A centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana e a tutela dos direitos

26/11/2016

Por Luiz Carlos Souza Vasconcelos e Ricardo Maurício Freire Soares - 26/11/2016

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal do Brasil de 1988 legitima proteção aos direitos fundamentais, deixando estampado que os direitos e garantias fundamentais tem aplicabilidade imediata   art. 5º, §1º, da CF), protegendo-os não apenas em face do legislador ordinário, como também contra o constituinte reformador, principalmente por contemplar a relação das nominadas cláusulas pétreas (art. 60, §4º, IV, da CF).

Preceitua a Constituição em seu art. 5º, § 2º que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotadas, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Com isso, vê-se institucionalizada uma Constituição aberta à ideia de fundamentalidade material, não impedindo que outros direitos, ainda que não previstos taxativamente no texto constitucional e não dispostos em seu Título II (arts. 5º ao 17), sejam classificados como direitos fundamentais.

Nesse sentido, traz-se à tona o princípio da dignidade da pessoa humana, tratando-se de um núcleo ao redor do qual são atraídos os direitos fundamentais. Essa dignidade é protegida pela Constituição Federal de 1988, por meio dos direitos fundamentais, conferindo sistematização a esses interesses. Trata-se de um valor constitucional supremo, considerado o centro axiológico da Carta Magna.

A dignidade encontra-se presente em quase todas as declarações e tratados internacionais que afirmam direitos humanos e a sua eficácia tem sido muito proclamada nos decisórios de diversas cortes e tribunais constitucionais, no Brasil e no estrangeiro, tornando-se um vetor jurídico, social e político contra a opressão dos Estados e de entidades privadas.

No caso brasileiro, esse princípio encontra-se assentado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, sendo alçado a um fundamento da República. Tem-se, assim, um compromisso formalmente assentado na Constituição, sendo que nos casos de lesão a deveres e direitos advindos da dignidade da pessoa humana, verificar-se-á uma situação concreta de atuação dos órgãos jurisdicionais, visando assegurar o cumprimento desse vetor constitucional.

Ressalte-se também sua inclusão no artigo 8º do CPC (Lei nº 13.105, de 16.03.15) ao requerer do magistrado, no seu papel de intérprete e aplicador do ordenamento jurídico, o atendimento aos fins sociais e às exigências do bem comum, concretizando-se o acesso à uma ordem jurídica justa e tempestiva, com a promoção da dignidade da pessoa humana e a efetiva proteção de seus interesses.

Sendo considerado um valor intrínseco associado à vida de todo ser humano, a proteção desse postulado representa uma meta constante e essencial no Estado Democrático de Direito.

A dignidade da pessoa humana, a partir da corrente pós-positivista neoconstitucionalista, trouxe para si a expectativa de uma justiça material e concreta, sendo invocada pelos participantes da relação jurídica processual, como parâmetro de fundamentação de um direito justo, diferentemente do pensamento interpretativo das teorias jusnaturalista e positivista.

Com efeito, o presente estudo visa examinar o princípio da dignidade da pessoa humana, conteúdo e significado, o qual interessa a todos os ramos do saber, com um viés discursivo jurídico-constitucional no que se refere às questões controvertidas e complexas que envolvem esse tema.

Serão tecidas considerações sobre o papel do Poder Judiciário na resolução das lides que ali aportam, exigindo dos juízes uma postura mais ativa e compromissada com os ditames constitucionais, com o enfrentamento de problemas que assolam a sociedade, especialmente no que se refere à efetivação dos direitos e a temas sociais polêmicos, com fundamento no princípio ora sob análise.

Por final, no que se refere à metodologia aqui utilizada, trata-se de uma pesquisa teórico-bibliográfica, exploratória e com uma forma de abordagem qualitativa. 

2 O NEOCONSTITUCIONALISMO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO PÓS-POSITIVISTA

É sabido que até a Segunda Grande Guerra Mundial, a teoria jurídica era influenciada pelo Estado Legislativo do Direito, onde a lei era a fonte principal de legitimação do ordenamento posto, não dando azo à força normativa das constituições. Preocupava-se com o direito em sua estrutura normativa, sem se ater aos valores e ao conteúdo. A validade da norma estava atrelada à autoridade competente produtora da lei e não à feitura do valor justiça.

A justiça ou a injustiça das normas jurídicas não seria objeto de estudo da Ciência do Direito.

O positivismo define o direito como aquele efetivamente oriundo das autoridades que detêm o poder político de produzir as normas jurídicas e desde que a criação da regra tenha ocorrido em conformidade com o procedimento legal para edição de normas.

Essa teoria sustenta ainda a separação entre direito e moral. A interferência da moral no direito não deve ser examinado pela teoria do direito, separando o estudo deste como ele é da apreciação moral do intérprete a respeito de como o direito deve ser.

Na seara positivista, a atividade de interpretação traduz-se em um processo lógico-formal de subsumir o fato à norma que ali se aplica.

Logo se vê que nos dias atuais não é mais possível que um magistrado analise um caso concreto, dispondo o Direito apenas como um conjunto de regras, onde o juiz era a pessoa que dizia apenas as palavras da norma, confundindo-se essa última com o texto legal.

Nesse sentido,

Desde Kelsen, no entanto, sabemos que a norma é mais do que o texto da lei; é, sim, o sentido que se apreende do texto da lei. Isso torna a aplicação do Direito muito mais capaz de lidar com a realidade dos fatos, uma vez que as prescrições legais (hipotéticas, abstratas) nunca se encaixam perfeitamente no mundo dos fatos. Se, ao invés de tomarmos que a lei possui apenas um sentido dado, compreendermos que a norma jurídica é capaz de nos abrir um leque de interpretações possíveis, então o sistema se expande para além dos estreitos limites da literalidade. (THEODORO JÚNIOR et al, 2016, p. 57)

Com a crise do positivismo jurídico, abriu-se o debate a respeito da função e da interpretação do direito, trazendo à lume as percepções sobre justiça e legitimidade para um melhor entendimento do sistema jurídico, nos sentidos axiológico e teleológico, sendo concebido um ordenamento de forma mais dinâmica e aberto aos fatos e valores ético-políticos. A partir daí, sobressaiu-se um novo paradigma jusfilosófico denominado de pós-positivismo jurídico.

Nessa leitura,

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais. (BARROSO, 2009, p. 327)

Esse novo tempo de abordagem do conhecimento, chamado de pós-positivismo jurídico, tem procurado estreitar os laços entre a moral e o direito, com a consequente aproximação da realidade social, recorrendo a uma argumentação jurídica mais flexível e permeável à moral. Essa abertura do debate aos valores éticos-políticos e ao mundo dos fatos desembocou nas denominadas teorias constitucionalistas ou neoconstitucionalismo, como dimensão do pensamento pós-positivista no Direito Constitucional.

Nesse viés, o Poder Judiciário assume um importante papel no Estado contemporâneo, com a implementação de novas técnicas hermenêuticas na interpretação do ordenamento jurídico e a utilização de princípios, ao lado das regras, na resolução de um caso. O juiz é um protagonista dessas teorias neoconstitucionalistas e considerado o guardião dos valores constitucionais, com ponderações e releituras construtivas, exigindo-se uma participação mais ativa e cooperativa no resultado de uma demanda judicial.

O pensamento neoconstitucionalista desencadeou o surgimento do Estado Constitucional de Direito, como protótipo jurídico, à luz das normas e valores constitucionais, principalmente os inerentes aos direitos fundamentais, perpassando para os demais ramos jurídicos. Reconhece-se a Constituição como uma norma jurídica, com força vinculante, compulsória e dotada de supremacia, desempenhando um papel nuclear no ordenamento jurídico, que além de restringir a atuação dos poderes públicos, os seus ditames refletem diretamente nas relações entre os indivíduos.

Nessa esteira de pensamento,

O fenômeno de constitucionalização do Direito teve causas diversas. Uma delas foi a ampliação das tarefas das constituições, que, a partir do advento do Estado Social, deixaram de tratar apenas da organização do Estado e da garantia de direitos individuais, passando a disciplinar muitos outros temas, como a economia, a família, o meio ambiente etc. Outra foi a sedimentação da ideia, acima explorada, de que a Constituição é norma jurídica e não mera proclamação política, o que se relaciona com a difusão e fortalecimento da jurisdição constitucional. Uma terceira foi o surgimento de uma cultura jurídica que passou a valorizar cada vez mais os princípios, vendo-os não mais como meios para integração de lacunas, mas como normas jurídicas revestidas de grande importância no sistema, capazes de incidir diretamente e de dirigir a interpretação de regras mais específicas. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2016, p. 44)

No cenário brasileiro, a partir do texto constitucional de 1988, a constitucionalização do direito tem uma visibilidade real, onde as normas constitucionais e seus valores (principalmente os relacionados à implementação da dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos fundamentais) são argumentos utilizados para a interpretação e aplicação do Direito como um todo, fazendo parte de uma decisão jurisdicional, seja em processos envolvendo conflitos menos complexos, como também em grandes lides.

Para Guastini (2003, p. 49), com a constitucionalização do Direito, resultou-se em que a ordem jurídica ficou muito impregnada pelas normas da constituição, que dão validade tanto à lei como a jurisprudência e a doutrina, condicionando, inclusive, as atitudes dos protagonistas políticos e as relações entre as pessoas.

O neoconstitucionalismo encontra-se ligado a diversos fenômenos, no campo prático e no âmbito da dogmática jurídica, podendo ser discriminados da seguinte maneira: o reconhecimento dos princípios como tipo de norma jurídica; a utilização de métodos mais flexíveis do raciocínio jurídico, como a ponderação e a teoria argumentativa; a constitucionalização do Direito; a conexão entre a Moral e o Direito e a judicialização das políticas e dos interesses sociais, soerguendo-se o papel do Poder Judiciário nesse mister, lançando-se mão dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no campo da interpretação judicial.

Na visão de Faralli (2006, p.12), a abordagem do constitucionalismo é percebida sob três argumentos. Em primeiro lugar, a interligação entre direito e moral, com a colocação de elementos morais no ordenamento, consubstanciados nos princípios e nos direitos invioláveis das pessoas. Como segundo aspecto, verifica-se a evidência dos procedimentos de aplicação do direito, particularmente por conta do Poder Judiciário, no desenvolvimento de novos métodos de decidir uma demanda, com a utilização do critério da ponderação dos princípios. Por último, observa-se a vinculação do legislador aos princípios, no campo político-constitucional, contando com o papel desenvolvido pelos magistrados na execução do raciocínio jurídico, mesmo em confronto com as resoluções legislativas e com a legislação.

Já nas lições de Barroso (2005, p. 123), afirma-se que o neoconstitucionalismo teve como marco histórico, a implementação do Estado Constitucional de Direito; como marco filosófico, o pensamento pós-positivista, trazendo ao debate a efetividade dos direitos fundamentais e a aproximação do Direito com os ditames da moralidade; e como marco teórico, o entendimento da Constituição como força normativa e o desenvolvimento de um novo discurso de interpretação constitucional.

Evidencia-se com o pós-positivismo, a superação da diferenciação entre regras e princípios. Anteriormente, os princípios tinham uma função apenas de auxiliar ou subsidiar no método de aplicação do Direito, integrando a ordem jurídica, em caso de lacuna legislativa. Ressaltem-se que as regras e princípios são espécies de normas.

Para Bobbio (1999, p. 158), que acentua a normatividade principiológica, aponta que os princípios são normas fundamentais encontradas no sistema, sendo as mais gerais e tem a função de regular casos concretos.

Os princípios são normas com um grau de abstração e generalidade maiores que as regras, pois informam as ideias e valores fundamentais encontradas por todo o ordenamento jurídico. As regras restringem o seu conteúdo na descrição de condutas ou comportamentos, com a sua respectiva consequência jurídica.

O âmbito de aplicação dos princípios é indeterminado, estando sujeitos a outros critérios (expansão e compressão) para serem aplicados, observando-se as circunstâncias fáticas e jurídicas, a fim de definir o seu alcance no caso concreto. As regras, por sua vez, são determinadas, de aplicabilidade direta.

Os princípios influenciam na criação das regras, sendo a sua base sistêmica, fornecendo-lhes racionalidade e coerência jurídica, funcionando hermeneuticamente muitas vezes como instrumento de compreensão, interpretação e aplicação das referidas normas.

Para Alexy (2001, p. 86-87), os princípios são mandatos de otimização, que não preceituam condutas determinadas, mas direcionam a valores que deverão ser realizados na maior medida possível, de acordo com as circunstâncias jurídicas e concretas que existem. Os princípios justificam-se mais pela expressão de peso do que pela seara da validade, constituindo-se de um teste de ponderação de valores e interesses (balancing), com a percepção de alguns elementos reais nessa técnica de raciocínio.  A diferença entre essas normas é qualitativa e não de grau.

Percebe-se, assim, ao tempo em que a colisão de princípios se equaliza na dimensão do valor ou sua importância, o mesmo não acontece com as regras, que se ancoram no critério da validade. Uma regra vale ou não tem validade, sendo que neste último caso, ela é subtraída do sistema jurídico. Havendo conflito de princípios, deve-se ter cessão de um diante do outro, de acordo com as circunstâncias que rodeiam o caso.

Dworkin (2010, p. 39-43), nesse mesmo diapasão, afirma que as regras jurídicas tem a sua aplicabilidade no estilo do tudo ou nada, e sendo válidas, a resposta que elas dispõem deve ser aceita e no caso de invalidade, em nada contribuem para o decisório. Não se pode dizer que uma regra tem mais importância que a outra, enquanto parte do mesmo sistema normativo. Os princípios diferenciam-se das regras, pois detêm uma dimensão de peso ou carga valorativa. Um ordenamento jurídico pode optar pela regra que é informada pelos princípios mais importantes.

Tem-se visto muitas críticas ao Neoconstitucionalismo, fugindo-se à pretensão deste trabalho esmiuçar todo o pensamento sobre esse fato. Claro, que todas as opiniões são importantes, no sentido de buscar-se uma racionalidade e coerência para o sistema.

Assim, a título de informação, as críticas basicamente são as seguintes: a)supervalorização dos princípios em relação às regras, com posição de destaque para os primeiros; b) centra-se o foco no papel crucial do Poder Judiciário, depositando expectativas de que melhor pode efetivar os direitos constantes nas constituições, em detrimento do princípio da separação dos poderes e da própria democracia; e, por último, c) o realce que se dá ao critério de ponderação no emprego dos princípios, em detrimento do critério de subsunção das regras ao fato concreto, podendo gerar insegurança jurídica, por conta desse decisionismo jurisdicional.

Advirta-se, por final, que em meio a todas essas considerações, no constitucionalismo atual deve-se priorizar sempre a pessoa humana, reconhecendo-lhe o direito de escolher os seus planos de vida, cabendo ao Estado o papel de ajudar criando condições justas para o seu desenvolvimento como indivíduo, inserto numa sociedade, o que se evidencia plenamente com o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. 

3 CONTEÚDO E SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Cabe destacar aqui a importante tarefa desempenhada por esse princípio, que deve proporcionar uma proteção integral ao ser humano, tutelando direitos e liberdades, garantindo-se as necessidades materiais básicas para uma vida digna.

Há muito fixou-se a ideia de que, no Estado Democrático de Direito, a essencialidade dos direitos humanos estabelece-se na vida e na dignidade do indivíduo. (COMPARATTO, 1989, p. 46).

Santos (2003, p. 442) chega a dizer que “todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos”

Esse princípio prescreve limitação à atividade do Estado e dar guarida à liberdade humana nos lugares onde esta tem sido mais lesionada e desrespeitada por todos que abusam do poder, com o cometimento de arbitrariedades, causando danos a terceiros. A existência do Estado se corporifica em função do ser humano, pois este representa o fim principal da atuação estatal.

Kant (2005, p. 69) afirma que todo indivíduo deve dispor de sua humanidade, tanto em favor de sua própria pessoa, como direcionada à pessoa do outro, sempre como fim em si mesma e nunca como meio, respeitando-o em sua dignidade. Ela é referenciada como um valor incondicional, sem comparação, centrada na autonomia da vontade.

O Direito e o Estado somente têm razão de ser se agirem em função da pessoa, e não o inverso. Isso se refere a qualquer pessoa, independentemente de seu padrão social, ou de atos que tenha praticado. Todos têm semelhante dignidade, são sujeitos capazes de tomar decisões e também assumem responsabilidades sociais.

Daí se destaca que a dignidade apresenta-se como um princípio legitimador, ao atribuir sustentação moral ao Estado e ao sistema jurídico. Descartam-se assim governos autoritários ou totalitários, que tratam as pessoas como objetos, com a instituição de procedimentos antidemocráticos, que levam à degradação da vida humana.

No entanto, Schopenhauer (1965, p.100) já proclamava, ironizando a ideia kantiana, justificando que é vazia de sentido:

Esta expressão, dignidade humana, usada por Kant, tornou-se desde então o lenga-lenga de todos os moralistas perplexos e cabeças-ocas, que escondem por trás desta imponente expressão a sua incapacidade de estabelecer alguma base real para a moral, ou de uma que faça algum sentido. Eles contam astuciosamente com o fato de que seus leitores vão ficar contentes de se verem investidos nesta dignidade, e por isso se darão por satisfeitos.

O princípio da dignidade da pessoa humana foi referenciado na doutrina brasileira como o “coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana” (ROCHA, 1999, p.32) e como a “norma das normas dos direitos fundamentais” (BONAVIDES, 2015, p. 18).

Extrai-se a pragmática ideia de que o princípio da dignidade da pessoa humana deve atuar como critério informador, numa situação real, em que ocorre a colisão de um princípio fundamental com outros princípios também considerados essenciais.

Ao reconhecer a centralidade e a essencialidade do princípio da dignidade, no julgamento da ADI 3510, Rel. Min. Ayres de Brito, data de 29.5.2008, trecho do voto do Min. Celso de Melo, o Supremo Tribunal Federal descreve que se trata do “verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no país”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, do ano de 1948, no seu preâmbulo, reconheceu a dignidade relativa a todo o ser humano com fulcro na liberdade, na justiça e na paz mundial, descrevendo em seu art. 1º que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Trata-se assim de um escrito histórico, servindo de alicerce aos direitos humanos.

Como marco inicial, a partir do documento supra e também da ocorrência da Segunda Guerra Mundial, é que esse princípio passou a ser expresso na ordem jurídica constitucional de outros países, a exemplo do Brasil, com a Carta de 1988.

Verificam-se que as Constituições não descrevem o conteúdo da dignidade nem informam seu campo de proteção jurídica. Cabem à doutrina e à jurisprudência definirem as bases de um conceito jurídico de dignidade, sem o interesse de fazê-lo em definitivo, dado tratar-se de um instituto de densidade aberta.

Como realçou Habermas (2012, p. 17), a dignidade da pessoa humana “forma algo como o portal por meio do qual o conteúdo igualitário-universalista da moral é importado ao direito”.

Com isso, ao se interpretar esse princípio, deve-se ter em conta também a moral, que servirá de norte para levar o intérprete a encontrar a solução mais justa entre as possibilidades textuais e presentes no sistema jurídico.

A dignidade refere-se intrinsicamente ao ser humano, como pessoa concreta, não podendo o próprio sujeito abrir mão desse requisito, pois é um atributo inegociável e encontra-se fora da disponibilidade do indivíduo.

Para Haberle (2009, p. 75 e 101) a dignidade é “concretizada jurídico-pragmaticamente de modo científico-experimental e com base nos exemplos recolhidos da casuística dos casos concretos”.

Traz-se aqui o conceito de dignidade da pessoa humana, com um traço multidimensional, tessitura aberta e com caráter inclusivo:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2015, p.70-71)

A dignidade da pessoa humana reflete em si uma integralidade de valores físicos e morais que é resguardado a todo o indivíduo por estar no mundo, devendo ser tratado de igual forma com respeito e consideração, livre de qualquer tentativa de aliciamento ou de ser concebido como coisa no cenário social.

No que se refere à natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, o constituinte brasileiro enquadrou-a como princípio jurídico fundamental, deslocando-a do rol dos direitos fundamentais, conferindo direitos subjetivos negativos (não violação da dignidade) e positivos (promoção e proteção da dignidade), inclusive com conteúdo prestacional diante do Estado. Foi a primeira vez que um texto constitucional brasileiro tratou desse paradigma, constituindo um pressuposto essencial para legitimar a ordem jurídica.

Vale dizer que não é somente obrigação do Estado promover medidas de proteção e respeito a esse princípio, mas também contempla todas as organizações privadas, os particulares e a sociedade em geral. O dever de cuidado imposto pelo ordenamento jurídico-positivo envolve inclusive a proteção do indivíduo em face de si mesmo, que atenta contra sua própria dignidade, por motivos diversos.

Nesse viés, Pérez Luño (1995, p. 318) explica que “a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica, também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”.

Ficou clara a intenção do constituinte de conferir aos princípios fundamentais a natureza de normas matrizes e informadoras de todo o sistema constitucional, principalmente em relação às normas que definem os direitos e garantias fundamentais, que de igual forma formam o núcleo principal da Constituição Federal de 1988.

Convém discorrer que em outros capítulos da Lei Fundamental a dignidade da pessoa humana foi ventilada, dispensando-se uma atenção especial pelo legislador nos artigos 170, caput (a ordem econômica tem por objetivo garantir a todos uma vida digna); 226, § 7º (fixou o planejamento familiar nos postulados da dignidade e da paternidade responsável); 227, caput (resguardou à criança e ao adolescente esse direito) e, por último, no art. 230 (quando tratou do direito dos idosos em ser amparados, com a defesa de sua dignidade e bem-estar social).

Como bem acentuou Miranda (2000, p. 180), a Constituição, ante a sua natureza compromissária, dispõe de uma lógica de sentido, de importância e de conformidade prática aos direitos fundamentais, que, por consequência, a partir do princípio da dignidade humana, concebe o ser humano como fundamento e finalidade do Estado e da comunidade em geral.

Há uma interdependência envolvendo a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos fundamentais, uma vez que é através desses direitos internamente considerados que a dignidade encontra-se garantida.

Ressaltando o direito ao mínimo existencial na dignidade da pessoa humana, Sarlet e Figueiredo (2007, p.184) ensinam que “a garantia (e direito fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana”.

Assim como Torres (1989, p. 32), que se orienta por uma tradição mais liberal, reconhece que o direito ao mínimo existencial está disposto de forma implícita na avidez constitucional de respeito a essa dignidade.

Para Luhmann (1974, p. 60), da mesma forma que a liberdade, a pessoa consegue sua dignidade por meio de uma conduta autodeterminada e da formação exitosa da sua respectiva identidade.

Segundo esse autor, as concepções de liberdade e dignidade representam condicionantes essenciais para a autorepresentação humana como pessoa individualmente considerada, processando-se no contexto da sociedade. 

4 JURISDIÇÃO E A TUTELA DOS DIREITOS

Trata-se a jurisdição de um relevante serviço prestado pelo Estado que se ocupa em dirimir os conflitos existentes na sociedade. O Estado não pode eximir-se de apreciar uma demanda judicial, seja ela individual ou coletiva, negando-se a solucionar os conflitos, tendo em vista o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”

A Lei Fundamental exige que se aporte a tutela dos direitos como objeto último do processo civil. A efetiva proteção dos interesses não pode ser entendida como fim alheio ao Estado Constitucional, o qual se encontra ligado ao ser humano, dando-lhe o suporte necessário à concretização dos direitos fundamentais, relacionados à vida, à saúde, educação, lazer, alimentação, segurança, entre outros.

Claro que essa proteção não se vincula apenas à tutela jurisdicional, podendo também ocorrer mediante edição de normas legais e com a promoção de políticas públicas, com o Estado incumbido da obrigação de fiscalizar o seu efetivo cumprimento.

A jurisdição traz para si a tarefa de tutelar todos os direitos, sejam fundamentais ou fora dessa categoria. O tecnicismo processual deve ser capaz de proporcionar a tutela adequada e tempestiva ao direito material buscado em juízo, por meio de uma ação, seja de forma preventiva ou repressiva a atuação jurisdicional.

Sendo o processo o instrumento que materializa a jurisdição, Marinoni et al (2015, p. 540) afirmam: “[...] o procedimento tem de ser, em si mesmo, legítimo, isto é, capaz de atender às situações substanciais carentes de tutela e estar de pleno acordo, em seus cortes quanto à discussão do direito material, com os direitos fundamentais materiais.”

O processo viabiliza a prestação da tutela jurisdicional, por meio das atividades de conhecimento, de execução ou por provimentos concomitantes de ambos os tipos.

Com o advento do Neoconstitucionalismo, observou-se o uso constante de princípios jurídicos na fundamentação de procedimentos hermenêuticos e das decisões judiciais, dando legitimidade, legalidade e segurança ao sistema normativo.

Para Morrison (2006, p. 517), “[...] A natureza argumentativa do direito e a natureza inconclusa do direito e da atuação jurídica determinam que os advogados e juízes são parte de um processo ininterrupto; o modo como abordam suas tarefas é crucial.”

Cumpre registrar, em decorrência de sua faceta objetiva, que o princípio da dignidade da pessoa humana, com seu caráter integrador e hermenêutico, tem a função precípua de auxiliar os operadores jurídicos em seu trabalho de interpretação e aplicadores das leis, servindo como norte de integração não somente dos direitos fundamentais mas também de todas as normas que compõem o sistema jurídico nacional.

Para a adesão da norma jurídica abstrata à realidade dos fatos requer-se do hermeneuta uma atenção especial, em cada caso concreto, devendo o intérprete separar o que é fundamental ou juridicamente importante daquilo que nada acrescenta. Um exercício constante do senso crítico a exigir do jurista nesse trabalho interpretativo.

Del Vecchio (1979, p.377) já dizia que “A justa aplicação da norma requer do intérprete a descoberta do significado intrínseco, que ele não fique parado ante a letra da lei, mas lhe colha o sentido próprio, o espírito.”

Com isso, cabe ao juiz utilizar-se de um raciocínio coerente e sistemático no procedimento hermenêutico, inspirado no ideal de justiça recepcionado pelo texto constitucional.

Soares (2010, p. 144) explica essa operação hermenêutica salientando que         “[...] Quando o operador do direito estiver diante de várias interpretações possíveis para uma norma, ele deverá optar por aquela que melhor se harmonize com a afirmação de uma vida digna.”

Qualifica-se também como um elemento utilizado na técnica de ponderação ou balanceamento, quando estão em jogo interesses constitucionais divergentes, pautado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O princípio da dignidade serve de base para controlar os atos do poder estatal, sejam eles normativos, administrativos e judiciais, até de atos jurídicos que envolvem particulares.

Reforça-se, neste ínterim, o princípio do devido processo legal, visto no art. 5º, LIV, da CF, “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, que serve de instrumento necessário para materializar e proteger, em uma ação judicial, o respeito a uma vida digna. Este postulado constitucional, validado como um direito fundamental, abarca um conjunto de garantias previstas na Constituição (e.g., o contraditório, a ampla defesa, isonomia, publicidade e razoável duração do processo), assegurando às partes e ao magistrado o direito de participação ativa na ação, em um processo dito cooperativo.

Para tanto, valida-se a ideia de que o processo é um instrumento eficaz de acesso à justiça, visando a uma ordem jurídica justa, de maneira que ali se extraia o maior proveito possível quanto aos resultados esperados, dentro de um tempo considerado razoável, com a efetiva concretização dos direitos.

Segundo Radbruch (1979, p. 91) “[...], o direito não é afinal senão a realidade que tem o sentido de se achar ao serviço da ideia de justiça.”

Cada vez mais se acentua a utilização do princípio da dignidade pelos tribunais brasileiros como critério de fundamentação nas decisões judiciais.  Colacionam-se alguns exemplos de julgamentos advindos do repertório jurisprudencial pátrio, que ilustram tal desiderato, embora não se vá adentrar aqui no mérito de tais decisões, na sua integralidade:

JULGADO DO STF:

RE 930454 AgR / MT - MATO GROSSO AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO Julgamento:  26/08/2016           Órgão Julgador:  Primeira Turma

EMENTA

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. SEGURANÇA PÚBLICA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. NÃO CARACTERIZAÇÃO. PRECEDENTES. 1. O Supremo Tribunal Federal já decidiu ser lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais, tendo em conta a supremacia da dignidade da pessoa humana (RE 592.581-RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski) 2. Agravo regimental a que se nega provimento.

Vê-se assim que são dispêndios públicos absolutamente necessários, sendo que a concretização pelo Estado reflete uma imposição da Constituição, não devendo ser uma atuação discricionária, resguardando-se aos detentos o respeito à integridade física e moral.

JULGADO DO STJ:

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 49.539 - RO (2015⁄0257739-3) – Rel. Min. Herman Benjamin

Julgamento: 15/09/2016 

EMENTA

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CRÉDITO HUMANITÁRIO. PAGAMENTO DE PRECATÓRIO PREFERENCIAL.  PESSOA IDOSA. INCLUSÃO. ART. 100, § 2º, DA CF⁄88 E ART. 12 DA RESOLUÇÃO Nº 115⁄2010, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROTEÇÃO AO IDOSO. OFENSA A DIREITO LÍQUIDO E CERTO. INEXISTÊNCIA.

1. [...]

2. A Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009, alterou substancialmente a sistemática do recebimento dos débitos judiciais processados através de precatórios, sendo certo que o § 2º do art. 100 da Carta Magna instituiu o direito de preferência na ordem de recebimento dos débitos dos maiores de 60 (sessenta) anos e dos portadores de doenças graves.

3. [...]

4. Tal preferência se dá em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde, garantias fundamentais a todos os cidadãos.

5. Não vislumbro ilegalidade no ato apontado como coator a ser corrigido pela via mandamental, devendo o acórdão impugnado ser mantido por seus próprios e jurídicos fundamentos.

5. Recurso Ordinário não provido.

O que importa aqui é consignar como o princípio da dignidade da pessoa humana aflora operacionalidade nesse contexto hermenêutico, assumindo papel de destaque, sem aprofundar-se em relação a todas as vertentes que envolvem a presente problemática. O critério da dignidade tornou-se uma constante nos discursos jurisdicionais, o que tem suscitado reflexões da comunidade jurídica sobre algumas omissões e abusos em determinadas decisões judiciais.

Uma das discrepâncias que se percebe no emprego da dignidade humana nos tribunais pátrios é a ausência de fundamentação dos julgados. Fala-se da dignidade sem referenciar, às vezes, os motivos que justificam a presença desse princípio no caso sub judice, utilizando para tudo ou tenta mostrar a ideologia humanista do juiz, não medindo as consequências desse equívoco. Justifica-se isso com o resultado do julgamento do Recurso Especial nº 503.990, da 1ª Turma do STJ, em 23.09.2003, a título comparativo dessa espécie de desvio, que trata dos limites à compensação tributária e sua relação de incompatibilidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Não é demais anotar que a fundamentação ou motivação dos atos judiciais trata-se de um princípio elencado no art. 93, IX, da CF, considerado um direito fundamental, e também uma exigência disposta nos artigos 11 e 489, § 1º, ambos do CPC/2015, sob pena de nulidade dos atos jurisdicionais que se distanciam desses ditames legais.

Reforçando esse entendimento, “A fundamentação proporciona accountability às decisões e é pressuposto da sua legitimidade em uma democracia”. (MENDES; STRECK, 2013, p. 1324-1325).

A motivação requer, no mínimo, uma explicação sobre o porquê da circunstância concreta subsumir-se no princípio da dignidade humana e qual a consequência jurídica advinda dessa operação, orientando-se por razões públicas, independentemente de dogmas religiosos e ideologias particulares. Isso reduz consequentemente o risco de equívocos judiciais

Vê-se assim que essa ligação entre os direitos fundamentais sociais e a dignidade da pessoa humana encontra ressonância também na jurisprudência de outros países, a exemplo da Corte de Apelação de Paris, do Tribunal Constitucional de Portugal, do Tribunal Constitucional Federal Alemão, entre outros.

Como ressalta Tepedino (1999, p. 67), a Constituição Federal ao recepcionar o princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento republicano, procurou demonstrar e definir uma nova ordem pública, “da qual não se podem excluir as relações jurídicas privadas, que eleva ao ápice do ordenamento a tutela da pessoa humana, funcionalizando a atividade econômica privada aos valores sociais e existenciais ali definidos”.

A despeito de sua real importância no sistema constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana não pode corresponder a uma natureza absoluta, devendo sujeitar-se a limitações e ponderações pelos poderes públicos, especialmente o Judiciário, que não pode ignorar as concepções adotadas em seus julgamentos, que resultem em sanções custosas aos entes públicos e também aos particulares. Para tanto, o bom senso deve prevalecer em seus decisórios.

Não se pode deixar de registrar como o valor justiça tem sido um dos objetivos buscados na resolução de um processo judicial, onde os cidadãos clamam por uma tutela jurisdicional justa, tempestiva e de resultados.

Relacionado a isso, Rawls (1971, p. 3-4) salienta:

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar da sociedade como um todo pode sobrepujar. Por esta razão, a justiça nega que a perda de liberdade para uns seja justificada por um bem maior obtido por outros. Ela não permite que o sacrifício imposto a poucos seja compensado por vantagens maiores gozadas por muitos. Por isso [...] os direitos protegidos pela justiça não se submetem a barganhas políticas ou a cálculos de interesse social.

O princípio da dignidade não aceita a instrumentalização das pessoas. Esse foi o pensamento de Rawls.

Soares (2015, p. 258), reforçando a ideia do mínimo existencial associado ao princípio da dignidade da pessoa humana, assinala que “[...] a definição desse núcleo de mínimo existencial não é consensual, embora haja consenso majoritário de que ele abarca, ao menos, os direitos à renda mínima, saúde básica e educação fundamental.”

A proteção do mínimo existencial pelo poder estatal, e em particular o Judiciário, é requisito essencial para a plena desenvoltura da cidadania e da democracia. Esse patamar mínimo – necessidades básicas materiais – deve ser assegurado a todos pelo Estado e por toda a sociedade, principalmente os mais vulneráveis e excluídos.

Enfim, se uma norma é editada, a exemplo do princípio da dignidade humana, deve ser, na medida máxima possível, materializada de forma correta, atendendo ao dispositivo constitucional. Cabe à jurisdição, como atividade pública estatal, garantir a eficácia social desse e de outros direitos, objetivando-se a tão propalada pacificação social. 

5 CONCLUSÃO

Neste estudo restou analisado o princípio da dignidade da pessoa humana como um valor ético-jurídico, que sob os auspícios da filosofia pós-positivista neoconstitucionalista, serve de parâmetro para consecução da justiça, podendo ser invocado pelos atores processuais, quando se sentirem violados em seus direitos.

Viu-se que a dignidade é ínsita à personalidade do ser humano, e mesmo sendo lesionada e agredida pela ação estatal ou por outros indivíduos, não poderá sequer ser perdida pelo signatário desse direito.

Constatou-se que esse princípio auxilia o hermeneuta na interpretação e aplicação correta das normas jurídicas, utilizando-se de princípios e regras, de forma que melhor tutele o interesse da pessoa.

A dignidade deve ser qualificada como uma virtude intrínseca da pessoa, sem o condão de associar-se a seu status ou a sua conduta social. O fato de pertencer à espécie humana, já tem dignidade somente por ser uma pessoa.

O princípio da dignidade tem um âmbito de atuação bem amplo, por vezes gerando prestações positivas e negativas em face do poder estatal e de particulares, principalmente no que diz respeito à concretização de direitos fundamentais.

A proteção do mínimo existencial, em se tratando da dignidade da pessoa, é um pressuposto para o exercício efetivo da democracia e para a tutela das necessidades básicas dos cidadãos. O Poder Judiciário tem legitimação necessária para defender esses interesses, quando acionado, determinando ao Estado o atendimento às necessidades vitais básicas e a implementação de políticas públicas, resguardando-se assim os valores constitucionais.

É forçoso reconhecer também que no Brasil, na seara jurisdicional, tem-se verificado algumas decisões com uma certa banalização do princípio da dignidade, empregado algumas vezes de modo equivocado, flexível conforme as escolhas do intérprete e sem uma motivação racional.

Evidenciou-se também que se deve dar prioridade ao ser humano no constitucionalismo democrático, pois o indivíduo encontra-se vivendo e convivendo em uma comunidade, com necessidades materiais as mais diversas possíveis, tendo os poderes públicos a incumbência de promover e defender os direitos humanos fundamentais, ante as adversidades que rodeiam as pessoas no âmbito social.

Por final, entra em cena a figura do juiz, que na atual visão democrática do processo, deve exercitar a jurisdição não somente como uma dimensão do poder estatal, mas com o compromisso de proporcionar à parte litigante, diante de uma ameaça ou violação, tudo o que seu direito o assegure, dentro do panorama traçado pelo texto constitucional vigente.


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luiz-carlos-souza-vasconcelosLuiz Carlos Souza Vasconcelos é Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (BA). Especialista em Direto Processual Civil e Direito Civil pela Universidade Estácio de Sá (RJ). Mestre em Direito Público Processual (UFBA). Doutorando em Direito Público (UFBA). Professor Universitário. Membro da Academia de Letras Jurídicas do Sul da Bahia. Coordenador de Pós Graduação em Direito. Diretor da Justiça Federal de Itabuna-BA. Contato eletrônico: lulavasconcelos1@hotmail.com


ricardo-mauricio-freire-soaresRicardo Mauricio Freire Soares é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutorado pela Università degli Studi di Roma. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Professor e Coordenador do Núcleo de Estudos Fundamentais da Faculdade Baiana de Direito. Professor do Curso Juspodivm e da Rede Telepresencial LFG. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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