A censura da expressão linguageira e a hipertrofia do Direito Penal a serviço do “Politicamente Correto” – Por Agostinho Ramalho Marques Neto

17/05/2015

Em primeiro lugar, quero manifestar, ao participar pela terceira vez destas Jornadas de Psicanálise e Direito, o imenso prazer que sinto por estar aqui – prazer que é redobrado por ter como companheira de mesa minha querida Ruth, e ainda por cima no dia do seu aniversário –, e também aproveito para apresentar os meus agradecimentos, na pessoa de Renata Vescovi, aos organizadores deste evento, pela honra do convite que me fizeram.

Antes de tudo, eu gostaria de fazer uma breve observação sobre essa articulação Direito/Psicanálise, que tem sido objeto de uma quantidade cada vez maior de cursos, congressos e seminários, assim como de toda uma produção escrita, boa parte da qual de alta qualidade. Isso é sinal de que essa articulação tem dado o que falar, e de que é possível elaborar, e muito, a partir dessa interface, dessa interlocução, dessa inter-relação. Temos aí um terreno extremamente fértil e ainda não muito explorado para a realização de um trabalho interdisciplinar no sentido mais legítimo do termo, que é a possibilidade de questões oriundas de um campo do conhecimento afetarem outro campo do conhecimento e serem afetadas, por seu turno, por questões provenientes deste outro campo. A essência de um trabalho interdisciplinar ultrapassa o nível da mera troca de informações e do somatório de saberes aportados pelas disciplinas envolvidas – prática essa que constitui o que se costuma chamar de multidisciplinaridade, ou pluridisciplinaridade – e cria a possibilidade de que, nos interstícios, nos interregnos desses campos, novas perspectivas sejam abertas e novos questionamentos sejam lançados.

Foi o que Lacan fez quando, por exemplo, afirmou, no Seminário 20, que o gozo é uma noção jurídica[1]. E efetivamente o é: o gozo é um daqueles três elementos constitutivos do direito de propriedade, o jus utendi, o jus fruendi e o jus abutendi. Como os nomes indicam, o jus utendi consiste no direito que o proprietário tem de usar o objeto de sua propriedade como melhor lhe aprouver, respeitados, é claro, os limites legais. O jus abutendi seria, literalmente, o direito de abusar, e foi realmente assim nos primeiros tempos, desde o direito romano. Mesmo em época muito mais recente, o Código Civil francês de 1804 definiu o direito do proprietário como o direito de usar, “da maneira mais absoluta”, daquilo que é da sua propriedade, ou seja, o direito de um uso quase sem limites. Ao longo do século XIX e, sobretudo, do século XX, esse direito sofreu crescentes restrições com o desenvolvimento da teoria do abuso de direito, a qual, se por um lado reconhece como lícito o uso do objeto sobre o qual recai o direito de propriedade, pelo outro tende a situar no campo do ilícito o uso excessivo desse direito, especialmente nos casos em que tal uso é exercido em prejuízo de direitos coletivos e sociais. O abuso de direito se localiza, assim, na zona fronteiriça entre o lícito e o ilícito. Já o jus fruendi, que é o que particularmente nos interessa aqui, é o direito de gozar do objeto, de fruir dos seus rendimentos, de extrair os seus dividendos. É justamente o jus fruendi  que Lacan toma como inspiração, como metáfora, para falar do conceito de gozo (do sintoma) em psicanálise, o qual também consiste numa extração. É ali mesmo onde o sujeito mais sofre o acosso do sintoma, que mais ele goza, é ali que ele encontra uma satisfação substitutiva para moções pulsionais e desejos recalcados. Isso permite compreender, como Freud já havia apontado, por que aquilo mesmo que levou o sujeito a demandar uma análise, aquilo que tanto o faz sofrer, que ele já não suporta, é justamente aquilo do qual esse mesmo sujeito, inconscientemente, não quer de maneira nenhuma abrir mão, porque ele extrai daí uma compensação, um gozo, uma satisfação substitutiva em relação a uma outra coisa que, por ter sido recalcada, já não é acessível a uma satisfação direta. É com base nesse entendimento que Lacan diz que o gozo é uma noção originariamente jurídica e – o que é o mais importante – daí tira todo um conjunto de consequências de longo alcance no campo psicanalítico, realizando um trabalho interdisciplinar no mais legítimo sentido do termo, conforme acima tentei delinear.

Então para mim, pessoalmente, que há vinte e cinco anos trabalho no eixo de uma articulação interdisciplinar que envolve direito, psicanálise, filosofia e literatura, é motivo de imensa satisfação ver como vem prosperando essa articulação e quanto se tem discutido e produzido em torno daquilo que a psicanálise convoca o direito a falar ou, quem sabe, também a calar, e vice-versa; em torno dos efeitos de deslocamento que a incidência de questões oriundas de um desses campos pode produzir no interior do outro campo. Tudo isso é extremamente importante e por isso resolvi abrir a minha fala com essas breves observações sobre o trabalho interdisciplinar.

As coisas que vou dizer, as observações que vou fazer hoje sobre o assim chamado “politicamente correto”, eu ainda estou começando a pensar sobre elas um pouco mais detidamente; não são noções que eu já tenha elaborado com o devido rigor e nelas me aprofundado teoricamente. São questões que ultimamente têm chamado minha atenção, e devo dizer que não se trata de uma atenção “neutra”, pois me incomodam certos conteúdos que são apresentados como “corretos” e certas formas pelas quais esses conteúdos têm sido propostos, ou mesmo “impostos”. Confesso que tenho alguma implicância, digamos assim, com essa questão da correção, seja ela política, seja de que natureza for. Não propriamente em relação à correção enquanto tal, mas a certas consequências que daí advêm, e sobretudo a certas formas mediante as quais se tenta fazer valer algumas espécies de correção.

A expressão “politicamente correto” – tão em evidência nestes últimos tempos – se apresenta como possuidora um valor positivo que lhe seria inerente. Concebe-se a correção política como algo positivamente valioso para a democracia, a qual, por sua vez, seria a ambiência na qual o politicamente correto encontraria o terreno mais fértil para vicejar. E, dentro desse contexto, ela também teria valor positivo no que concerne à cidadania: princípios e preceitos politicamente corretos seriam propícios a uma convivência harmoniosa entre os concidadãos – mas nem por isso necessariamente não conflituosa, visto que a possibilidade de conflitos e de sua elaboração simbólica e política faz parte de uma convivência democrática. Admitir isso, por sinal, é politicamente correto. Então, esse é o tipo do significante positivo, geralmente aceito como tal sem maiores questionamentos, e o que eu me proponho fazer aqui é precisamente trazer algumas questões, não propriamente com o intuito de desconstruir essa positividade axiológica, mas no sentido de examinar a que ponto têm chegado algumas tentativas feitas para implementá-la na vida cotidiana, assim como alguns possíveis excessos que nesse afã têm sido cometidos.

Eu também acho, em princípio, que devemos ser politicamente corretos; considero práticas como o racismo, o preconceito, a discriminação, repulsivas e abomináveis. Mas o que é, afinal, o correto politicamente? Em que ele consiste? E como essa concepção – ou mesmo, em muitos casos, essa “ideologia” – do politicamente correto vem se materializando concretamente no mundo contemporâneo?

A “correção” que domina o ideário político contemporâneo, para consolidar-se como conceito e como práxis, necessita convocar disciplinas teóricas e práticas sociais a se porem a seu serviço. O Direito, em particular, vem sendo cada vez mais insistentemente chamado a ocupar essa posição e a assumir essa função. Subjaz a isso a ideia de que preceitos politicamente corretos só podem ganhar efetividade nas práticas sociais se sustentados, em última instância, por sanções jurídicas. Quando se fala, por exemplo, em cotas sociais ou raciais nas universidades públicas como uma forma politicamente correta de compensar séculos de escravidão e de exclusão, isso só pode ser de fato realizado através de uma lei. Somente esta poderia conferir positividade jurídica às cotas, e esse disciplinamento legal seria uma precondição para que o sistema de cotas vigorasse de fato naquelas instituições. A efetiva implementação de tal sistema seria um modo de afirmação do princípio de igualdade de condições e oportunidades – reconhecido como correto não apenas politicamente, mas também eticamente –, bem como das normas decorrentes desse princípio.

Sob determinado ponto de vista, há um parentesco estreito entre o politicamente correto e o eticamente correto. Este último seria como que uma precondição do primeiro, ou seja, o politicamente correto, para sê-lo efetivamente, precisaria ser, antes, também eticamente correto – o que equivale a dizer que a correção ética seria critério e fundamento da correção política. Mas isso não deixa de depender do que se entenda por “política” e, consequentemente, por politicamente correto. E esse entendimento supõe que se indague sobre em que nível de política nos estamos situando. Uma coisa, por exemplo, é a política no que tange à sua concepção: qual é o seu objeto, o seu campo, seus princípios, seus fundamentos e seus métodos – temas sobre os quais muito se tem indagado desde as origens da política na antiga Grécia, resultando desse trabalho todo um pensamento político de cunho filosófico e científico, com muitos momentos de altíssimo refinamento conceitual e de sofisticada consistência teórica. Esse acervo, que é a própria história da filosofia e da ciência políticas, nos fornece importantíssimo suporte para pensar a correção política, tarefa esta que, nesta perspectiva, parece ser indissociável de pensar também o que seria uma correção ética.

Mas se pensarmos a política enquanto “arte política”, isto é, arte de “fazer política”, englobando a conquista, a manutenção e o exercício do poder, então as coisas mudam de figura. Sob este ponto de vista, não podemos deixar de levar em conta os embates políticos que visam à tomada do poder: os confrontos entre os partidos e entre os grupos políticos, nos quais sempre estão presentes questões de ordem tática e estratégica. O conceito de “correção”, aqui, já não é o mesmo que vigora no âmbito da filosofia e da ciência, no qual essa correção se apoia em critérios de verdade de cunho lógico, teórico, epistemológico e metodológico. No campo do que estou designando como arte política, em decorrência mesmo de sua íntima vinculação a considerações de natureza tática e estratégica, o critério por excelência dessa “correção” é a adequação dos meios aos fins colimados. Se o fim visado é a conquista do poder, a questão que então se coloca é a de quais os meios mais adequados – e, nesse sentido, mais politicamente “corretos” – para alcançá-lo. Neste caso, a correção política, embora em princípio continue vinculada à correção ética, nem sempre consegue, na prática, manter esse vínculo. Como isso tudo é algo que todos sabem por experiência, limito-me a recorrer a um só exemplo: o das coligações políticas e partidárias que todos os governantes têm que fazer até mesmo por uma questão de governabilidade, o que os obriga – por força da própria lógica interna do processo político – a juntar-se a aliados que muitas vezes encarnam o avesso dos valores políticos que sustentaram, ao longo de muitos anos, a sua prática e principalmente o seu discurso. Muitas vezes não há qualquer afinidade entre os coligados, a não ser o desejo de poder. Nem por isso eles deixam de comemorar a aliança, posando, abraçados e sorridentes, para as câmeras da mídia... Tal prática pode ser considerada politicamente correta no nível tático e também (se não contrariar as normas vigentes sobre a matéria) no nível jurídico, mas dificilmente seria considerada correta do ponto de vista ético. Então, a correção do fazer político, aquela correção tática a que acabo de me referir, às vezes exige, a não ser que o sujeito seja muito ingênuo, determinados comportamentos que, sob o prisma da ética, não podem deixar de ser considerados incorretos. É de conhecimento comum que, na prática política, há momentos em que aferrar-se obstinadamente a princípios éticos, sobretudo quando os outros não o fazem, equivale a oferecer-se como presa. Hobbes já advertira quanto a isso no Leviatã[2], que é de 1651. Como se vê, estou tentando localizar dois níveis nesse “politicamente correto”: um conceitual, de política como deve ser concebida, pensada e praticada, e um real, de política como efetivamente se realiza na vida cotidiana.

Feito esse pequeno esboço dessas duas acepções que o conceito do politicamente correto comporta, passo agora a examinar certas tentativas de fazer vigorar a correção política na vida social, que têm tido por consequência a prática de uma autêntica censura da liberdade de expressão e de criação, bem como do exercício do pensamento crítico.

Antes disso, entretanto, direi algumas palavras sobre a função, a que antes aludi, que o direito vem sendo convocado a desempenhar com vistas à implementação do politicamente correto. Cada vez mais, o direito tem sido convocado a um “engajamento” à “causa” do politicamente correto. Sem dúvida, tal engajamento é, em princípio, extremamente louvável, na medida em que contrapõe sanções jurídicas, inclusive de caráter penal, à prática do racismo e de diferentes espécies de discriminação. O problema é que isso tem efeitos colaterais... Vou fazer um pouco o papel de advogado do diabo no que se refere a isto, vou tentar traçar o perfil de alguns desses efeitos colaterais.

Já houve quem dissesse que o direito vem, em ritmo crescente, ocupando lugar análogo ao da medicalização e das práticas higienistas – tão disseminadas a partir da segunda metade do século XIX, em decorrência do triunfo e do incremento da concepção positivista de ciência. No terreno do direito penal e da criminologia, é dessa época o advento da assim chamada Escola Sociológica, que teve no italiano Enrico Ferri um de seus expoentes, e cujas concepções básicas sobre os delitos e as penas ainda hoje exercem forte influência na definição das normas e das políticas criminais. Segundo essa corrente de pensamento, os atos antijurídicos, especialmente os crimes, vão deixando de ser considerados apenas um mal e ganhando, por extensão da significação, também a conotação de “desvios”, ou mesmo de “doenças”. O crime passa a ser visto como sintoma agudo de uma patologia social. E a pena, por seu turno, antes considerada uma retribuição punitiva, um castigo pela prática de um mal, ou de um pecado, acrescenta a essa acepção a de ser também um remédio para combater a doença. Na linguagem jurídica é corrente o uso da expressão “remédio penal”, ou “tratamento penal”, para designar a função de reeducação e ressocialização entendida como uma espécie de “cura”, que o pensamento moderno colocou no âmago da sanção penal, como seu objetivo primordial. Em certo sentido, é como se se tratasse de uma contaminação pelo crime e de uma descontaminação, uma purgação, uma purificação pela via da pena – o que não deixa de evocar uma lógica jurídica muito arcaica, que vigorou nos primórdios do direito, mas que parece ainda subsistir como um espectro, como um fantasma, bem no fundo da lógica do direito penal moderno, que tanto se orgulha de sua racionalidade.

Esse tipo de concepção, esse esquema mental baseado em oposições binárias como crime/mal x pena/castigo, ou então crime/doença x pena/remédio, no fundo das quais subjaz a oposição normal/anormal, é o pano de fundo das políticas criminais. Cada vez mais, tal esquema tem sido transposto para as políticas de implementação do politicamente correto. A incorreção política é concebida como um mal e, dependendo de sua configuração e gravidade, pode até ser vista como uma espécie de doença social ou doença política. O direito, então – e particularmente o direito penal –, encontra por aí a via de sua legitimação para debelar esse mal e curar essa doença, assumindo papel análogo ao de uma prática médica[3]. Pode alguém argumentar que não há nenhum problema nisso, que é da essência do direito penal moderno comportar uma função “curativa”, e que isso é um avanço em comparação à clássica concepção da pena como pura “expiação”. Não deixa de ser verdade, mas essa prática pode sempre conter erros de dosagem...

Em primeiro lugar, essa tendência a invocar a sanção penal como garantia de efetivação das práticas e comportamentos tidos por politicamente corretos – cujas contrapartidas são a criminalização e a punição das práticas e comportamentos tidos por politicamente incorretos – conduz, necessariamente, a um constante aumento dos tipos penais, isto é, das condutas penalmente tipificadas, o que, por si só, já implica numa hipertrofia do direito penal, bem como numa redefinição (ou indefinição) da categoria “bem jurídico penal”, que quanto mais se elastece mais esvaziada de sentido vai se tornando. Em tal situação, o Estado é cada vez mais convocado a usar seu poder coercitivo para garantir o cumprimento das normas penais, ou seja, é convocado a ampliar seu poder de polícia. Isto pode favorecer a democracia, na medida em que impõe o respeito às diferenças, ainda que à força da coerção. Mas, por outro lado, o incremento do repertório de delitos e do poder de polícia é, por si só, uma ameaça potencial à democracia e ao pleno exercício da cidadania. Não sei se as coisas poderiam ser diferentes, não sei se práticas como a educação para a cidadania no contexto de uma ética de alteridade teriam, no mundo em que vivemos, eficácia suficiente se não para substituir a sanção penal, pelo menos para reduzir ao mínimo a necessidade de sua aplicação. Em todo caso, é nisso que opto por apostar. Mas resta a convicção de que, quanto mais necessário for o recurso a esse modelo que podemos chamar de “terapia penal”, mais evidente ficará a dimensão de sintoma da qual ele é uma expressão aguda. Lembro-me vagamente de ter lido, ainda estudante de Direito, uma passagem em que Rudolf von Ihering dizia que o direito nasceu penal, e todo o seu desenvolvimento consistiu na gradativa superação do direito penal e na diversificação de ramos do direito cuja eficácia social se mediria mais pelo cumprimento espontâneo do que pelo temor da sanção. Nas condições de um direito realmente eficaz, somente em última instância e em raros momentos seria necessário apelar para a sanção penal. Concepção semelhante encontrei na Genealogia da Moral, de Nietzsche[4]. E ainda hoje, na primeira conferência da tarde, escutamos o professor Daniel Achutti defender a minimização do direito penal, chegando mesmo a acenar, no limite, no sentido de uma perspectiva abolicionista, de um “não” radical à pena. Parece, todavia, que estamos indo na contramão desses ensinamentos...

Há uma espécie de “panjuridicidade” nesse movimento todo. Talvez o direito jamais tenha ficado tão em evidência, tenha sido tão instado a dar respostas corretivas às mazelas sociais, e isso não deixa de apontar para a questão dos limites do próprio direito: até onde o direito pode ir e até onde não pode; que barra precisa ser colocada no próprio âmbito de ação do direito. Por exemplo: o direito tem o direito de regular a minha consciência, aquilo que eu penso, as minhas convicções íntimas? Se desejo algo ilícito, esse desejo, por si só, também de reveste de ilicitude? Na distopia 1984, George Orwell apresenta um mundo em que a resposta a essas indagações é afirmativa. Há ali crimes de mero pensamento – o “crimideia”, como ele o designa –, para cujo combate existe uma “polícia do pensamento”. Nesse mundo distópico, pensar em algo criminoso já é, em si mesmo, um crime e, como tal, um fato punível. Será que estamos caminhando em direção a algo semelhante? O direito pode ir até esses extremos de controle social e individual, ou será que há limites anteriores a esse ponto, limites à própria incidência do direito enquanto tal?

Parece que se está fazendo uma opção pela repressão, quando se pode fazer uma opção pela elaboração. Esta é uma questão profundamente psicanalítica. A questão não é recalcar, mas elaborar – o radical dessa palavra é “labor”, trabalho. Onde falta o trabalho simbólico, o que vem é o recalque, com toda a sua expressão sintomática. O direito começa a se imiscuir numa série de coisas que têm mais a ver com o campo do privado do que com o campo do público. O privado é o campo fora da incidência do olhar do outro, da ação do outro. Onde se aniquila a dimensão do privado não pode haver democracia. É preciso colocar limites a essa tentativa de invasão de todas as esferas. O direito, que coloca limite para tudo, precisa colocar também limites para si próprio. O limite do direito não é apenas um limite jurídico, é também um limite ético. E quando se fala de ética se fala da esfera da subjetividade, do desejo, se fala enfim da castração. O perigo maior que vejo está no fato de o direito chamar a si essa função de suprir tudo, de curar tudo e até mesmo, quem sabe, de garantir felicidade. Ainda mais quando vivemos sob a égide do imperativo do gozo. A prática jurídica chega mesmo a se valer do discurso da psicanálise para corroborar indenizações por abandono afetivo, como adiante veremos. Isso é grave. E para ser devidamente pensado é preciso o reconhecimento de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes.

Observe-se, ainda, que, como uma consequência disso que acabo de chamar de “panjuridicidade”, assistimos hoje a um considerável incremento da “judicialização”: por qualquer coisa se recorre ao Judiciário. Parece pairar sobre as relações entre as pessoas, entre as pessoas e as instituições e também entre as instituições umas com as outras uma ameaça permanente: “Cuidado, eu posso te processar”! O grande número de recursos que têm sido recentemente interpostos ao Supremo Tribunal Federal por parte de membros tanto do Executivo quanto do Legislativo, no sentido de obter definição jurídica sobre matérias que em princípio seriam de competência desses próprios Poderes, é um exemplo eloquente da judicialização das relações entre as instituições.

Vou ler agora pequenos trechos de uma carta que escrevi, em 1º de outubro de 2003, ao jovem criminalista Salo de Carvalho. Ele me havia enviado um artigo de sua autoria intitulado A Ferida Narcísica do Direito Penal, que foi publicado no ano seguinte[5], no qual fazia uma abordagem no interior da articulação Direito/Psicanálise, e pedia que lhe desse minha opinião. “A ilusão narcisista da obtenção do controle social pelo incremento da penalização; a maximização do direito penal na contramão da tendência inversa que marcou todo o pensamento moderno” – dizia eu nessa carta –; “a crescente substituição do ‘Estado providência’ pelo ‘Estado penitência’, segundo a lógica da ‘gradual predominância da razão mercadológica em detrimento das garantias sociais’ – o que vai conduzindo à consolidação de um ‘direito penal do Inimigo’ –; tudo isso em articulação com a ‘descartabilidade da pessoa como valor’ (‘certas pessoas simplesmente não servem; sob qualquer ponto de vista não são um benefício, mas um custo’), são temáticas que estão no cerne mesmo da crise penal contemporânea, sem as quais esta sequer pode ser pensada”[6].

No mundo contemporâneo, todo esse estado de coisas possui correspondências com aspectos centrais do modelo neoliberal imposto como “modelo único”, desde o final da década de 1980, em nível praticamente universal, e que, apesar dos recuos que a atual crise do capitalismo financeiro acabou por impor, ainda é amplamente dominante no que concerne à organização econômica, política e jurídica das sociedades e ao modo de vida das pessoas e das coletividades. Com o desmonte do Estado de bem-estar social, largamente praticado em escala global ao longo das duas últimas décadas, na perspectiva da construção de um Estado mínimo quase nos moldes do Estado gendarme fundado na política do “laissez faire, laissez passer”, que exerceu um papel estruturante na concepção de Estado liberal forjada na época da Revolução Francesa, cada vez mais os Estados foram se esvaziando de funções que lhes eram atribuídas como constitutivas de sua própria essência. Mas nem por isso o direito – notadamente o direito penal – deixou de hipertrofiar-se, no afã de atender às demandas que venho tentando delinear ao longo desta exposição. Mas, obedecendo às tendências neoliberais acima esboçadas, outros ramos do direito vêm percorrendo um caminho inverso, isto é, vêm se atrofiando. É o caso daqueles ramos do direito que tradicionalmente se caracterizam como atribuidores e garantidores de direitos, sobretudo os de caráter trabalhista, social e previdenciário. Todos sabem o quanto de direitos arduamente conquistados pelos trabalhadores ao longo dos séculos vem gradualmente sofrendo restrições e limitações e até a supressão pura e simples. Os discursos que procuram legitimar, em nome da “contenção de custos” e da “eficácia competitiva”, essas reduções e supressões de direitos, nunca usam, porém, diretamente, esses termos. Preferem recorrer ao eufemismo “flexibilização” de direitos. E ali onde há demissão em massa de trabalhadores, usam-se metáforas perversas como “enxugar a máquina” e “queimar gorduras”. A linguagem vai exercendo, assim, um papel de escamoteação, de acomodação, de mistificação e de encobrimento, que é justamente aquilo que Marx chamou de ideologia. A ideologia é precisamente esse discurso encobridor, é o discurso que ilude, e quanto mais o sujeito crê no seu mito, mais ele também é capaz de iludir os outros; quanto mais iludido ele próprio está, mais condições ele tem de argumentar bem, para iludir também os outros. Dessa maneira, o direito por um lado encolhe – no que concerne aos direitos garantidores e protetores – e pelo outro se avoluma – no que tange ao controle social pela via do direito penal. Assim, enquanto o direito “providência” míngua, o direito “penitência” cresce! E tudo isso em nome de uma eficácia econômica, porque afinal de contas os direitos trabalhistas são de fato pouco econômicos, têm um custo, e o neoliberalismo vê os direitos pela ótica dos custos. Trabalhador que tem muitos direitos é trabalhador caro; consequentemente, sob tal ótica, é melhor para os empresários produzir suas mercadorias em outro lugar onde os trabalhadores não tenham tantos direitos, porque desse modo eles podem baratear os seus custos e com isso vencer a competição.

Perdoem-me essa digressão para o tema do neoliberalismo. Mas eu precisava situar aquilo de que falava dentro do seu enquadramento histórico concreto, regido pelo ideário neoliberal. É dentro dessas condições históricas que o direito está sendo chamado a intervir, a ocupar aquele lugar de medicalização e de higienização a que já me referi. Não é num mundo abstrato; é neste mundo cujas determinações concretas têm a ver com a desigualdade e com a competição como os verdadeiros motores da história contemporânea, bem mais do que a velha luta de classes cuja superação revolucionária Marx e Engels preconizaram.

Voltando então ao artigo de Salo de Carvalho e à carta que lhe dirigi, ele fala, a certa altura, de uma mudança de perspectiva que estaria ocorrendo na atual atribuição de novas funções ao direito penal e que consiste na “substituição de uma forma de controle post factum [que vigorou ao longo de toda a história do direito penal moderno] por um ‘modelo de antecipação do dano via medidas preventivas’ – o que representa uma guinada na posição do sujeito que controla (ou julga controlar). É nessa suposta ‘posição de controle antecipado’ que o sujeito encontrará campo fértil para mergulhar em ilusões narcisistas”.

Alguém pode imaginar que é melhor que assim seja, e desejar que um direito penal preventivo venha substituir o direito penal retributivo. O direito penal, então, que tradicionalmente dá uma resposta na medida em que ocorre um delito, passaria a assumir um papel de antecipação. Tal mudança de posição parece, em princípio, muito louvável; afinal, a sabedoria popular e a prática médica ensinam que é melhor prevenir do que remediar.

Mas em que consiste essa prevenção no campo do direito? Seria compatível com a democracia e a cidadania um direito penal preventivo? Isso não poria em perigo os direitos humanos e fundamentais? A história recente, sobretudo após o atentado ao World Trade Center, em Nova York, em 2001, é pródiga em exemplos de restrições e supressões de direitos e garantias fundamentais em nome da segurança. Processos penais movidos contra suspeitos da prática de atos terroristas têm cerceado ou negado o direito à ampla defesa, ao contraditório, têm confinado alguns acusados em situações desumanas de absoluto isolamento e impossibilidade de contato com seus advogados (Guantánamo já se tornou um exemplo clássico disso), têm corrido muitas vezes em caráter secreto e em condições semelhantes às do Processo kafkiano, e têm recorrido a práticas abusivas e aviltantes de interrogatório, inclusive com recurso à tortura. Tais práticas têm se revestido de um caráter praticamente “oficial”, com a conivência e mesmo com a bênção dos poderes do Estado, aos quais, no entanto, compete garantir a todos os seus direitos, e com a complacência silenciosa – quando não com a aprovação explícita – da grande imprensa e da opinião pública.

Tudo isso constitui uma prática antecipatória em nome da prevenção de delitos com potencial de causar imensos danos, que uma espécie de consenso político, jurídico e social difusamente disseminado tolera e às vezes incentiva, a bem da segurança. Eis aí um conjunto de ações nefastas cometidas em nome do Bem... A insana “guerra ao terrorismo” empreendida pelo ex-presidente norte-americano George W. Bush como reação ao ataque às Torres Gêmeas é um exemplo prototípico dos paroxismos a que pode chegar um direito penal preventivo. A assim chamada “doutrina Bush” propõe sem rebuços a procura de uma “paz perpétua” à custa de uma “guerra permanente”. Se lançarmos sobre tal estado de coisas um olhar psicanalítico, não será difícil constatar que tudo isto tem a ver com uma certa posição subjetiva, que é a posição de evitação de riscos que frequentemente ocupa lugar nuclear na formação dos sintomas neuróticos, em especial na neurose obsessiva: o obsessivo está o tempo todo se prevenindo, se precavendo, acautelando-se contra possíveis calamidades que poderão atingi-lo no futuro, organizando todo um aparato de autodefesa, cercando-se de uma muralha para prevenir riscos de invasão da sua subjetividade. E, num limite ainda mais extremo, essa posição de controle antecipado atinge um patamar delirante na estrutura da paranoia: o paranoico projeta para o outro o perigo que o ameaça a partir de dentro e se reposiciona como aquele que vai eliminar o perigo preventivamente, eliminando o outro. Nessa posição subjetiva em que o sujeito teme o ataque iminente do outro, nada parece mais razoável do que antecipar-se e atacar preventivamente esse outro, para destruí-lo e com isso conjurar o perigo. Isto me faz recordar uma passagem de Hobbes, em que ele diz que uma das três causas essenciais da guerra é a desconfiança, que leva logicamente à antecipação, porque, se começo a desconfiar que meu vizinho se prepara para atacar-me, o mais razoável, se disponho de poder suficiente para tanto, é ir logo lá e destruí-lo[7]. Haveria aí uma como que legítima defesa prévia, e é precisamente esse conceito que fundamenta e busca legitimar a “guerra preventiva” preconizada pela doutrina Bush, bem como a autorização que o governo norte-americano concede a si próprio e a seus agentes – e isto desde muito antes dos ataques de 11 de setembro – no sentido de assassinar “terroristas” e de intervir militarmente em outros países. Fica claro, dentro de todo esse contexto, que o terror que tanto se quer exorcizar é a condição de possibilidade da guerra que supostamente o exorcizaria. É necessário que haja o terror, para que possam ser tomadas as medidas preventivas contra ele. Sua existência é necessária para que a guerra possa continuar...

Ainda a propósito dos riscos que uma política de controle antecipado acarreta, o filósofo italiano Giorgio Agamben sustenta que uma das principais características de muitos Estados contemporâneos é constituírem-se, “mais do que como garantidores e administradores da ordem”, como “máquinas de produção e gestão da desordem – que permitem intervenções que lhes dão legitimidade e poder”. Nesse sentido, “no cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social”. No mundo atual, “os governos são cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. [...] Em um de seus cursos no Collège de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. [...] Não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental da política mundial. [...] Trata-se de criar zonas de desordem permanente que permitem intervenções constantes orientadas pela direção que se julgar útil”[8]. Então, criar as condições de medo, para poder se autorizar como aquele que vai tomar as medidas necessárias para proteger a todos contra o que é apontado como causa desse medo, pertence cada vez mais à lógica do poder. Os governantes dizem que fizeram muito para proteger a sociedade contra os perigos; os oposicionistas, por sua vez, acusam os governantes de terem feito pouco e prometem que, se eles ganharem as próximas eleições, aí mesmo é que a coisa vai endurecer contra os terroristas... Só que terrorista não traz, como se diz, letreiro na testa, e afinal de contas circunstancialmente pode vir a ser qualquer um.

Muito bem, então esse é um ponto que eu quis trabalhar aqui, e enquanto fazia estas últimas articulações eu me lembrei de uma passagem que li certa vez em Hobbes, e acho que para qualquer jurista e mais ainda para quem trabalha com direito penal se trata de algo interessantíssimo que dá muita matéria para reflexão: “condenar se parece mais com fazer justiça do que absolver”[9]. Mas se o sujeito é inocente, fazer justiça não é condenar, e sim absolver. O que se observa concretamente, entretanto, em especial naqueles crimes que causam comoção pública, é que grande quantidade de pessoas, em sintonia com a condenação prévia que a mídia propala, comparece ao julgamento para fazer pressão para condenação. Mas raramente se vê o contrário, uma pressão para absolver um acusado que a opinião pública se incline a considerar inocente, como aconteceu na França no final do século XIX, no famoso caso Dreyfus, que Émile Zola imortalizou no panfleto J’accuse. Por que será que assim acontece? Haverá alguma espécie de desejo de expiação que a condenação satisfaz e a absolvição não satisfaz de maneira nenhuma? De todo modo, o próprio uso corrente da linguagem dá testemunho de que é assim que as coisas acontecem. Só se diz, por exemplo, que alguém foi justiçado quando ele é condenado, quase nunca se diz de um absolvido que ele foi justiçado.

Para concluir, vou invocar alguns casos concretos que me parecem evidenciar a prática, em grau crescente, de uma censura da expressão linguageira – da linguagem coloquial e também da linguagem literária e artística – como meio para a implementação do politicamente correto.

Inúmeras têm sido as censuras, às vezes com efeito retroativo, a textos de opinião e a obras literárias para purgá-las de passagens consideradas preconceituosas e racistas. Em nome de tão bons propósitos, já foram reescritos, em novas edições, trechos de inúmeras obras, entre as quais algumas de Monteiro Lobato. Há uns dois ou três anos, houve nos Estados Unidos uma reedição do clássico As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, cuja primeira edição fora publicada em 1885 e cuja história é ambientada no Sul, por volta das décadas de 1830 e 1840, ou seja, ainda na vigência da escravidão naquele país. Essa nova edição tenta desconectar o enredo do seu contexto escravista e o faz utilizando, entre outros recursos, o de eliminar ou substituir a palavra “negro”, usada centenas de vezes no livro. A mim parece evidente que ninguém tem o direito de reescrever obras alheias e pouquíssimos têm competência para fazê-lo, mormente quando se trata de uma obra-prima literária. A propósito, não pertence de modo algum ao fazer literário a obrigação de possuir um conteúdo “correto”, ou “edificante”; a boa literatura não tem que trazer necessariamente uma “mensagem”, uma “lição”, ou um conteúdo moralmente educativo. Como disse Carlo Guinzburg, “as intenções são basicamente irrelevantes. Mesmo com uma ideologia ruim, você pode escrever um bom romance”[10]. É este o ponto que estou tentando pôr em evidência: como, em nome de combater o racismo, a discriminação, o preconceito – combate esse que, evidentemente, é absolutamente legítimo –, tomam-se medidas que são por si mesmas autoritárias e portadoras de violência simbólica. Até mesmo dizer que um time de futebol é da segunda divisão se tornou politicamente incorreto. Deve-se dizer que ele é da série B. Ora bolas, literalmente!

Em março de 2012, li na internet que uma organização não governamental italiana acabara de propor que a Divina Comédia, de Dante Alighieri, fosse banida das escolas, sob o pretexto de que conteria passagens preconceituosas contra os muçulmanos e contra os homossexuais, cuja leitura seria, portanto, nociva à formação dos jovens. Será que não se percebe que há, em todas essas tentativas de “atualizar” textos de outras épocas para conformá-los à moral política contemporânea, evidentes anacronismos que somente a estupidez de um “furor sanandi” poderia explicar?

Em discurso de posse como membro efetivo da Academia Maranhense de Letras, que proferi em 13 de dezembro de 2011, afirmei o seguinte a respeito dessa censura da liberdade de expressão (que, em princípio, é, por si só, politicamente incorreta) a serviço, pretensamente, do politicamente correto: “Em nome do politicamente correto, eufemismos são cunhados para mascarar ou denegar realidades que se vêm tornando insuportáveis num mundo cada vez mais dominado pela ideologia do êxito, da imagem e da fruição de um gozo sem restrições. É assim que quase já não se diz que alguém é ‘velho’, ou mesmo ‘idoso’, mas sim que se encontra na ‘melhor idade’. Os partidários de tais patrulhamentos da linguagem coloquial parecem não se dar conta da ironia e mesmo do sarcasmo que tais eufemismos podem recobrir. No caso, como se o melhor da vida fosse ir chegando ao fim...”. E teci o seguinte comentário: “É como se estivéssemos vivendo um momento padrão, cujas concepções éticas e políticas fossem definitivas e pudessem servir de parâmetro para a avaliação de toda a História, com a projeção para o passado de nossas convicções atuais – tão instáveis e contraditórias para nós mesmos, por sinal –, numa espécie de juízo final. É como se tivéssemos chegado, enfim, a um patamar ‘último’ de verdade ética que nos permitisse corrigir retrospectivamente todo o passado. Ora, tal suposição é intrinsecamente autoritária. Em sua magnífica distopia 1984, George Orwell nos descreve uma sociedade totalitária na qual, a partir da imposição e da aceitação acrítica da crença de que os tempos atuais, posteriores à Revolução, são em tudo melhores que os tempos anteriores, a história é permanentemente reescrita e os dados estatísticos, permanentemente manipulados, para assegurar a ‘veracidade’ daquela afirmação. E nos fala também da ‘Novilíngua’, que é a mesma língua de antes da Revolução, mas com significados unívocos para cada um dos seus termos, cada um dos quais só podendo ter um significado – o que era obtido pela supressão de sinônimos, de metáforas, metonímias e toda forma de linguagem figurada, ou seja, pela supressão de qualquer possibilidade de expressão poética no uso da língua. O adjetivo ‘livre’, por exemplo, só poderia ser usado em sentido análogo ao de quando se diz que ‘este cachorro está livre de pulgas’, ou ‘este jardim está livre de ervas daninhas’. Não podia ser utilizado em seu antigo sentido de ‘politicamente livre’ ou ‘intelectualmente livre!’[11].

Em maio deste ano de 2012, a imprensa deu destaque a uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, determinando a um pai que indenizasse por danos morais uma filha de 38 anos de idade por abandono afetivo, indenização essa na quantia de duzentos mil reais, sob o argumento de que esse pai durante toda a vida negou amor a essa filha. Eis aí o ponto: eu pergunto, logo de saída, o que o direito tem a ver com isso, ou seja, se é da sua competência imiscuir-se em questões tão privadas como o amor entre pais e filhos. Onde está a equivalência simbólica entre a alegada falta de amor e o dinheiro da indenização? Qual é o psicanalista que não sabe, e aliás quem é que não sabe muito bem, inclusive por experiência própria, que as relações entre pais e filhos, profundamente carregadas de afeto, são bastante conflituosas, além de intrinsecamente, mesmo nos melhores casos, marcadas pela culpa? Que não há quem não se queixe de um déficit afetivo, de nunca se sentir suficientemente amado como gostaria de ser ou como julga que merece. Se essa moda pega, vai todo mundo ter de indenizar todo mundo... Pouco depois da divulgação da decisão do tribunal, a Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro fez circular entre seus membros um interessante artigo da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, cujo título por si só nos fornece elementos para pensar essa questão: “É possível obrigar um pai a ser pai? A ‘filha abandonada’ encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai”. Nesse artigo a autora propõe a pergunta crucial: “É possível – e desejável – que um pai seja condenado por falta de afeto?”. E situa a questão no seu contexto: “Mas esta, decididamente, não é a hora dos pais. Os filhos reinam absolutos neste momento histórico, com o apoio irrestrito do Estado”. E mais adiante indaga: “Como um juiz pode determinar o que é ‘abandono afetivo’ em uma relação complexa como a de pais e filhos? E por que o Estado deveria fazer isso? E por que deveríamos achar legítimo que o faça? [...] Luciane [a filha] se coloca numa posição infantilizada. E me parece que ela encarna a posição infantilizada na qual todos nós nos colocamos ao permitir que o Estado legisle e arbitre sobre como devemos amar ou como devemos educar um filho. Como se jamais nos tornássemos adultos, na medida em que precisamos de um Estado-pai para nos dizer o que fazer. Um Estado que cada vez mais se arma do direito de entrar dentro das nossas casas e determinar como devemos viver. [...] Acho grave que a Justiça considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima e de menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A vida é mais complicada do que isso. As implicações públicas da decisão do STJ, na minha opinião uma decisão desvairada, ecoarão na vida de todos nós”[12]. A autora menciona ainda a declaração de uma ministra do STJ, segundo a qual a decisão do tribunal teria se limitado a “analisar os sentimentos das pessoas”. Mas desde quando o Judiciário ou qualquer outro poder do Estado tem o direito de julgar sentimentos “e desferir punições pela ausência ou excesso de sentimentos”? Orwell nos fala de uma “polícia do pensamento”. Estaremos nós querendo ir além, criando uma “polícia do sentimento”? Não é pavorosa essa intromissão crescente do Estado na vida privada, sempre em nome do Bem? Em situações como essa eu tenho me perguntado: “Quem me protegerá da bondade dos bons?”.

Quais serão os próximos passos? Vão eliminar os charutos das fotografias de Freud a pretexto de que são um mau exemplo para a juventude? Vão retirar da Política de Aristóteles as passagens em que ele fala de escravos por natureza, ou aquelas em que ele afirma que as mulheres, também por natureza, têm um déficit de liberdade em relação aos homens, sob o argumento de que são afirmações racistas e machistas? Mas o que adjetivos como “machista”, ou “racista” – cujas conotações negativas foram forjadas dentro do contexto de uma axiologia política e ética moderna – podem significar se os fizermos recuar mais de dois mil anos e os projetarmos para os tempos da Grécia clássica? Não haverá nisso um evidente anacronismo e uma transposição abusiva de um significante para uma época em que ele simplesmente não cabe, porque, assim descontextualizado, carece de qualquer sentido?

Para finalizar – e também para nos divertirmos um pouco –, menciono um caso em que o afã de incrementar o politicamente correto no terreno das relações de gênero chegou ao nível do bizarro e do risível. Há alguns meses, li, estarrecido, que na Suécia – país que tem a maior proporção de mulheres inseridas no mercado de trabalho e que é considerado o de menor desigualdade de gênero – há uma ampla discussão sobre a igualdade de gênero levada à linguagem. Uma das mais importantes propostas consiste na substituição de “han” (ele) e “hon” (ela) por “hen”, que é do gênero neutro*. “O gênero neutro é parte de um movimento maior de busca por igualdade na Suécia. [...] Na escola-modelo Egalia, é uma preocupação desde os anos 2000 – quando os professores passaram a gravar as aulas uns dos outros. ‘Ficamos desapontados ao ver que tratávamos meninos e meninas de maneira diferente’, diz a diretora Lotta Rajalin. Hoje, a escola diz combater não o gênero biológico, mas o cultural. ‘Não tentamos fazer as crianças se esquecerem de seus sexos, mas do que é esperado deles. [...] É uma questão de democracia’”[13]. Ora, justamente o que não é é uma questão de democracia. Esta, como já vimos, é do campo da diferença, e não da negação da diferença. Essa negação da diferença sexual obtida ao custo de uma neutralização das palavras, longe de ser uma afirmação da democracia, me parece um mecanismo análogo ao recalque. Eis o politicamente correto levado à tentativa de apagamento da diferença sexual!


Notas e Referências:

AGAMBEN, Giorgio. A política da profanação: Entrevista concedida a Vladimir Safatle. In: Jornal Folha de São Paulo, 18 de setembro de 2005, caderno Mais!

BERCITO, Diogo. Por igualdade de sexos, Suécia debate criação de gênero neutro. In: Jornal Folha de São Paulo, 28 de abril de 2012, caderno A.

BRUM, Eliane. É possível obrigar um pai a ser pai? A ‘filha abandonada’ encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai. [através de mensagem eletrônica pessoal]. Mensagem recebida por: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho, em 15/05/2012, às 13:28 horas, pela Secretaria da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro (secretaria@escolalacaniana.com.br).

CARVALHO, Salo de. A ferida narcísica do direito penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal nas sociedades contemporâneas). In: GAUER, Ruth M. Chittó (organizadora). A Qualidade do Tempo: para além das Aparências Históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 179-211.

GUINZBURG, Carlo. Sou quase obcecado pela prova. Entrevista ao jornalista Bernardo Guimarães. In: Jornal Folha de São Paulo, 28 de novembro de 2010, caderno Ilustríssima.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral (1887). São Paulo: Moraes, 1991, II, X.

ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.

* Texto estabelecido a partir da gravação de conferência proferida oralmente por ocasião da III Jornada de Psicanálise e Direito, sob o tema “A Violência Hoje: Possíveis Formas de Reparação”, promovida pela Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, pela Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Espírito Santo e pela Faculdade de Direito de Vitória. Foi debatedora a psicanalista Ruth Ferreira Bastos, da ELPV. Vitória (ES), 27 de outubro de 2012.

Publicado em: VESCOVI, Renata Conde (organizadora). Psicanálise e Direito: uma Abordagem Interdisciplinar sobre Ética, Direito e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud; Vitória: Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, 2013, p. 51-70.

[1] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 10, 11.

[2] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. XV, p. 94.

[3] Mesmo grupos sociais tidos por “libertários” não hesitam em invocar, quando lhes convém, a criminalização de condutas que eles julgam que os discriminam, bem como a correspondente sanção penal enquanto mescla de cura e expiação. Por exemplo: O tema central da Parada Gay realizada em São Paulo no dia 10 de julho de 2012 foi “Homofobia tem cura: educação e criminalização”. É interessante notar que, ali onde antes a homossexualidade era posta no lugar da doença, agora é a homofobia que é posta nesse lugar, mas doença que tem cura, e os caminhos para essa cura são, de um lado, o da educação, da pedagogia, e, do outro, o da criminalização, da punição.

[4] “O aplacar a cólera dos prejudicados, o localizar o caso para evitar distúrbios, e procurar equivalência para harmonizar tudo (compositio) e principalmente o considerar toda a infração como ‘expiável’ e isolar portanto o delinquente do seu delito, tais são os rasgos que caracterizam o ulterior desenvolvimento do direito penal. À medida, pois, que aumenta numa sociedade o poder e a consciência individual, vai-se suavizando o direito penal, e, pelo contrário, enquanto se manifesta uma fraqueza ou um grande perigo, reaparecem a seguir os mais rigorosos castigos”. NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral (1887).  São Paulo: Moraes, 1991, II, X, p. 41.

[5] CARVALHO, Salo de. “A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal nas sociedades contemporâneas)”. IN: GAUER, Ruth M. Chittó (organizadora). A Qualidade do Tempo: para além das Aparências Históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 179-211.

[6] Os trechos entre aspas simples pertencem ao artigo de Salo de Carvalho.

[7] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Op. cit., cap. XIII, p. 75.

[8] AGAMBEN, Giorgio. “A Política da Profanação”. Entrevista concedida a Vladimir Safatle. IN: Jornal Folha de São Paulo, 18 de setembro de 2005, caderno Mais!, p. 4-5.

[9] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Op. cit., cap. XXVIII.

[10] GUINZBURG, Carlo. “Sou quase Obcecado pela Prova”. Entrevista ao jornalista Bernardo Guimarães. IN: Jornal Folha de São Paulo, 28 de novembro de 2010, caderno Ilustríssima, p. 6.

[11] ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003, p. 288.

[12] BRUM, Eliane. “É possível obrigar um pai a ser pai? A ‘filha abandonada’ encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai”. [através de mensagem eletrônica pessoal]. Mensagem recebida por: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho, em 15/05/2012, às 13:28 horas, pela Secretaria da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro (secretaria@escolalacaniana.com.br).

* Se quisermos brincar um pouco com as palavras, transpondo o exemplo para a língua portuguesa – que não possui, como o sueco e o inglês, pronomes pessoais neutros, mas possui pronomes demonstrativos neutros, como “isto”, “isso” e “aquilo” –, podemos imaginar que, em vigorando essa nova regra, não mais poderíamos dizer, por exemplo, “ele saiu para se encontrar com ela”, mas sim “isso saiu para se encontrar com aquilo”!

[13] BERCITO, Diogo. “Por Igualdade de Sexos, Suécia Debate Criação de Gênero Neutro”. IN: Jornal Folha de São Paulo, 28 de abril de 2012, caderno A, p. 16.


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