A COERÊNCIA E INTEGRIDADE NAS DECISÕES JUDICIAIS: A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS (SEGUNDA PARTE)

23/04/2019

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

O tema a ser aqui abordado constitui desdobramento do primeiro ensaio já publicado na Coluna Substractum a respeito da importância da coerência e integridade nas decisões judiciais (confira aqui).

Desta vez, abordaremos a hermenêutica constitucional de direitos fundamentais a fim de que não se incorra em eventuais desrespeitos ao escopo buscado pela chamada estabilização e uniformização da jurisprudência que, conforme passaremos a demonstrar, devem ser reconhecidos não só na esfera processual cível, mas também no âmbito de todos os demais ramos do Direito e, em especial, no criminal (com suas peculiaridades por óbvio).

Como sabemos, o vigente Código de Processo Civil buscou não apenas instituir de modo mais expresso um formato de processo constitucional, mas principalmente pela forte carga principiológica com que trouxe (a exemplo das normas contidas nos artigos 1º a 10), objetivou dar maior importância para a eficácia dos direitos fundamentais na ordem processual. Ora, não poderíamos pensar em uma plena concretização do acesso à justiça, efetividade do contraditório ou mesmo na devida fundamentação das decisões judiciais acaso a tarefa de manter uma ordem processual estável, íntegra e coerente fosse deixada de lado.

Nesta perspectiva, Fredie Didier (2017), ao fazer referência ao art. 1º do CPC que diz que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme a Constituição, nos aponta que “as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando em torno do devido processo legal.”

Já no campo processual penal, antes mesmos de tecer maiores considerações, primordialmente, deve-se ter em mente que atuação jurisdicional aqui tutela a liberdade individual e, por isso, merece contornos mais específicos, principalmente no que se refere aos direitos e garantias fundamentais que, frise-se, são inerentes e aplicáveis a todos.

Em decorrência de algumas posturas judicias que, não raramente, acabam por desconsiderar aqueles verdadeiros ideais pensados pelo garantismo jurídico de Ferrajoli, grandes juristas têm se pronunciado a respeito da necessidade de resguardo dos direitos e garantias fundamentais no campo processual penal.

Num cenário onde a corrupção na Administração Pública, as reiteradas práticas de violência nas ruas e abusos de poder tem ocupado espaço na mídia brasileira e em nosso cotidiano, notamos um “desejo” cada vez mais forte da população em um geral no sentido de que a punição dos infratores seja a medida aplicável, mas de forma rígida e, em muitos dos casos, até mesmo sem que considere direitos que são fundamentais. Na verdade, para muitos direitos fundamentais seria sinônimo de impunidade e, indo mais além, ainda há os que digam “direitos humanos para humanos direitos”. Talvez pensar nas atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial e todo o rompimento paradigmático com o Direito até então existente após seu contexto pode constituir um primeiro passo no sentido de “responder” tais argumentos que, por serem demasiadamente frágeis e despostos de qualquer conteúdo lógico mínimo, já nos traz a importância de reconhecer que os direitos fundamentais a todos devem ser reconhecidos, sobretudo em um Estado Democrático de Direito.

 Na verdade, toda essa manifestação social, somada ao que hoje se tem de “processo penal do espetáculo”, provém diretamente da moral e outros fatores afins, que são, aliás, chamados por Lenio Streck como “predadores externos do Direito”. Ora, a moral está presente de modo simultâneo à criação do Direito posto e jamais deve servir como elemento de correção do sistema jurídico, vez que se assim fosse, não poderíamos pensar em estabilidade, integridade e coerência.

Em importante colocação, René Ariel Dotti (2015) registrou que “um tipo de jurisprudência permissiva tem sido conivente com as decisões de instância inferior que desprezam os direitos e as garantias do cidadão envolvido em processo criminal como réu ou condenado” e arremata, com importantes palavras, dizendo que ‘a orientação subjacente nestes casos é a preocupação de salvar o trabalho já feito, apesar dos vícios que acarretam a nulidade, mas que não é declarada”.

A partir de todo este cenário, podemos afirmar que no atual modelo de processo a importância de uma fundamentação racional e de uma jurisprudência íntegra constituem fatores essenciais à própria condição de ser do que o renomado jurista Lenio Streck chama de resposta adequada à Constituição. Não por outro motivo, se deve a este autor a existência da norma insculpida no art. 926 do CPC que hoje se faz presente por decorrência de uma proposta de emenda por ele apresentada quando da elaboração do novo Código.

A respeito da proposta a ser aqui construída, George Marmelstein (2018) com bastante clareza, nos afirma que em um processo judicial não deve ser permitida a ocorrência de espaços para decisões irracionais, mas que, muito pelo contrário, estas devem ser construídas por intermédio de parâmetros aceitos pelo ordenamento jurídico e, mais especificamente, pelos valores constitucionais. O mesmo autor também afirma que acaso não haja transparência e objetividade na argumentação, “a hermenêutica dos direitos fundamentais pode se transformar numa verdadeira ‘caixa de Pandora’”, implicando, conforme defende, em uma desqualificação da qualidade das decisões.

Não poderíamos desconsiderar que, do ponto de vista hermenêutico, a coerência e integridade está relacionada com a própria ruptura da filosofia da consciência e com o giro linguístico. Tal conclusão pode ser alcançada acaso compreendamos a ocorrência da transferência do conhecimento para o próprio campo da linguagem. Ou seja, não estamos mais diante de um cenário onde a escolha de sentido seja proveniente do subjetivismo particular do julgador. Muito pelo contrário: a construção dos sentidos é diretamente proveniente da linguagem.

Importa, diante deste quadro, perceber que, de fato, a atividade interpretativa certamente implica na presença de pré-compreensões, as quais também constituem elemento prévio das manifestações humanas ainda que seja no campo da linguagem. Ou seja, o contexto de um mundo vivido estará atuando como se fosse uma espécie de estrutura de sentido e representa, inclusive, a própria condição de possibilidade deste discurso. Assim, a conclusão é de que o sentido não estará mais na consciência, mas sim na linguagem – que já está dada –, de modo que não se fala mais em um indivíduo isolado, mas sim em uma própria comunidade que até mesmo antecipa a constituição deste próprio sujeito (STRECK, 2017).

Na primeira parte deste estudo (aqui) tivemos como referência algumas importantíssimas proposições de Ronald Dworkin sobre a noção de um sistema judicial coerente. Registramos que pra ele uma das principais noções de justiça nas decisões é a observância da igualdade de consideração e que a construção da integridade se daria por meio da observância de um Direito criado por uma determinada comunidade. Por fim, foi apontado que a coerência seria a aplicação de uma igualdade de consideração para casos semelhantes e que a integridade seria “dizer o direito” por meio de uma análise do sistema como um todo, evitando-se arbitrariedades por ocasião da atividade interpretativa.

Perceba-se que as conclusões que apresentamos – seja pela “invasão” da filosofia da linguagem no campo da interpretação, seja pela necessidade de observância contínua da coerência e integridade – estão diretamente ligadas à importância do reconhecimento de que não caberá mais a um sujeito isolado (diga-se juízes, desembargadores, ministros, etc) dizer o que eles próprios entendem ser o direito (sendo, assim, sujeitos solipsistas). Longe disso, devemos procurar construir um sistema coerente e íntegro em que a proposta seja a maximização da chamada resposta adequada à Constituição (que hoje lamentavelmente parece não ser uma das maiores preocupações).

O próprio tratamento a respeito da presunção de inocência (por muitos referenciado como princípio da não culpabilidade) tem demonstrado, com bastante clareza, que os fatores externos ao Direito têm ganhado seu espaço no campo processual penal.

A exemplo, por diversas vezes, nossa Suprema Corte afirmou que seria inviável o cumprimento de pena sem que houvesse trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o que, aliás, não demanda maiores esforços interpretativos, visto que o art. 283 do CPP que estabelece que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” já é claro nesse sentido. Não bastasse, tal norma teve sua redação dada por meio da Lei nº 12.403 de 2011 e, portanto, tempo considerável após a CRFB/88. Hoje, porém, a discussão ainda será objeto de nova “análise” pela Corte, sendo que o tema ganhou destaque como decorrência da Operação Lava Jato, já que seria o “único meio” de “resguardar uma resposta criminal” aos infratores poderosos. Todavia, deixa-se de lado um sistema coerente de normas em prol de atender ao “clamor das ruas”. A questão é: o que seria propriamente essa moral pública? Como termos segurança jurídica e um sistema estável, íntegro e coerente quando temas tão sensíveis à própria Democracia ficam à mercê de processos de escolha tão subjetivos?

O tema, por ser extremamente complexo, não se encerra por aqui, sendo que certamente teremos a oportunidade de voltar a discuti-lo em nossa Coluna em momentos posteriores e por meio da análise de casos e decisões específicas.

            Por tudo o que pudemos expor, concluímos o presente estudo com as brilhantes palavras de Aury Lopes Júnior e Vítor Paczek (2019) em recente artigo publicado tratando a respeito da discussão do cumprimento de pena antes do trânsito em julgado

“A polissemia da linguagem não pode ser manipulada para reescrever a Constituição, atendendo à “voz das ruas”, sob pena de cairmos num ceticismo semântico autorreferente em que um cachorro pode ser chamado de gato, ou a Quaresma de Natal, ainda mais quando a finalidade é esvaziar uma ingênua crença de combate à impunidade”.

            A esperança que nos resta, assim, é que possa ser recupera a integridade e coerência em nosso modelo processual vigente, já que, como a muito se fala, o processo deve ser visto como forma de concretização do direito material e, neste sentido, distorções interpretativas e instabilidades decisórias quando, no mínimo, somente implicará na existência do que assim posso chamar de grave subsistema solipsista decisório que poderá colocar em xeque o próprio Estado Democrático de Direito (arduamente conquistado).

 

 

Notas e Referências

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017.

DOTTI, René Ariel. O Processo Penal Constitucional - Alguns aspectos de relevo. Gazeta do Povo. Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/rene-ariel-dotti/o-processo-penal-constitucional---alguns-aspectos-de-relevo-dp37vc8cc3yr3v4vgz1oxdkgv/>. Acesso em 07 de abril de 2019.

LOPES JR., Aury; PACZEK, Vítor. Assim como Quaresma não é Natal, trânsito em julgado não esgota jurisdição de 2º grau. Conjur. Publicado em 05 de abril de 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-abr-05/limite-penal-transito-julgado-nao-esgota-jurisdicao-segundo-grau/>. Acesso em 14 de abril de 2019.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.

STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? 6ª ed. rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.

 

 

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