A chacina, os celulares confiscados e o dever de vigiar e ser vigiado: notas sobre um modus operandi et fraudandi nas ações de segurança

23/05/2021

Coluna Stasis

[…] Trayvon Martin (1995-2012), […] Michael Orlandus Darrion Brown Jr. (1996-2014), […] Eric Garner (1970-2014) […] , George Floyd (1973-2020), […] João Alberto Silveira Freitas (1980-2020), […] Bruno Barros (1992-2021), […] Yan Barros (2002-2021), […]. A lista de vítimas da violência perpetrada por agentes de segurança pública e privada, por motivos étnicos, não tem fim. Melhor dizendo: a lista de vítimas de ações violentas de agentes de segurança não tem fim. Não importa o motivo, essa só aumenta. Segurança para uns, morte para outros. A lógica da guerra schmittiana entre amigo e inimigo se alarga e difunde.

A atrocidade da vez ocorreu no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Até o momento, estão confirmadas as mortes de 28 pessoas[i], um policial envolvido na operação (André Frias) e vinte e sete pessoas com alguma relação com o território: circulavam, moravam ou eram alvo da operação (Bruno Brasil, Caio Da Silva Figueiredo, Carlos Ivan Avelino Da Costa Junior, Cleyton Da Silva Freitas De Lima, Diogo Barbosa Gomes, Evandro Da Silva Santos, Francisco Fábio Dias Araújo Chaves, Guilherme De Aquino Simões, Isaac Pinheiro De Oliveira, John Jefferson Mendes Rufino Da Silva, Jonas Do Carmo Santos, Jonathan Araújo Da Silva, Luiz Augusto Oliveira De Farias, Márcio Da Silva Bezerra, Marlon Santana De Araújo, Matheus Gomes Dos Santos, Maurício Ferreira Da Silva, Natan Oliveira De Almeida, Omar Pereira Da Silva, Pablo Araújo De Mello, Pedro Donato De Sant'ana, Ray Barreiros De Araújo, Richard Gabriel Da Silva Ferreira, Rodrigo Paula De Barros, Rômulo Oliveira Lúcio, Toni Da Conceição, Wagner Luiz Magalhães Fagundes)[ii].

Foi dessa operação que emergiu a denúncia: “Pelas redes sociais, moradores relataram mais mortes que as computadas, além de corpos no chão, invasão de casas e celulares confiscados.”[iii] O motivo é a formação de uma estratégia de proteção contra agressões que tem se mostrado importante e poderosa, sobretudo contra abusos de autoridade, possibilitado graças à ampliação do acesso a telefones celulares com câmeras. Daí porque é cada vez mais comum que, ao presenciar ações truculentas por parte de agentes de segurança, as pessoas gravem tudo, de preferência com vídeo e, não raro, façam simultaneamente a transmissão em redes sociais. Essa tática possibilita o armazenamento de uma cópia de tudo para que eventual destruição do aparelho pelos agressores não obste a punição dos agentes pelos atos abusivos.

Por receio da punição, os agentes se esforçam muito para impedir as gravações. Algo assim ocorreu em quase todos os casos citados acima. A esposa de João Alberto, por exemplo, foi proibida de filmar os seguranças enquanto o espancavam e matavam. Há, portanto, todo um conjunto de reações às ações defensivas: violência física e psicológica, ameaças, apreensões, prisões arbitrárias, confisco e destruição de aparelhos etc. Recentemente foi publicada uma reportagem descrevendo algumas técnicas desenvolvidas por policiais para se esquivar das gravações ou da punição construindo narrativas que alteram o sentido das ações policiais[iv]. A grosso modo, tais táticas consistem em inventar causas prováveis (probable causes) para abordagens, forjar flagrantes para justificar prisões, alterar as cenas de crimes para incriminar terceiros ou para evitar a própria punição e falsificar instrumentos de crimes para justificar o uso da força. Em suma, os limites dos vídeos não encerram a multiplicidade dos sentidos. Há sempre algo antes e algo depois do vídeo, pontos cegos e a qualidade nunca resulta perfeita. As manipulações se dão precisamente nesses pontos.

O estado, visando integrar as reivindicações sociais para dispersá-las, esvaziá-las e enfraquecê-las, começa a tornar obrigatório aos policiais o acoplamento de câmeras corporais para gravar diligências, abordagens e operações. Faz isso tanto porque em cada uma dessas atividades policiais há algum tipo de restrição a direitos fundamentais (restrição é uma forma de reduzir um direito, considerada lícita e válida, em contraposição à violação, que é uma redução ilícita e/ou inválida) que o estado prometeu reconhecer e proteger, quanto porque, como vigia da sociedade, em algum momento seria convidado a vigiar os próprios agentes a fim de aumentar a própria legitimidade.

Nesse sentido, tramita na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro o Projeto de Lei 2.830/2020, de autoria da deputada Renata Souza, para tornar obrigatório o uso de câmera corporal por policiais civis e militares daquele estado[v]. As gravações podem ser utilizadas para produzir prova em processo criminal, para a segurança na abordagem, para avaliar o trabalho policial e para provar o uso progressivo da força (art. 1º, I a IV).

Sendo aprovado o projeto, a lei tornará obrigatório o uso e acionamento da câmera em todas as buscas em locais e pessoas, durante operações em favelas e em casos de resistência à prisão (art. 3º). Não acionar a câmera será infração disciplinar grave (art. 4º).

Nada é dito, por exemplo, quanto ao extravio ou destruição intencional da câmera, a recusa de entregar a imagem e ao apagamento ou edição das gravações. Obviamente, não é mero acaso. A população, o recurso por excelência, produzido pela biopolítica, pode reivindicar, mas apenas aquilo que o estado reconhecer como “de direito”. A ordem e as dimensões da licitude não pertencem à população.

O estado foi condescendente reconhecendo a reivindicação por maior controle dos abusivos policiais, mas não dará tudo o que for reivindicado. “A população deve obedecer.” “Mais do que isso seria um perigo.” “A segurança precisa ser mantida.” “Tem também a questão da economia.” Enfim, há sempre um mantra. A pauta, depois de juridicizada, foi esvaziada.

A lei não foi aprovada ainda. Isso quer dizer que continua a ser lícito executar atividades policiais sem o uso de câmeras corporais, inclusive em favelas (ou, melhor dizendo, principalmente lá). Aliás, a implementação efetiva pode demorar até 4 anos, caso seja aprovada a lei (art. 6º). Trata-se de ação realizada nos estritos limites da legalidade. Dizem por aí: é tudo lícito. Quem decide sobre a licitude são eles. Grande parte dos juízes criminais se consideram também agentes de segurança pública. Se os agentes efetivos, ou que se equiparam, decidem sobre o que é lícito, não se pode esperar que as ilicitudes serão reconhecidas.

E, por falar em ilicitude, o confisco consiste na expropriação, pelo estado, de um bem ou valor pertencente a um indivíduo, obtido licitamente. O estado toma para si o que pertence ao cidadão (não seria súdito?). Essa medida só pode ser utilizada em hipóteses muito restritas: bens e valores utilizados no tráfico de drogas ou trabalho escravo (art. 243, parágrafo único, da Constituição).

Para garantir a licitude agora basta, primeiro, dizer que os celulares eram utilizados para o tráfico, depois, que algum juiz acredite...

Talvez se possa afirmar que o estado em sociedades periféricas e subservientes às demandas do capital e da economia financeirizada utiliza-se de seu descomunal poder de violência sobre determinados grupos sociais considerados indesejáveis, descartáveis. Age de forma violenta sobre indivíduos e grupos humanos considerados refugos humanos pelos interesses econômicos hegemônicos. O estado brasileiro ao longo de sua trajetória constituiu larga experiência em promover chacinas, seja no campo, ou na cidade. Apenas para citar alguns dos mais recentes, entre eles: “Torturados e mortos nos porões do Regime Militar (1964-1984)”; “Massacre de Eldorado do Carajás (1996)”, “Massacre do Carandirú (1992)”, “Chacina da Candelária (1993)”, “Chacina do Jacarezinho (2021)”. E, não esqueçamos de mencionar as mortes violentas e pontuais promovidas pelo estado por meio de ações policiais de norte a sul do país.

O estado brasileiro constitui-se desde seus primórdios num estado “necropolítico” a serviço da segurança das elites econômicas e políticas herdeiras do ethos escravocrata constitutivo do Brasil colônia. É um estado cuja especialidade é produzir quantidades de cadáveres necessárias a manutenção da “ordem” em favor dos grupos que controlam o poder econômico, jurídico e político. É paradoxal em sua condição necropolítica. Exerce um eficiente controle da opinião pública nacional e internacional ao promulgar de forma ininterrupta leis, a impor decretos e estabelecer normas de proteção à vida e de garantia dos direitos sociais, individuais, dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, em promover chacinas e a impunidade em relação aos membros de suas forças coercitivas.   

O estado brasileiro em sua condição necropolítica é cada vez mais requisitado na oferta de garantias aos investidores, aos especuladores, à economia financeira nacional e global, diante das tendências de revoltas de uma população empobrecida, famélica, abandonada pelo estado e acolhida pelo tráfico.  Neste contexto, em significativa medida, a ação de setores do poder judiciário diante das recorrentes chacinas confere legalidade aos poderes coercitivos e seu modus operandi et fraudandi necropolítico.  O espancamento, a execução, a produção de cadáveres correm soltos na senzala chamada brasil... Em algum momento precisaremos como sociedade brasileira escolher entre a civilização, ou a continuidade da barbárie.

 

Notas e Referências

[i]               https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/mortos-na-chacina-do-jacarezinho-sobem-para-29-e-pol-c3-adcia-insiste-na-criminaliza-c3-a7-c3-a3o-de-v-c3-adtimas-sem-provas/ar-BB1gvEGV

[ii]              https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/08/veja-a-lista-de-mortos-na-operacao-do-jacarezinho.ghtml

[iii]             https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/operacao-jacarezinho-relato-moradores.ghtml

[iv] "No single video is going to change how police act, and experts argue that even large numbers of videos cannot change the culture of many police departments. On the contrary, police have found ways to use video, especially body camera footage, to reinforce and control their own narrative in cases of possible violence or misconduct. [...] Police unions promoted an alarming claim that Shake Shack employees had ‘intentionally poisoned’ a group of police officers in Manhattan. The story had been dispelled by the next morning: NYPD investigators said the foul-tasting substance in the three officers’ milkshakes wasn’t ‘bleach’, as the unions speculated, and it wasn’t added to the drinks on purpose. Although the Police Benevolent Association and the Detectives’ Endowment Association both eventually deleted their tweets making the accusation, they had tens of thousands of retweets, and triggered a wave of credulous coverage in conservative and mainstream press. Media write-ups about the tweets got tens of thousands of shares on Facebook and continued to circulate even after the story was debunked. And this was just one example. Last summer, NYPD Commissioner Dermot Shea reposted a video of police removing bins of bricks from a South Brooklyn sidewalk, claiming they were the work of “organized looters” offering protesters materials to use for violence, despite little evidence that this was actually true. The NYPD also circulated an alert to officers with images of coffee cups filled with concrete, which closely resemble concrete samples used on construction sites. In Columbus, Ohio, the police tweeted out a photo of a colorful bus that they said was supplying dangerous equipment to ‘rioters’, fueling already rampant national rumors of ‘antifa buses’ descending on cities. In fact, the bus belonged to a group of circus performers, who said the equipment police cited as riot supplies included juggling clubs and kitchen utensils." OHLHEISER, Abby. The tactics police are using to prevent bystander video. MIT Technology Review, Cambridge, 30 abril 2021. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2021/04/30/1024325/police-video-filming-prevention-tactics. Acesso em: 11 maio 2021.

[v]              http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=156&url=L3NjcHJvMTkyMy5uc2YvMWUxYmUwZTc3OWFkYWIyNzgzMjU2NmVjMDAxOGQ4MzgvY2Q2ZDA5MWUwMDc2MjExODAzMjU4NTk5MDA2NGVjNGQ/T3BlbkRvY3VtZW50

 

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