A clausura do Direito e o repensar de conceitos na inquietude da codificação civil – Por Guilherme Wünsch

17/08/2017

As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos: o Direito das Obrigações, Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Trata-se da forma como a matéria foi disposta nas grandes codificações dos séculos XIX e XX, erigindo-se o sustentáculo desses quatro grandes ramos a partir da autonomia da vontade, da propriedade e da família. Como alude Lorenzetti, o Código constituiu-se em um reflexo da criação do Estado Nacional, cuja pretensão era ordenar as condutas jurídico-privadas dos cidadãos de forma igualitária; “uma só norma, aplicável por igual a todos os cidadãos, sejam nacionais ou estrangeiros”.[1]

O século XIX presenciou as mais profundas alterações no modo de se entender e de se realizar o Direito, especialmente no âmbito do denominado Direito Privado, dados o apogeu das grandes codificações. No século XX, por seu turno, é que a Ciência do Direito representou um espaço de “letargia relativa, desafiando as insuficiências do formalismo e provocando o discurso jurídico a ampliar as suas bases de incidência”.[2]

O dilema da Ciência Jurídica, mormente ao final do século XX, é o de estar diante de problemas e questionamentos novos, colocando os juristas, os intérpretes do Direito de frente ao desconhecido, mas buscando respostas e soluções. Nesse sentido, caberá uma escolha dentro de possibilidades: ou o Direito intensifica o seu discurso dialogando com outros saberes ou então se mantém praticando meros formalismos.

Em outras palavras, é descobrir se a realização do Direito dar-se-á ainda pela utilização de dois pilares referenciados por Canaris: a compartimentação do processo interpretativo-aplicativo e o método da subsunção. Na verdade, apresenta o autor a superação deste aspecto, porquanto é possível se pensar com precisão um esquema que funcione como alternativa aos modelos clássicos, baseando-se, igualmente, em dois pontos fundamentais, quais sejam, a unidade de realização do Direito e a natureza constituinte da decisão. Ou seja, é propor a realização do Direito a partir de um movimento circular, espiralado, em que se passa da interpretação à aplicação.[3]

O que se vislumbra é um complexo cenário de realização da ciência jurídica em decorrência de diversos fatores, tais como a crise na distinção entre o direito público e o direito privado – e, na verdade, a tomada de consciência da sua compenetração – a modificação nas condições sociais, dos costumes, dos estilos de vida, da própria legislação e dos valores fundamentais do ordenamento jurídico e, ainda, a complexidade e pluralidade das fontes jurídicas.[4] Dessa forma, as inquietudes e interrogações devem se comunicar com o Direito, para que nele não existam conceitos e categorias indiscutíveis.

O Direito Civil clássico demarca as suas fronteiras, evoca limites e edifica muros. Em seu interior, as coisas em geral se convertem na noção jurídica de patrimônio. Consoante leciona Fachin, a apropriação material pelo Código moderno pode preencher um vazio jurídico, contudo, sem simplificações, pode também atender a certas necessidades fundamentais de cada ser, havendo um desejável aporte finalístico que não se reduz à compreensão mecanicista dos bens e da própria vida, fazendo a ponte para a contemporaneidade. Essa adequada captação das fontes históricas pode revelar, no passado, origens interessantes de institutos fundamentais, como a propriedade, e aclarar o sentido e o alcance do nascedouro das famílias romano-germânicas ocidentais.[5] Sob tais condições apontadas pelo autor, emerge o signo linguístico que se eleva a preceito e governa pessoas e coisas, qual seja, o Código Civil, apto a dar linha no desenho do patrimônio e do crédito, valores informados pelo Código Civil de 1916, nucleados na tutela patrimonial, em que o sujeito e objeto ocupam espaço jurídico privilegiado na base das relações jurídicas, conquanto ao sujeito sempre se tenha reservado posição de destaque a partir da noção de pessoa, e, ao objeto, são dedicados princípios e regras que traçam o regime jurídico dos bens.

Ao explicar a relação entre homem e coisa, Paolo Grossi explicita que, já na doutrina italiana dos anos 1930, brotara a intuição elementar de que era hora de olhar a relação entre homem e coisas não mais do alto do sujeito, mas sim pondo-se ao nível das coisas e observando de baixo tal relação, sem preconceitos individualistas e com uma disponibilidade total para ler as coisas sem as lentes deformantes.[6] Nota-se que, após a ênfase do individualismo possessivo, opera-se um deslocamento do sujeito da noção de propriedade, reconstruindo-se a sua noção a partir de elementos objetivos, porém relativizados.

Grossi alerta que a propriedade é, seguramente, também um problema técnico “por debaixo, os grandes arranjos das estruturas; por cima, as grandes certezas antropológicas põem sempre a propriedade no centro de uma sociedade e de uma civilidade”. [7] A complexidade da atual paisagem jurídica obriga o jurista a atuar sobre um novo instrumento de observação, no sentido de ser o portador de um saber que emerge a fragmentação e multiplicação das fontes de produção do Direito. Como refere o autor em evidência, os indivíduos são todos chamados a “construir um novo edifício”[8], tomando como pedra angular aquela velha verdade elementar pisoteada e ocultada, segundo o qual o referente do Direito não está mais no Estado, mas na sociedade. Trata-se de um elementar e vital deslocamento na direção da marcha.

Relacionar o Direito com a sociedade significa corresponder à atual repugnância em relação a fronteiras que antes se mostravam intransponíveis, rumo a espaços fragmentados. Vive-se, hodiernamente, um momento em que as fontes do sistema tradicional do Direito retiram as certezas, provocam dúvidas, chamam-no a reordenar as suas categorias e invenções técnicas em um espaço não mais apenas físico, mas virtual, cujos efeitos sobre a soberania dos Estados, com suas fronteiras limitadas, são incapazes de controlar o ritmo frenético das mudanças. Nos dizeres de Carnelutti, “faz tempo que o direito vem perdendo, pouco a pouco, cada vez mais, sua dupla função de certeza e de justiça”.[9]

Se outrora as relações privadas podiam ser definidas dentro de um esquema eu-outro, como referido em linhas anteriores a partir da reconstrução da ideia de pessoa pela perspectiva da alteridade, hoje, constata-se que a virtualização da vida conduz a um esquema eu-alguém ou eu-indefinido ou até mesmo um alguém-alguém, em que se desconhecem as fronteiras fechadas de uma relação entre partes, no fortalecimento de uma relação que se mostra sem limites territoriais definidos, inclusive quando se consideram as relações de filiação. Como ensina Carbonnier: “Um resumo dos debates de hoje seria impossível, dada a diversidade de opiniões, e uma conclusão seria inadequada. […] O legislador não é surdo. Durante todo o dia, ele vai ter ouvido estas perguntas, estas injunções contraditórias. […] Não é fácil ser um legislador. Bonaparte, quando da elaboração do Código Civil, tinha experimentado a dificuldade de ser – em uma única pessoa – objeto e sujeito de uma vez. […] O esforço da inovação, que demanda hoje ao jurista, é fundamentalmente idêntica a que Bonaparte exigiu de seus colaboradores. Esta é a penetração dos novos modos de filiação dentro de nossa legislação. Onde estão os obstáculos? Primeiro, eles devem entender o direito de filiação, tomada em sua especificidade.”[10]

O que se percebe até aqui é que a mudança de paradigma tão propalada pelo Direito Civil, e que se irradia em todo o Direito Privado, parece colocar o intérprete-aplicador em uma posição nova, a de analisar os institutos clássicos que fundamentaram o tripé família, propriedade e contrato, dentro de uma esfera existencial, porque não podem mais permanecem aprioristicamente como limitadores da natureza da pessoa, que se projeta não apenas em sua individualidade, mas em uma coletividade, de onde não mais se verificam certezas na clausura de suas definições.


Notas e Referências:

[1] LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998. p.44.

[2] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. 4.ed. Lisboa:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p.IX.

[3] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. 4.ed. Lisboa:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p.CI et.seq.

[4] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.4-6.

[5] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.28.

[6] GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução: Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.4.

[7] GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução: Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.16-7.

[8] GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução: Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.113.

[9] CARNELUTTI, Francesco. A morte do direito. Adaptação e tradução: Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Editora Líder, 2004. p.7.

[10] Une synthèse des débats d’ajourd’hui serait impossible, étant donné la diversité des opinions exprimées, et une conclusion serait inopportune. […] Le legislateur n’est pas sourd. Toute la journée, il aura entendu ces questions, ces injonctions contradictoires. […] Il n’est pas facile d’être législateur. Bonaparte, lors de l’élaboration du Code Civil, avait éprouvé cette difficulté d’être – en une seule et même personne – objectif et subjectif à la fois. […] L’effort d’innovation demandé aujourd’hui au juriste est au fond identique à celui que Bonaparte réclamait autrefois de ses collaborateurs. Il s’agit de faire pénétrer de noveaux modes de filiation dans notre législation. Où sont donc les obstacles? Ils tiennent d’abord au droit de la filiation, pris dans sa spécificité. (tradução para a lingual portuguesa livre do autor) CARBONNIER, Jean. Écrits. Textes  rassemblés par Raymond Verdier. Paris: Presses Universitaires de France, 2008. p.71.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. 4.ed. Lisboa:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

CARNELUTTI, Francesco. A morte do direito. Adaptação e tradução: Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Editora Líder, 2004.

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução: Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998.

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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