidade do Processo Penal, e conseqüentemente uma eventual condenação. Neste contexto, observemos o posicionamento de PRADO.

Com efeito, a maximização de resultados com o menor esforço possível passou a ser um dos objetivos do processo penal brasileiro. Não basta, porém, afirmar que a perspectiva em questão é a de busca dos melhores resultados ao menor custo. É necessário decifrar a equação: “melhores resultados” e “menor custo” (PRADO,2015, p.65)

Apesar de que, para um Processo Penal de garantias, a observância de um prazo razoável faz-se altamente relevante, isso não significa dizer que o fato de um processo transcorrer em ritmo acelerado, as garantias das partes foram preservadas. Neste corolário, cabe colacionar o entendimento trazido por VALENTE, vejamos.

Consideramos que a propugnação de um processo penal célere que não garanta minimamente as garantias de defesa do indiciado/argüido configura uma situação de justicialismo, excepto se a concretização da celeridade processual nihilificar os direitos de defesa e transformar o indiciado em objecto ou coisa do processo, caso em que estaremos dentro do Direito Penal do Inimigo. (VALENTE, 2010.p.62)     

Espera-se do Processo Penal, sob a ótica do sistema acusatório, que este seja, também, capaz de ser um instrumento de defesa do acusado. No momento em que se sobrepõe a celeridade dos atos processuais ao direito de defesa, há um desvirtuamento estruturante no sentido deste, ao deixar de exercer a função de possibilitar o exercício das garantias constitucionais.

Não é o que acontece no caso da colaboração premiada. Esta, sob o signo da eficácia, permeada pelo discurso de emergência, tem na rapidez da aplicação de uma punição, um objetivo ser auferido no final do Processo Penal. Tal afirmação torna-se clarividente ao observar-se que o quão mais próximo da fase preliminar, o colaborador fornecer a informação para as autoridades, maior pode ser a sua recompensa.

A conversão do colaborador em mero objeto da relação processual somada a idéia de Processo Penal de resultados, fazem com que não restem dúvidas acerca do caráter inquisitorialista da justiça premial, esta que expelindo a dialética do Processo Penal, vende para a sociedade a idéia de um processo mais ágil e teoricamente melhor.

4. CONCLUSÃO 

A forte ascensão dos discursos de emergência, em especial no âmbito do Processo Penal tem trazido enormes prejuízos na seara das garantias processuais, conseqüentemente, pondo em xeque princípios constitucionais, entre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao adotar os discursos de emergência como base para criação de leis penais, o legislador não se compromete a tratar os problemas estruturantes da criminalidade, como os conflitos sociais, mas sim trava uma verdadeira cruzada contra os seus efeitos, ou seja, trata as conseqüências, mas não as causas.

Percebe-se que no Brasil, a colaboração premiada, que idealizada inicialmente para situações específicas e pontuais, tem se tornado um instrumento banal, cada vez mais presente em legislações extravagantes e aplicadas sem a suficiente justificativa, quer dizer, baseada na discricionariedade da investigação.

Observa-se também que a colaboração premiada na lei 12.850/2013 está repleta inconstitucionalidades, leve-se em consideração não ser possível um diploma infraconstitucional revogar dispositivos constitucionais.

Desta forma, conclui-se que a colaboração premiada nada mais é do que mais um instrumento do processo de subversão da ordem jurídica pela ordem política, trazendo uma alta carga ideológica e características inquisitoriais, nas quais reduz o Processo Penal a uma mera forma de legitimar os acordos.


Notas e Referências:

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais comentários à lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012. 2.ed. São Paulo: RT, 2014

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. 6.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011

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BEIRAS, Iñaki Rivera. Pena Criminal: Seus caminhos e suas possíveis formas. Trad. Denise Hammerschidt. Curitiba: Juruá, 2012

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BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada no Brasil e na Itália: Uma análise comparativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 88, v. 19, 2011. 225-270

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Luís Eduardo Colavolpe. Luís Eduardo Colavolpe é Pesquisador na área de Compliance e Cegueira Deliberada com estudos na Universidad de Sevilla e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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