A CHUVA

07/01/2024

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

E veio o trovão e depois o relâmpago e a chuva e, com ela, a inundação. Ficamos dias sem poder nos encontrar e sem ter notícias um do outro. Ficava olhando para a chuva que não parava de cair, pensando nela. Onde ela estaria naquele momento? O que ela estaria fazendo? No que ela estaria pensando? Não havia previsão para a chuva passar. Tínhamos planejado morar juntos, já tínhamos programado o dia exato, mas justamente naquele dia começou a chover e não parou mais. Como um fenômeno da natureza podia interferir no amor entre duas pessoas? Quando acordei, percebi que o céu estava nublado e, de repente, tudo escureceu. Ainda peguei um guarda-chuva que estava no armário, mas não deu tempo nem de sair. Inesperadamente começou a trovejar, relâmpagos rasgavam o céu e um temporal desaguou. A princípio, pensei que fosse passar logo: “É só uma chuva de verão”. Fiquei em pé na porta, com o guarda-chuva na mão, vendo a água correr forte na calçada, os raios cortarem os céus e os trovões que me ensurdeciam. Seria o fim do mundo? Não, não era, mas a chuva que caía me lembrava o dilúvio.

Nunca poderia imaginar que uma chuva iria atrapalhar um ano de planos e preparativos. Pensamos em tudo direitinho, planejamos juntos cada detalhe, mas nunca poderíamos imaginar que naquele dia, justamente naquele dia, caísse, de repente, um temporal como aquele. A energia foi embora, os telefones não funcionavam, fiquei ilhado e incomunicável. Então pensei que tudo iria passar, bastava apenas esperar a chuva parar, os trovões pararem, os relâmpagos pararem e tudo voltaria ao normal, então nos encontraríamos e seríamos felizes para sempre, como nos contos de fadas. Tudo voltaria ao normal, sim, esse seria somente um temporal como outro qualquer. Passou o dia e chegou a noite e a chuva não parava de cair.

Acabei dormindo no sofá da sala, esperando a chuva passar. Quando acordei, o dia já havia amanhecido, mas a chuva ainda não havia passado. Não estava tão forte como no dia anterior, mas ainda caía. Abri a porta e vi que algumas pessoas se movimentavam pelas ruas. Pude perceber também que, nas ruas abaixo da ladeira, as pessoas retiravam a água que havia entrado durante a noite. A minha casa ficava na parte alta da cidade. Então lembrei que ela morava na parte mais baixa e mais próxima ao rio. Logo a seguir, vi duas pessoas que passavam comentando que o rio havia alagado toda a parte baixa da cidade e que os moradores tiveram que ser retirados com urgência e levados para abrigos fora da cidade. Algumas famílias tinham ido embora para casa de parentes em cidades vizinhas. O desespero tomou conta de mim. Não, não podia ser, ela não teria ido embora, teria ficado, teria tentado entrar em contato comigo. Saí de casa desesperado, ia descendo a ladeira que dava acesso à parte baixa da cidade. Então parei, pensei que não devia me deixar levar pela emoção. Ela poderia estar lá com a sua família, arrumando as coisas. Resolvi me acalmar e ir averiguar o que havia realmente acontecido. No caminho, pedi mais informações e fiquei sabendo que todos os moradores da parte baixa da cidade tinham sido transferidos para alojamentos que foram improvisados no estádio da cidade. Algumas casas tinham sido levadas pela chuva; em outras, foram levados os móveis. Famílias tinham perdido tudo e algumas pessoas estavam desaparecidas, faltavam confirmar se estavam vivas. Na parte mais próxima do rio, havia acontecido uma verdadeira tragédia. Ela morava na parte mais baixa, mais próxima do rio. Não, não podia ser. Eu não queria ouvir mais aquilo. Aquela frase: “Na parte mais próxima do rio, havia acontecido uma verdadeira tragédia” ecoava em minha cabeça. Não conseguia pensar em outra coisa. De repente, senti uma tontura, como se fosse cair. Alguém encostou e perguntou o que eu estava sentindo. Eu respondi que estava tudo bem, mas outras pessoas encostaram e falavam que eu devia ir ao médico. Então, disseram que eu deveria sentar no passeio um pouco, até que passasse e, depois, fosse ao hospital. Outros curiosos foram chegando, passavam muitas pessoas que iam socorrer as vítimas das enchentes, e a falta de informação misturada com o imaginário popular fez com que eu me tornasse em pouco tempo uma das vítimas da enchente que estava passando mal. Outros diziam que eu tinha sido resgatado das correntezas do rio, tinham me dado roupas enxutas, mas ao tentar retornar para procurar os parentes teria sentido um mal-estar, vomitado, desmaiado e estava bastante fraco por ficar horas nadando contra as fortes correntezas. Não adiantava eu tentar explicar, diziam que eu não deveria fazer esforço algum, que iriam providenciar uma ambulância para me levar ao hospital. Eu dizia que estava bem, não precisava ir ao hospital, mas não adiantava. Havia muita gente conversando e não tinha como ninguém se entender. Eu ainda tentei me levantar, mas não deixaram. Trouxeram um calmante e me fizeram engolir sem que eu quisesse. Diziam que eu precisava me acalmar, que tudo ia terminar bem, havia uma equipe de resgate, toda a cidade estava empenhada em ajudar e a minha família também seria amparada, assim como eu fui salvo quase morrendo das fortes correntezas do rio.

Acordei no outro dia, numa cama de hospital. Tentei me levantar, mas a enfermeira disse que deveria esperar o médico que viria ver o meu estado. Caso ele me desse alta, eu poderia sair. Então eu disse que não estava sentindo nada, que não estava doente e ia me levantando para sair, quando ela me segurou e pediu que aguardasse, o médico não ia demorar. Também falou que é assim mesmo, que todos nós achamos que já estamos bons, mas depois que saímos nos sentimos mal etc. Só o médico poderia dizer se o nosso estado de saúde estava normal e eu teria que me conformar com isso. Eu dizia que estava bem, mas ao tentar me levantar, percebi que estava um pouco tonto, por causa dos remédios que havia tomado na noite anterior. O médico demorou para chegar. Todos estavam empenhados em ajudar as vítimas da enchente, que eram muitas. Centenas de pessoas tinham morrido e outras estavam em estado grave. Quando fui atendido, já era no final da tarde e, ao anoitecer, fui liberado. Saí totalmente angustiado e sem saber o que fazer. A chuva tinha retornado, aliás, soube depois que não tinha parado. A situação estava um caos. A cidade tinha sido levada pela correnteza do rio. Somente a parte alta estava intacta e todos procuravam por notícias de parentes e amigos. “Na parte mais próxima do rio, havia acontecido uma verdadeira tragédia”. Essa frase me fez ficar tonto novamente. Parei, sentei no chão e comecei a chorar.

Depois de mais uma semana de chuva, a cidade estava arrasada. Eu não tinha notícias dela. Resolvi ir embora, depois de muito procurar e não conseguir nenhuma informação. Fui para a capital, para a casa de uns parentes, que me receberam e também queriam saber notícias, pois não se falava outra coisa na TV e nos jornais. A chuva foi passando e o tempo também. Arranjei um emprego num jornal, pois tinha um primo que era editor. Todos os dias lembrava dela, ao tomar café no barzinho em frente à sede do jornal. Chegava pontualmente às 7:30h. Saía às 7:50h. Atravessava a rua, subia para a redação do jornal e esperava os colegas chegarem. Muitos anos se passaram. Não me casei, não tive filhos, vivi sempre sozinho. Morava num apartamento próximo ao trabalho. Raramente saía. Uma coisa não saía da minha cabeça. Aquela maldita frase: “Na parte mais próxima do rio, havia acontecido uma verdadeira tragédia”. Envelheci, mas aquela frase parecia ter sido dita ontem, estava ainda recente em minha cabeça. Um dia, não aguentei tudo aquilo. Saí, após o trabalho, sozinho, enchi a cara, me embriaguei tentando apagar para sempre aquela frase da minha cabeça. Acordei tarde, no outro dia, com uma enorme dor de cabeça e uma ressaca dos diabos. Saí correndo. Cheguei no bar, próximo ao trabalho para tomar o meu café às 8:30h. Entrei apressado e me esbarrei em alguém. Abaixei para pegar a bolsa que havia caído e pedir desculpas. Quando me levantei, não acreditei no que vi. Era ela. Estava um pouco mudada, também envelhecida, mas era ela. Nos olhamos por alguns instantes, sem falar nada. No entanto, havia algo que nos separava, um rio que tinha atravessado as nossas vidas. Ela perguntou por mim, pela cidade, pela enchente. Eu não sabia o que responder. Então, me convidou para sentar. Disse que sempre ia àquele bar tomar café. Chegava às 8:10, aproveitava para dar uma olhada nos processos antes de ir para o escritório. Era advogada. Trabalhava num prédio do outro lado da rua. Falei que eu também, era no prédio ao lado, no jornal. “Você é jornalista?”, ela me perguntou. “Sim, respondi”. Depois me falou que naquele dia, da enchente, o bairro inteiro foi levado pela correnteza do rio. Sua família morreu, ela foi resgatada e depois uns parentes a trouxeram para morar na capital. Hoje era advogada, casada com um juiz, tinha três filhos. Uma garota e dois garotos. Ela me deu o seu cartão. “Dra. Helena Brandão – advogada”. Olhei e vi o sobrenome: Brandão. Não era o seu sobrenome de solteira. Nos despedimos. Fiquei de ligar e marcamos para nos encontrar. Ela me convidou para conhecer a sua família. Nunca mais nos vimos. Chego ao bar para o café, todos os dias, às 7:30h, saio pontualmente às 7:50h. Atravesso a rua, subo para a redação do jornal e espero os colegas chegarem.

 

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