A CARTEIRADA... na base do “L'État c'est moi”.... e o crime de desacato!!

20/12/2016

Por Paulo César de Oliveira – 20/12/2016

Aos mais apressados, não houve “abolitio criminis” do tipo penal de desacato (Art. 331, CP), guardemos essa primeira informação.

De fato, ainda não há lei veiculando a supressão da figura típica do desacato do nosso ordenamento jurídico, bem como não houve, ainda, por parte da Corte Suprema, o reconhecimento de que este tipo penal não tenha sido recepcionado pela ordem constitucional de 1988. Entretanto, a atuação do Poder Judiciário não poderia ser inibida no que tange a verificação da inconformidade entre o tipo penal de desacato (art. 331, CP) e o Pacto de São José da Costa Rica (CADH, Art. 13). Recordemos que dito pacto adentrou no nosso ordenamento com status de supralegalidade, estando um degrau acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição (STF/RE 466.343, Rel. Ministro CEZAR PELUSO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 3/12/2008, DJe 4/6/2009 e STJ/REsp 914.253/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, CORTE ESPECIAL, julgado em 2/12/2009, DJe 04/2/2010).

Como segunda informação, é preciso salientar que a adequação das normas legais aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos (de quórum qualificado, com status de emenda constitucional), adotados pelo Direito Pátrio, configura controle de constitucionalidade, o que não é o caso à ser tratado nessa oportunidade (o alvo aqui é o Controle de Convencionalidade).

O “decisum” do Tribunal da cidadania (STJ/RESP n° 1.640.084/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS) será o “leading case” (Se for enfrentado pelo STF, em sede de controle concentrado, poderá construir uma regra importante, criando um precedente, com força obrigatória para casos futuros) que servirá de parâmetro doravante às discussões acerca da aplicação, ou não, aos casos futuros envolvendo a figura penal do desacato (O STJ enfrentou o tema em sede de controle difuso de convencionalidade).

É fato que a criminalização do desacato está na “contramão do humanismo” (Ministro RIBEIRO DANTAS), disso não se duvida, pois há uma notória preponderância do Estado (os agentes públicos são o Estado em concreto) sobre o indivíduo. Não há como se tolerar, em uma sociedade democrática, que personalidades políticas e públicas não possam estar expostas a críticas. Princípios democráticos exigem a eliminação de leis que apresentem conteúdos autoritários, notadamente aqueles herdados de épocas de exceção.

Nas palavras do Relator, no voto que conduziu a decisão de invalidade do crime de desacato, o tipo penal do art. 331, CP, muito embora autoridades e servidores públicos continuem a usar como justificativa ser ele um importante meio para conter a violência contra si, estabelece, na prática, um lamentável mecanismo de censura em detrimento da livre manifestação de pensamento.

A má prestação do serviço público, por exemplo, a saber, o mau atendimento a usuários desses serviços, as atitudes grosseiras ou incompatíveis com a urbanidade (ofensas com palavras de baixo calão), as famigeradas “carteiradas” (“Você sabe com quem está falando?”) etc., é um sintoma do quão inoportuno é a manutenção desse tipo penal. Vale lembrar que as ofensas podem ser uma via de mão dupla, pois o servidor público que maltrata (com palavras, pois se degringolar para agressão física a reprimenda penal será mais grave) o usuário do serviço público pode incorrer em algum crime contra honra (nesse tanto, é bom lembrar que hoje a tecnologia facilita a identificação desses maus servidores, além de tornar mais fácil a produção da prova [ex.: filmagens via Terminais Móveis Celulares]).

Ademais, no julgamento acerca da (in)validade do tipo penal de desacato, o STJ, através da sua 5ª Turma, deixou consignado que o afastamento da tipificação criminal não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público.

Falemos um pouco sobre o Controle de Convencionalidade, um ilustre desconhecido.

Como dito linhas atrás, a discussão levada a termo pelo Tribunal da cidadania não girou em torno dos tratados ou convenções votados nos termos do art. 5º, §3º, CRFB/88, verbis, “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, pois se assim o fosse a norma teria status de emenda constitucional e haveria controle de constitucionalidade. Portanto, não há falar, no que diz respeito ao julgamento patrocinado pela 5ª Turma, em usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal (salvo se fosse hipótese de controle concentrado) ou da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (se fosse o caso de controle difuso [cláusula de reserva de plenário]).

O controle (de convencionalidade) feito pela 5ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento sobre a (in)validade do crime de desacato, não se confunde com o controle de constitucionalidade, uma vez que a posição supralegal do tratado de direitos humanos (que é o caso do Pacto de São José da Costa Rica) é bastante para superar a lei ou ato normativo interno que lhe for contrário, abrindo ensejo a recurso especial (Art. 105, III, “a”, CRFB/88).

O Tribunal da cidadania, ao tratar da convencionalidade, deixou enfatizado que, no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista não se tratar de revogação, mas de invalidade" (REsp 914.253/SP).

Ora, se a legislação penal substantiva (Art. 331, CP) ofende a Convenção Americana de Direitos Humanos (Art. 13), ratificada pela República Federativa do Brasil, a qual tem força supralegal, significa dizer que dita lei antagônica à norma emanada daquele pacto internacional sobre direitos humanos é destituída de validade. Portanto, não poderia ser outra a decisão da Egrégia 5ª Turma, senão a de afastar o crime de desacato naquele caso concreto, por estar ele em rota de colisão com uma norma de status supralegal.

A decisão do STJ não é inédita. ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, magistrado catarinense, já havia se debruçado sobre o tema. Por ocasião de julgamento em processo que se imputava o crime de desacato (autos n. 0067370-64.2012.8.24.0023, Comarca de Florianópolis, Santa Catarina, julgado em 17 de março de 2015), o professor MORAIS DA ROSA, efetuando o Controle de Convencionalidade, reconheceu a inexistência do crime de desacato em ambiente democrático. E disse mais, a condenação por crime de desacato pelo ordenamento Penal Pátrio configura flagrante violação ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Vale registrar, em que pese o Professor MORAIS DA ROSA reconhecer a inexistência, a priori, de caráter vinculante na interpretação da CADH, a sua posição, no que diz respeito ao tipo penal de desacato, é no sentido de considerar, antes de tudo, os princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima, os quais devem impor que as condutas de que deve dar conta o Direito Penal são essencialmente aquelas que violam bens jurídicos fundamentais, que não possam ser adequadamente protegidos por outro ramo do Direito. O douto magistrado chegou a conclusão de que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. A decisão, pioneira no que tange a aplicação do Controle de Convencionalidade, finaliza dizendo trata-se, o crime de desacato, de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício da atividade administrativa e a crítica que ofende a dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. Esse inadmissível “mecanismo de censura” (Ministro RIBEIRO DANTAS) fere de morte a garantia constitucional da liberdade de expressão.


Notas e Referências:

STJ/RESP n° 1.640.084 – SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS; 2016/0032106-0.

Desacato não é crime, diz Juiz em controle de convencionalidade; Alexandre Morais da Rosa; http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/


Paulo César. . Paulo César de Oliveira é Advogado. Pós graduado em Direito e Processo Penal. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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