A cegueira deliberada na lava - jato

15/11/2015

Por Robson A. Galvão da Silva e Christian Laufer - 15/11/2015

Em sentença proferida no dia 29/10/2015, Ivan Vermon Gomes Torres Júnior foi condenado a cinco anos de reclusão e 16 dias-multa pela prática, por 98 vezes, do crime de lavagem de dinheiro (art. 1o, caput, inc. V, da Lei n. 9.61398). A conduta a ele atribuída foi a de ter cedido sua conta corrente, no número referido de vezes, para que Pedro Correa, um dos líderes do Partido Progressista e de quem era assessor, pudesse receber valores decorrentes do suposto esquema criminoso da Petrobrás. O Dr. Juiz afirmou ser possível que Ivan desconhecesse em detalhes o esquema criminoso na estatal. Porém, o fato de ele ter recebido depósitos em sua conta, sem origem identificada, era suficiente para alertá-lo da origem criminosa dos recursos recebidos, especialmente depois de 2006, quando Pedro Correa teve seu mandato parlamentar cassado por estar envolvido em atividades ilícitas.

O que chama a atenção especificamente para esta condenação é o embasamento jurídico utilizado pelo Dr. Juiz, que pode ser assim sintetizado: a) para a análise das imputações feitas a Ivan, são pertinentes as construções da teoria da cegueira deliberada, “o que é equiparável ao dolo eventual da tradição do Direito Continental europeu”; b) para tal teoria, aquele que realiza condutas típicas de lavagem, de ocultação ou dissimulação, “não elide o agir doloso e a sua responsabilidade criminal se escolhe permanecer ignorante quanto à natureza dos bens, direitos ou valores envolvidos na transação quando tinha condições de aprofundar os seus conhecimentos sobre os fatos”; c) a teoria da cegueira deliberada, apesar de constituir construção da common law, foi assimilada pelo Supremo Tribunal Espanhol, corte de tradição da civil law, em casos de tráfico de drogas e lavagem, dentre outros; d) a jurisprudência do TRF da 4a Região já empregou o mesmo conceito para condenações por crimes de contrabando e descaminho (motorista de veículo que transportava drogas, arma e munição, optando por permanecer ignorante quanto ao objeto da carga).

Diante disso, de maneira alheia à discussão fática probatória do caso em referência (que ainda se encontra sub judice), pretende-se tecer breves considerações sobre a teoria da cegueira deliberada e sua aplicação no Direito Penal brasileiro.

A jurisprudência dos EUA, ao longo do último século[1], construiu o raciocínio segundo o qual atua dolosamente o agente que preenche o tipo objetivo ignorando algumas peculiaridades do caso concreto por ter se colocado voluntariamente numa posição de alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas.

Como bem referiu o Dr. Juiz na sentença referida, fora do sistema da common law, o Tribunal Constitucional da Espanha vem acatando esse entendimento (há mais de 15 anos[2]), no sentido de dizer que atua dolosamente quem pratica o núcleo do tipo, diante de uma situação suspeita, colocando-se em condição de ignorância, sem se importar em conhecer mais a fundo as circunstâncias de fato.

O tema também não é novo na jurisprudência brasileira. A teoria da cegueira deliberada foi referida, inicialmente, na sentença em que foram julgados os supostos autores e partícipes do furto de mais de R$ 160 milhões dos cofres do Banco Central em Fortaleza/CE. Dentre os acusados, estavam dois vendedores de carros que realizaram negócios com os supostos ladrões, recebendo altas somas de dinheiro vivo em troca das mercadorias. Ao considerar que o furto foi praticado por uma organização criminosa (enquadrando-se na hipótese do artigo 1º, inciso VII, da Lei n. 9.613/98 – redação vigente à época), o juiz singular, aplicando a teoria da cegueira deliberada, condenou os dois comerciantes por lavagem. Asseverou que eles agiram com indiferença à estranheza da negociação realizada com dinheiro em espécie, assumindo o risco de vender automóveis em troca de dinheiro sujo. Em segunda instância, o TRF da 5ª Região afirmou expressamente que “a doutrina da cegueira deliberada é aplicável a todos os delitos que admitam o dolo eventual”. Contudo, como a imputação dizia respeito ao artigo 1º, § 2º, inciso I, da Lei de Lavagem de Dinheiro, que, para aquela Corte, só admitiria o dolo direto, reformou-se a sentença de primeira instância[3].

No julgamento do “caso do mensalão” (ação penal 470), embora o STF não tenha enfrentado diretamente o tema, os ministros Celso de Mello e Rosa Weber, em seus votos, fizeram referência à teoria da cegueira deliberada.

Com relação à sentença da operação lava-jato em referência, é imprescindível analisar, antes de se tratar especificamente da teoria da cegueira deliberada, essa questão que há muito vem sendo debatida pela doutrina e jurisprudência brasileiras: a admissibilidade ou não do dolo eventual para os crimes de lavagem de dinheiro.

Segundo MAURACH e ZIPF, quando se fala no Código Penal alemão de crime doloso, normalmente abrange-se dolo direto e dolo eventual. Somente em casos excepcionais determinados tipos pretendem abranger unicamente o dolo direto, excluindo o dolo eventual. A figura típica não abrange o dolo eventual, por exemplo, quando emprega termos como “para”, “com o fim de”, ou quando usa o termo “intenção”.[4]

No Brasil e especificamente sobre a lavagem de dinheiro, BADARÓ e BOTTINI, mediante uma interpretação sistemática e de política criminal, defendem que o agente deve ter consciência clara da origem ilícita dos bens para a lavagem de dinheiro na forma do caput do art. 1º, sendo o dolo eventual admissível apenas nos casos descritos no parágrafo 2º, inciso I, da Lei.[5]

Todavia, no julgamento do caso do mensalão (ação penal 470), o STF adotou posicionamento diferente, admitindo o dolo eventual em todas as formas de lavagem de dinheiro. Obviamente tal questão precisa ser mais bem analisada e debatida até que haja um posicionamento firme e consolidado. Todavia, como já existe significativa corrente jurisprudencial que admite o dolo eventual para todos os crimes de lavagem de dinheiro, passa a ser relevante a discussão sobre a aplicação da teoria da cegueira deliberada para esses tipos penais.

Isso porque, como fez o Dr. Juiz na referida sentença da operação lava-jato, costuma-se aproximar o problema da cegueira deliberada das teorizações sobre dolo eventual. Cabe perquirir se, segundo o ordenamento pátrio, atua com dolo aquele que, diante de situações suspeitas, age de modo a possivelmente praticar o tipo objetivo sem se importar em conhecer mais a fundo as circunstâncias de fato.

Desde já, cabe assentar uma premissa: quando se trata de ignorância deliberada, fala-se sempre em “certo grau de suspeita a respeito das circunstâncias de fato”. O sujeito tem alguma noção daquilo que o rodeia, chegando a suspeitar da existência de alguma ilegalidade. A ignorância intencional se dá a respeito apenas de eventuais conhecimentos adicionais que poderiam vir a ser conhecidos caso o agente empreendesse uma investigação, ainda que sucinta.

A questão atinente à definição do dolo eventual e sua diferenciação da culpa consciente é uma das mais difíceis e debatidas em Direito Penal. Há teorias que trabalham com critérios fundados no elemento volitivo, podendo-se citar a do consentimento, a da indiferença e a da vontade de evitação não comprovada. De outro lado, há os que entendem que critérios fundados na representação seriam mais precisos: teoria da possibilidade, teoria da probabilidade, teoria do risco e a teoria do perigo protegido. Finalmente, existem as teorias igualitárias.[6]

No Brasil o dolo eventual é conceituado legalmente a partir da assunção do risco de produzir o resultado da ação típica (artigo 18, inciso I, CP). Todavia, é claro que essa modalidade dolosa também exige o elemento cognitivo. Em primeiro lugar, porque é impossível, logicamente, assumir o risco de produzir o resultado daquilo que não se conhece, ao menos minimamente. Em segundo, porque o próprio artigo 20 do CP prevê que o erro sobre elemento constitutivo do tipo exclui o dolo. A grande questão é delimitar qual o grau de representação dos elementos objetivos deve ser exigido do agente no momento da conduta.

Ainda que se admita, em algumas das teorias acima referidas, o dolo eventual em casos de dúvida acerca de elementos do tipo objetivo, é certo que se exige o efetivo conhecimento acerca de um mínimo de circunstâncias de fato: ou se tem certo conhecimento de elementos do tipo objetivo, quando se poderá falar em dolo (direto ou eventual), ou não se tem.

Isso porque o “conhecimento potencial dos elementos do tipo objetivo” não configura o dolo eventual, diferentemente do que ocorre com o “conhecimento potencial da antijuridicidade” do fato, que enseja a culpabilidade. O mínimo de representação das circunstâncias do tipo objetivo deverá estar efetivamente presente no momento da conduta, não se aceitando que o agente pudesse “vir a ter esse conhecimento mínimo” exigido caso se esforçasse para tanto.

Neste ponto, todavia, cabe indagar: tratando-se de situações suspeitas, qual é o grau de conhecimento que permite diferenciar o dolo eventual da culpa consciente? A resposta a essa pergunta, segundo se entende, dependerá das circunstâncias de cada caso concreto, quando então será possível avaliar qual o grau de ciência das circunstâncias de fato, no momento em que se praticou a conduta descrita no tipo objetivo.

Em verdade, o problema não é o fato de o agente não se aprofundar no conhecimento, até porque a lei, em regra, não obriga que se efetue tal investigação. A resposta estará no grau de conhecimento que o autor efetivamente possui ao cometer o tipo objetivo: se há sérios indícios (representados no intelecto), poderá haver dolo eventual, independentemente de o agente ir além na investigação. Afinal, nessa hipótese, o autor terá o “conhecimento necessário das pertinentes circunstâncias do fato”, suficiente para a caracterização do dolo eventual. Porém, na ausência desses sérios indícios, não há dolo, pelo simples fato de que o conhecimento exigível para a configuração de qualquer espécie dolosa deve ser sempre atual, e não potencial.

Ao se tratar da “cegueira deliberada” no Brasil, tem havido uma inversão na ordem de importância do que efetivamente deve ser analisado. Prioriza-se aquilo que o sujeito não sabe (os conhecimentos adicionais potencialmente alcançáveis), ao invés de estudar-se aquilo que está devidamente representado pelo autor ao decidir prosseguir agindo. É certo que sempre será possível ao agente conhecer mais a fundo as circunstâncias do caso concreto, motivo pelo qual não é correto enaltecer aquilo que o sujeito poderia vir a conhecer.

Chama a atenção o fato de que a teoria da cegueira deliberada esteja sendo utilizada em decisões de casos relevantes no Brasil sem que existam estudos mais aprofundados sobre ela diante do cenário do ordenamento jurídico pátrio. No mencionado voto da ministra Rosa Weber, por exemplo, foram referidas algumas cautelas e critérios para a aplicação dessa teoria: a) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que bens, direitos ou valores provenham de crimes; b) o atuar de forma indiferente a esse conhecimento; c) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa.

Apesar disso, o que não se pode perder de vista é que a translação dessa doutrina a sistemas jurídicos, como o brasileiro, gera problemas dentro do ordenamento vigente de imputação subjetiva, baseado na distinção entre culpa e dolo. No sistema jurídico-penal pátrio deve-se ter muito claro que tudo o que integra essa cegueira, ou seja, todos os elementos de fato que não são representados pelo agente, por intencionalidade ou não, não integram o elemento intelectual do dolo. Não é admissível querer equiparar a ignorância deliberada com o conhecimento real. São situações diferentes e como tal devem ser tratadas.

A admissão do dolo eventual para todos os crimes de lavagem de dinheiro, indiscriminadamente, já parece pouco recomendável. Seu reconhecimento na forma da cegueira deliberada parece ainda menos adequado a um sistema penal pautado pelo princípio da culpabilidade[7], especialmente quando ainda não há estudos e debates mais aprofundados sobre os impactos da importação dessa teoria no sistema jurídico vigente. As próprias teorias a respeito do dolo eventual (teorias da vontade, da representação e igualitárias) trazem um aparato teórico muito mais relevante para a resolução desses casos concretos do que a teoria da cegueira deliberada, importada de sistemas jurídicos completamente diferentes do brasileiro – e que nem mesmo nos países da common law escapam de severas críticas.


Notas e Referências:

[1] A teoria da willful blindness foi utilizada, pela primeira vez, na Inglaterra, em 1861. Cf. RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007. p. 65 e ss.

[2] O primeiro pronunciamento do Tribunal Supremo da Espanha deu-se em 10 de janeiro de 2000. Cf. RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Op. cit. p. 23/24.

[3] Sentença proferida nos autos n. 2005.81.00.014586-0, da 11ª Vara Federal da Subseção de Fortaleza, Seção Judiciária do Ceará. Acórdão proferido pelo TRF da 5ª Região, 2ª Turma, na Apelação Criminal ACR5520-CE, Relator Des. Federal Francisco Barros Dias, publicada no DJU de 22/10/2008.

[4] MAURACH, Reinarth; ZIPF, Heinz. Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires: Astrea, 1994. p. 392.

[5] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos Penais e Processuais Penais. São Paulo: Editos Revista dos Tribunais, 2012. p. 92.

[6] Sobre o assunto, vide SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2008. p. 145 e ss. Neste tema, vale também citar o seguinte texto: PUPPE, Ingeborg. Dolo Eventual e Culpa Consciente. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 58. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, janeiro-fevereiro de 2006. p. 114-132.

[7] Exatamente por isso é que autores como Bottini e Badaró procuram enumerar requisitos claros e seguros para que, no caso concreto, seja possível igualar a cegueira deliberada ao dolo eventual dos artigos 18, I, segunda parte, e 20, do Código Penal. Especificamente para a lavagem de dinheiro, e no que tange à prática deste crime no âmbito de grandes corporações, os critérios sugeridos seriam os seguintes: a) a criação consciente e voluntária de mecanismos que obstem o conhecimento de sinais sobre a procedência criminosa dos bens e/ou valores; b) representação da possibilidade da evitação recair sobre atos de branqueamento de capitais. Neste sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Ob. Cit. p. 94 e ss.


Robson A. Galvão da Silva

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Robson A. Galvão da Silva é Mestre em Direito Econômico pela PUC-PR, professor de Direito Penal e Criminologia, advogado criminalista.

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Christian Laufer

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Christian Laufer é Mestre em Direito Público pela UFPR, professor do Centro Universitário Curitiba, advogado criminalista.

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Imagem Ilustrativa do Post: Sightless in Krakow // Foto de: Bill Tyne // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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