A ciranda do MAB e a história de luta pela garantia de direitos dos atingidos/as por barragens  

06/07/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A trajetória de criação da ciranda infantil do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) perpassa pelo longo processo histórico da própria formação como uma organização social há mais de 30 anos no Brasil. Em síntese, o MAB surge como uma resposta de diversos povos atingidos pelo modelo energético brasileiro aos inúmeros impactos sobre suas vidas, os quais, a partir da percepção das suas próprias condições de atingidos e atingidas por barragens, articularam-se através de um movimento nacional de luta pela promoção, garantia e defesa dos seus direitos, contra a exploração dos territórios e modos de vida.

Para além dos impactos sofridos pelos trabalhadores deste setor que são explorados com as terceirizações e precarização das condições de trabalho e por toda classe trabalhadora consumidora que paga uma das tarifas mais caras do mundo, ao passo que mais da metade da matriz energética brasileira tem base hídrica, limpa, sustentável e com baixo custo de produção em relação aos demais países, em 2010, a comissão especial do então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), posteriormente substituído pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), publicou o relatório “Atingidos por Barragens” reconhecendo que a construção de barragens no país viola, pelo menos, 16 direitos humanos de forma sistemática, cujas consequências tem acentuado as desigualdades sociais já existentes nos territórios, agravando as situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual.   

Diante deste contexto, o MAB tem analisado de que forma este padrão vigente de violações de direitos tem afetado as crianças e adolescentes atingidos, tendo em vista que junto com as mulheres, idosos e portadores de necessidades especiais, constituem-se nos grupos vulneráveis a proteção especial. De acordo com o relatório mencionado, estes grupos tornam-se “vítimas preferenciais dos processos de empobrecimento e marginalização decorrentes do planejamento, implementação e operação de barragens” (CDDPH, 2010, p. 54).

Diante disso, vale ressaltar que as principais fontes que o MAB tem utilizado para identificar as violações de direitos que impactam a vida das crianças e adolescentes têm decorrido das próprias vivências das infâncias atingidas. São nas cirandas – espaços de educação popular para as infâncias atingidas por barragem que possuem proposta política pedagógica elaborada, organizada e desenvolvida por diversos educadores/as do próprio movimento – que as crianças compartilham suas experiências de vida, participam do processo formativo da luta popular e expressam suas demandas e percepções sobre os seus contextos de vida.

A organização da ciranda como espaço formativo e de luta por direitos humanos desenvolveu-se gradativamente, à medida que foi sendo compreendida e reconhecida como uma necessidade, sobretudo para que as mulheres e famílias pudessem participar das demais atividades do movimento. Deste modo, inspiradas em outras experiências de educação popular e infantil[1], MAB foi elaborando propostas pedagógicas voltadas para a realidade das crianças atingidas por barragens e percebendo a complexidade e potencialidade deste espaço.

No decorrer dos anos, a concepção sobre a ciranda passou de uma simples necessidade de espaço de cuidado para a defesa de um lugar de protagonismo das próprias crianças no processo de fortalecimento das suas identidades como atingidos/as. Além disso, as cirandas têm possibilitado às crianças e educadores a percepção e reflexão sobre as suas condições de vida diante dos impactos que sofrem nos contextos dos seus territórios, o que tem resultado na elaboração e reivindicação de demandas específicas das crianças que vão sendo incorporadas nas pautas e análises gerais do movimento.

Metodologicamente, a ciranda é organizada para crianças de 0 a 12 anos de idade[2] para as quais são elaboradas atividades didáticas e pedagógicas com linguagens adequadas às suas idades, diversidades culturais, étnicas e territoriais. Os encontros entre as crianças nas cirandas acontecem durante as atividades do MAB, ao mesmo tempo em que os adultos participam das plenárias, formações ou outras atividades do movimento. Os conteúdos e debates desenvolvidos nas cirandas “perpassam os elementos da história de luta e organização das populações atingidas, da organicidade do movimento, dos valores e princípios, da história do modelo energético, da construção do projeto energético popular e a da construção de uma sociedade sem desigualdades” (ANAB, 2017, p.35).

 

Como as violações de direitos humanos tem afetado a vida das crianças atingidas por barragens?

A partir das cirandas realizadas com crianças e alguns adolescentes atingidos/as nos diferentes contextos de atuação do MAB, os/as educadores/as populares têm identificado e sistematizado diversas denúncias de violações de direitos que as crianças, famílias e comunidades tem expressado. Algumas, decorrentes do padrão vigente já reconhecido peça CDDPH e outras específicas como nos casos dos crimes ambientais em Fundão/Mariana e no Córrego do Feijão/Brumadinho, em Minas Gerais, quando as crianças descreveram e representaram através de desenhos, cartas e entrevistas, diversos problemas psicológicos relacionados às perdas de familiares e choque diante das tragédias que marcaram suas vidas e desenvolvimento infantil. 

Em 2017, o MAB em parceria com a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens, a ANAB, publicou uma cartilha formativa para educadores populares, identificando pelo menos 8 violações de direitos que se expressam na vida das crianças e adolescentes durante os processos de implantação de barragens no Brasil. No documento, evidenciam-se violações:

  • Ao direito à participação nos espaços de tomada de decisão, posto que denunciam a falta de espaços que possibilitem a consulta e/ou a participação efetiva das crianças e adolescentes para que expressem seus interesses e necessidades aos órgãos de formulação dos estudos de impactos;
  • No direito ao reconhecimento como atingidos/as, uma vez que, para além de todas as mudanças e impactos sobre os seus modos de vida e desenvolvimento infantil, as crianças ainda são obrigadas a enfrentarem junto com os familiares a incerteza do reconhecimento como atingidos/as, o que garantiria a reparação dos impactos sofridos;
  • No direito ao acesso às políticas públicas diante dos fluxos migratórios desordenados e inchaço populacional nos territórios atingidos, os quais muitas vezes não contam com a ampliação do acesso às políticas públicas.

Neste último aspecto, quando se trata das violações específicas às crianças, adolescentes e jovens, de acordo com a o MAB, merecem destaque também as denúncias sobre a falta de acesso ao direito à saúde em contraste com os impactos ambientais que agravam doenças e problemas de saúde das famílias atingidas, e do direito à educação, como nos casos de fechamento de escolas do campo e filas de espera de vagas nas escolas e creches urbanas.

Na mesma direção, diante da mudança forçada dos territórios de pertença com os processos de realocação ou expulsão de famílias das áreas diretamente afetadas pelos empreendimentos, as crianças e adolescentes, em sua maioria pertencentes às comunidades tradicionais, perdem o direito aos laços socais e comunitários, tendo em vista que em muitos casos as crianças e famílias são forçadas a mudarem a dinâmica de vida e sustento, além de perderem o convívio com os parentes próximos, o que tem afetado diretamente a formação identitária e desenvolvimento das crianças.

Outro grande impacto sobre a vida das crianças atingidas relaciona-se ao direito à convivência familiar, considerando que, nos contextos de implantações de barragens, são recorrentes os casos de abandono de crianças e adolescentes pelos pais, os quais, diante do aumento do custo de vida ou das jornadas excessivas nos canteiros de obras das usinas, por vezes, precisam ampliar a jornada de trabalho e se ausentam da convivência familiar.

A partir das constatações apresentadas, com o crescente quadro de abandono, a falta de políticas e dos casos de desestruturação familiar, o MAB aponta ainda para a obrigação da garantia do direito à proteção integral das crianças e adolescentes atingidos/as, considerando os aumentos de casos de abuso e exploração sexual e gravidez na adolescência nos territórios atingidos e entre outros.  

 

De que forma a ciranda das crianças atingidas tem contribuído para a luta pela garantida dos seus direitos e para a transformação das suas realidades?

Um dos principais debates que tem sido provocado acerca dos impactos dos grandes empreendimentos de barragens na vida das crianças está relacionado a necessidade de reflexão e mobilização social para a garantida da constitucionalidade da proteção e atenção especial asseguradas a elas. Sobretudo, pelo fato de que tais normativas jurídicas que deveriam ser prioritárias, não estão sendo cumpridas nos processos de implantação de barragens.

Para além disso, o MAB tem reivindicado a regulamentação de uma Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB) para a garantia dos direitos de mulheres, homens, idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes atingidas por barragem com sua efetiva aplicação por parte do Estado e empresas envolvidas nos empreendimentos. Do mesmo modo que tem defendido que seja garantida a participação das crianças e adolescentes como protagonistas dos espaços decisórios. 

Vale ressaltar ainda que, diante das violações de direitos identificadas, que vão desde as que impactam os modos de vida à falta de acesso a políticas públicas, o MAB tem pautado que caso haja de fato necessidade da construção de obras, que sejam efetivadas políticas públicas capazes de elevar o nível da qualidade de vida das populações atingidas, além da destinação de recursos especificamente para o atendimento das demandas mesmas, assim como para programas e projetos destinados às crianças, adolescentes e jovens.  

Diante disso, consideramos que a ciranda do MAB tem sido fundamental neste processo, uma vez que tem abordado de maneira lúdica temáticas da luta dos atingidos e permitido a participação ativa das crianças na construção das ações que dizem respeito às suas realidades de vida, além de possibilitar a incorporação das temáticas e demandas próprias das crianças, suas pautas e reivindicações, principalmente as decorrentes da violação dos direitos humanos das infâncias dos/as atingidos/as por barragens.  

Vale destacar ainda que, diante da pandemia, o MAB tem avaliado a necessidade de refletir sobre os catastróficos impactos deste período de calamidade pública, crise econômica e social às crianças. De forma específica, percebe-se que a COVID-19 e o isolamento social têm afetado a fase do desenvolvimento infantil das crianças, a qual, para além dos riscos relacionados à saúde, tem sido marcada pelo aumento da ansiedade, depressão, negação do direito à educação, aumento de violência no contexto familiar e riscos à saúde mental. Ademais, constata-se que os impactos com a pandemia têm agravado as recorrentes violações de direitos pelas barragens na vida das crianças atingidas, resultando no aumento da pobreza, falta de moradia, redução da fonte de geração de renda e falta de alimentos para suas famílias.

Contudo, a partir da Ciranda Infantil do MAB, os/as educadores/as, através de mídias digitais e metodologias da educação popular, têm feito o acompanhamento das crianças nas regiões atingidas, organizado atividades didáticas, pedagógicas e lúdicas que estão sendo compartilhadas através de plataformas virtuais e biblioteca virtual de livros e materiais educativos da literatura popular[3].

 

Notas e Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. As crianças atingidas por barragens e a Ciranda Infantil. São Paulo: ANAB; SNDCA/MDH, 2017.

CONSELHO NACIONAL EM DEFESA DO DIREITO DA PESSOA HUMANA – CDDPH. Resoluções nº 26/26, 31/06, 01/07, 02/07, 05/07. Relatório da comissão especial “Atingidos por barragens”. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/sobreparticiipação-social/cddph/relatorio-c.e-atingidos-por-barragens>. Acesso em: 05 nov. 2015.

[1] As cirandas do MAB são inspiradas nas experiências educativas populares e do campo. Para o processo de formação dos coletivos nacionais e estaduais da ciranda do MAB, contou-se com o apoio de coletivos de educadores/as formados por estudantes da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas/SP) e Universidade Federal Fluminense (UFF), e de educadores(as) do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra).

[2] Em algumas realidades os adolescentes com mais de 12 anos têm participado do espaço da ciranda, no entanto, o coletivo de educadores/as tem avaliado a necessidade de pensar um espaço para este público, com metodologia e linguagem de acordo com suas especificidades.

[3] - As atividades desenvolvidas pela Ciranda do MAB no período da pandemia podem ser acessadas pelo link https://sites.google.com/view/povosatingidos/povos-atingidos-caixa-dos-saberes?authuser=0

 

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