A COERÊNCIA E INTEGRIDADE NAS DECISÕES JUDICIAIS: UM COMPARATIVO COM RONALD DWORKIN (PRIMEIRA PARTE)

14/02/2018

O atual cenário jurídico brasileiro, representado principalmente pelo Poder Judiciário, demanda uma análise cada vez mais aprofundada acerca da importância da coerência e integridade do Direito. Isso porque, de forma não rara, nos deparamos com sucessivas interpretações e decisões judiciais sobre um mesmo fenômeno que se destoam consideravelmente em suas conclusões.

Para alguns, tal ocorrência se deve ao fato da abertura principiológica no âmbito do Direito Constitucional com o advento da atual Constituição Federal. Por isso, Alessandra Damian Cavalcanti (2016) afirma que tal fenômeno pode ter causado em alguns a impressão de que o novo modelo autorizou maior discricionariedade no conjunto das decisões. Presente este contexto nebuloso, há que se pensar quais seriam os limites e eventuais parâmetros a serem observadores pelos membros do Poder Judiciário para com as decisões tomadas. Para fins deste estudo, limitaremos a abordar nossas proposições em observância à Teoria da Decisão Judicial proposta por Ronald Dworkin. Este estudo inicial (primeira parte) se limitará a fornecer o embasamento teórico fundamental como ponto de partida para a análise mais concreta do sistema brasileiro e do comportamento judicial contemporâneo (segunda parte).  

Não há dúvidas de que a ausência de um posicionamento consolidado em determinada matéria reflete diretamente no princípio da duração razoável do processo, que foi elevado ao status de garantia fundamental com a EC 45/2004 e encontra-se insculpido no art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal (também presente no art. 4º do CPC). Este efeito reflexo decorre do fato de que, havendo diversas controvérsias em determinado ponto, a tendência é de que os indivíduos se vejam mais estimulados a proporem novas ações judiciais com vistas a obter a decisão que melhor atendam aos seus interesses, o que certamente implicará no aumento do número de demandas e na redução, cada vez mais, da celeridade processual.

Diante deste cenário, fica evidente a necessidade de se promover em nosso país um adequado estudo de uma teoria da decisão, a qual, para fins deste estudo, faremos referências a Ronald Dworkin. Para o jurista, um dos principais ideais de justiça nas decisões é a observância da igualdade de consideração. Esta observância de igualdade irá refletir, inclusive, no próprio reconhecimento de legitimidade do Poder Judiciário ou de Tribunais em específico. Por isso, Luciano Fuck (2016) irá sustentar que a legitimidade e credibilidade de uma Corte decorrerá do seu comprometimento para com a volatilidade de suas decisões, pois em alguns casos seria impossível ao jurisdicionado prever se o entendimento anteriormente adotado será o aplicado novamente ou simplesmente ignorado em um futuro próximo.

Observando-se todo o contexto aqui apresentado, podemos chegar à Teoria da Integridade do Direito proposta por Ronald Dworkin. Para o renomado jurista, a integridade da ciência jurídica se fará presente através de dois aspectos, a saber: a) o aspecto legislativo, por meio do qual caberá ao Poder Legislativo a elaboração de normas que sejam moralmente coerentes; e b) o aspecto jurisdicional, por onde caberia ao Poder Judiciário uma coerência moral no exercício das atividades a ele inerentes.

Para que seja observada tal integridade no aspecto jurisdicional (o qual limitaremos a fazer referência), Dworkin propõe que as decisões judiciais sejam proferidas em estrita observância a uma interpretação moral e legal da comunidade, de modo que se vislumbre os precedentes e que o Direito teria sido criado por um único autor: esta mesma comunidade.

Por isso, a integridade seria visualizada, assim, conforme nos narra Alessandra Damian Cavalcanti (2016), através de princípios como equidade, justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, respeitando a ambição de uma comunidade de princípios. Em decorrência, a mesma autora, seguindo as teses de Dworkin, afirma que “os juízes devem basear suas decisões em princípios e não em política e os juízes não devem, em momento algum, fazer escolha entre suas próprias convicções políticas e aquelas que ele considera como as convicções políticas do conjunto da comunidade.”

Em nosso país, com o advento do novo Código de Processo Civil, alterações significativas ocorreram que importam na necessidade de uma análise mais aprofundada acerca da integridade. Já dissemos que a integridade, para Dworkin, seria a observância de princípios básicos de uma comunidade somado ao fato de que o sistema jurídico no qual estes estão inseridos foram elaborados por esta mesma comunidade. Pois bem. O atual CPC, em seu art. 926, assim dispõe: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Além disso, tivemos uma alteração significativa no que se refere a apreciação das provas pelo juiz, dada a redação do art. 371 do mesmo diploma legal que estabelece que “o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”. De acréscimo substancial, foi o art. 489, § 1º do CPC em que foram apresentados diversos parâmetros no sentido de não se considerar fundamentada uma decisão quando se fizerem presentes as hipóteses lá mencionadas. A partir de tais alterações, notamos a preocupação do novo sistema processual para com a integridade e coerência do Direito, conforme passaremos a mencionar.

Podemos aqui fazer menção às razões invocadas para a supressão da anterior regra do livre convencimento motivado, que foram bem sintetizadas pelo Deputado Relator do Projeto do novo CPC (Paulo Teixeira). O parlamentar sustentou que “embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais”. Por fim, concluiu que “filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito.”

Em decorrência deste modelo, Lenio Streck (2015) irá afirmar, com fundamento em Dworkin, que, em decorrência de nosso modelo de Constituição, os cidadãos passam a ter um direito “contra” o Estado, sendo que as normas constitucionais devem ser vistas no sentido de se limitar a atuação do Poder Público (exercendo uma função de controle), mas favorecendo-se os indivíduos. Por isso, o renomado jurista nos traz duas importantes razões para que se observe tal modelo: a) a primeira consiste no fato de que, por dispor de direitos, os tribunais devem garanti-los aos cidadãos; e b) a segunda se refere ao fato de que o processo, por ser uma questão de democracia, deve permitir a participação do indivíduo no sentido de se construir a decisão final, vez que somos autores e destinatários das normas existentes.

A proposta de Dworkin do Direito como Integridade objetiva superar dois modelos: o convencionalismo e o pragmatismo judicial. O primeiro advoga que um direito ou responsabilidade somente se faria legítima caso decorresse explicitamente de decisões anteriores, utilizando-se “métodos e técnicas convencionalmente aceitos pelo conjunto dos profissionais do direito”. O segundo modelo, por sua vez, propõe que os juízes podem tomar qualquer decisão que lhe pareça melhor para o futuro da comunidade, “ignorando qualquer forma de coerência com o passado como algo que tenha valor por si mesmo” (DWORKIN, 1999).

Para que tais modelos sejam de fatos superados, Dworkin (1999) oferece a concepção de Direito como integridade argumentando que ambos os modelos anteriormente mencionados devem ser negados, vez que a interpretação jurídica decorre de combinação de elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro. Adverte que as proposições jurídicas somente serão legítimas se decorrerem dos princípios anteriormente mencionados neste estudo (justiça, equidade e devido processo legal).

Toda essa tese defendida por Dworkin dá origem à metáfora “romance em cadeia”, exposta pelo jurista. Em dissertação sobre o tema, Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho (2008) nos explica que essa expressão representaria que “a interpretação construtiva do Direito, tomada na perspectiva do juiz, deve continuar a história da prática social ‘Direito’”.  Esse autor ainda nos fala que o juiz possui, segundo essa linha, a obrigação de continuar da forma mais digna possível a história do Direito, através da adequação e justificação, que seriam os principais cânones interpretativos.

Essa linha de raciocínio encontra perfeita harmonia com as atuais disposições do atual CPC (especificamente quanto ao art. 926), vez que, conforme extrai-se das teses de Dworkin, haveria supressão da tese do poder discricionário do juiz em face da atribuição de uma “força gravitacional às decisões passadas, o que também foi apresentado por Jorge Patrício (2008). Os reflexos dessas teses são claros: evita-se que uma parte seja surpreendida em decorrência de decisões eminentemente subjetivas, tendo em vista a necessidade de se ater a uma construção do Direito que não se desconecte de um conteúdo histórico e social (em acordo com os princípios de moralidade política da própria comunidade). Aqui uma advertência: quando falamos de moralidade política, não estamos fazendo referência à moralidade comum, mas àquela responsável pela própria instituição do projeto civilizacional em que o julgamento ocorrerá, conforme Lenio Streck (2014). Já fizemos referência neste estudo acerca do fato de que o juiz decidirá conforme a comunidade de princípios que institui a ordem jurídica.

A partir de todo o raciocínio aqui explicitado, com fundamento em Lenio Streck (2014), podemos conceituar os institutos da coerência e integridade, hoje presentes no art. 926 do CPC. Quando falamos de coerência, segundo nos afirma esse jurista, queremos dizer que somente haverá sua observância caso os mesmos preceitos e princípios sejam aplicados pelo Judiciário para os casos idênticos, ou seja, teríamos de ter presente a igualdade de consideração para com os mais diversos casos. De outro lado, a integridade, ainda com base nas teses de Lenio, poderia ser vislumbrada, em seu viés jurisdicional (como já apontamos neste estudo), na exigência de que “os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas”.

Concluindo este estudo, podemos dizer que a coerência e integridade, a partir de Dworkin, se fará presente caso se tenha uma atividade jurisdicional criativa e integrativa pautada pela redução de discricionariedades. Para tanto, deverá ser observado todo o histórico responsável pela origem de tais direitos e previsões legais. Em nosso país, não há qualquer dúvida acerca da correção deste novo formato advindo com o atual CPC, sobretudo em decorrência do rompimento de modelos e contexto oriundos com a Constituição de 1988. Ora, se antes tínhamos um cenário político pautado pela supressão de direitos e garantias fundamentais, hoje temos um novo modelo oriundo de uma Constituição democrática e com significativos avanços sociais (além de ser compromissória e dirigente). Diante disso, caberá ao Poder Judiciário a tarefa de velar pelos direitos e pela ordem democrática e constitucionalmente conquistada, afastando-se de atitudes discricionárias e subjetivas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVALCANTI, Alessandra Damian. O novo CPC e o Direito como Integridade. Revista Constituição e Garantias de Direitos. v. 9, nº 1. UFRN, 2016.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FILHO, Jorge Patrício de Medeiros Almeida. A Decisão Judicial na Teoria dos Direitos de Ronald Dworkin: em busca de uma aproximação da ideia de justiça e legitimidade na aplicação do direito. Dissertação de Mestrado. PUCRJ. 2008.

FUCK, Luciano Felício. Ampliação da idade de aposentadoria fortalece Poder Judiciário. Coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional no Conjur. Disponível em <http://idp.edu.br/imprensa/2741-2015-05-11-20-55-26/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2018.

STRECK, Lenio. O novo Código do Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas : o fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Biblioteca Digital do Senado Federal, 2015. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/512448/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2018.

________. “Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades?”. Conjur, 2014. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2018.

 

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