A boa-fé objetiva nos contratos de licença de uso de programa de computador – Por Mauricio Mota

14/06/2017

Um computador pode ser definido como qualquer máquina capaz de aceitar uma entrada estruturada de dados, processá-la de acordo com regras preestabelecidas, e produzir uma saída com os resultados. Os circuitos de computador processam essas instruções lógicas que configuram a entrada estruturada de dados usando duas notações: o número 1 para representar “verdadeiro” e 0 para representar “falso”.

Este é um sistema binário. Um código. O sistema binário é o alfabeto dos computadores eletrônicos, a base da linguagem para a qual todas as informações são traduzidas e na qual são armazenadas e utilizadas no interior de um computador.

Um texto de instruções para o computador também pode ser expresso no sistema binário. Por convenção (ASCII) fixou-se que o número 65 representa o A maiúsculo, o número 66 o B maiúsculo e assim por diante. Num computador, cada um desses números é expresso por código binário: o A maiúsculo, de número 65, torna-se 01000001. O B maiúsculo, número 66, vira 01000010. Um espaço é representado pelo número 32, ou 00100000. De modo que a frase “Sócrates é homem” torna-se uma fileira de 128 dígitos composta por 1s e 0s:

01010011        10100010        01100011        01110010        01100001

01110100        01100101        01110011        00100000        10000010

00100000        01101000        01101111        01101101        01100101

01101101

Assim, qualquer série estruturada de instruções pode ser transformada num conjunto de números binários. Com a evolução da computação essa linguagem binária passou a ser substituída por uma linguagem codificada, traduzida para a linguagem de máquina por um programa especialista em traduções de linguagens (compiladores ou tradutores).

Denominam-se Linguagens de Alto Nível aquelas que se expressam o mais possível da mesma forma que as linguagens humanas. Em contrapartida as Linguagens de Baixo Nível são as que mais se aproximam da linguagem de máquina, que oferecem maior dificuldade de conhecimento.

Estas linguagens de computador (a partir dos conceitos binários) são linguagens de comandos potentes: basta uma pequena ação humana (o leve pressionar de uma tecla) para desencadear toda uma sequência de comandos até o resultado final. A tradução da linguagem usada pelo programador para a linguagem de máquina é feita pelo programa compilador que geralmente pertence ao conjunto dos programas do sistema operacional.

O software é assim a série de instruções que fazem com que o hardware - as máquinas - realizem o trabalho que se quer. É um produto da intelectualidade, expresso por uma linguagem e gravado em um meio físico.

Sua natureza jurídica portanto é a de um bem intelectual ou imaterial, protegido e regulado pela legislação de proteção dos direitos autorais. Trata-se todavia de um conceito in fieri, em construção, porque a inovação tecnológica está alterando essa própria ideia de instruções fixas e determinadas criadas por alguém para que a máquina execute exatamente aquelas instruções pré-determinadas. Está se pesquisando programas capazes de executar silogismos: dada a premissa maior e a premissa menor o computador seria capaz de dar a conclusão lógica ao problema, de acordo com dados habitualmente inferidos da forma de utilização do computador, e, consequentemente de raciocínio do usuário. Trata-se de uma evidente revolução na teoria do conhecimento das máquinas, a implicar em mudanças na própria ideia de propriedade intelectual exclusiva do fabricante.

Em termos de classificação de softwares podemos agrupá-los em três tipos primordiais, escalados na razão inversa de sua proximidade com o usuário do computador: firmware, sistemas operacionais e programas aplicativos.

Firmware são os programas gravados permanentemente em chips, dispostos na memória ROM (Read Only Memory), memória onde ficam os programas básicos, essenciais para que o computador funcione e se torne receptivo para receber outros programas.

O principal programa gravado (parcialmente) diretamente no chip da ROM é o BIOS (Basic Input Output System), que controla diretamente o hardware. O BIOS é o primeiro programa que entra em ação a partir do momento em que ligamos o computador, antes da entrada em cena de qualquer outro programa: o BIOS é o responsável por um primeiro teste que a máquina faz em si mesma denominado POST (Power On Self Test) e que surge, sempre da mesma forma, na tela do computador, cada vez que o ligamos, informando que a memória está perfeita e disponível, que os periféricos estão ok, etc., além de efetuar outras atividades básicas de processamento.

O BIOS foi desenvolvido pela IBM entre outubro de 1980 e abril de 1981. É um programa geralmente escrito em linguagem ASSEMBLER e, por estar permanentemente gravado na memória ROM permite que os programadores elaborem programas para os computadores IBM-PC ou compatíveis, sem a necessidade de incluir determinadas rotinas básicas, como as que tratam de manejamento de unidades de entrada e saída[1].

Estes programas igualam-se a quaisquer outros e se submetem à disciplina jurídica dos direitos autorais como qualquer programa. A diferença é que esses programas não são adquiridos em disquetes ou CD-ROMs, mas permanecem no interior da máquina.

O segundo tipo de software são os sistemas operacionais. São programas que têm por objeto outros programas, controlando funções ou partes da máquina, administrando o processamento, distribuindo tarefas, escalonando entradas e saídas, ocupando racionalmente diferentes setores de memória etc.

De um modo geral os sistemas operacionais são compostos de um módulo básico chamado supervisor e de módulos que gerenciam recursos específicos. O módulo supervisor centraliza a coordenação dos recursos previstos pelo sistema, operacionalizando os módulos responsáveis por cada tarefa específica.

Os principais recursos previstos pelo sistema operacional são o gerenciamento dos processos em execução, o gerenciamento do espaço em memória, a alocação e controle de arquivos e periféricos, e a comunicação com o operador.

O terceiro tipo de software são os programas aplicativos. São programas desenvolvidos para resolver os problemas do usuário. Há tantos programas aplicativos quanto as necessidades dos diversos grupos de consumidores. São exemplos de programas aplicativos os processadores de texto, as planilhas eletrônicas, os gerenciadores de bancos de dados e diversos tipos de utilitários.

Os programas aplicativos podem ser software produto ou software desenvolvidos por encomenda. O software produto é aquele desenvolvido por uma softhouse visando atender uma necessidade genérica de uma gama indeterminada de consumidores (processadores de texto, planilhas eletrônicas etc.). Ao adquirirem um software produto os usuários assinam contratos de adesão denominados licença de uso.

O software desenvolvido por encomenda é aquele feito sob medida mediante um contrato de desenvolvimento. As partes combinam desenvolver certo programa para resolver problemas específicos de um dos contratantes. Neste tipo de operação ocorre em geral uma cessão de uso com a possibilidade da empresa solicitante fazer quaisquer utilizações comerciais com intuito lucrativo da obra.

No que concerne à evolução dos softwares, o computador moderno teve sua origem nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial quando um grupo de matemáticos da Moore School of Eletrical Engineering da University of Pensylvania começou a desenvolver uma máquina eletrônica destinada a acelerar os cálculos das tabelas para dirigir a pontaria da artilharia. Disseminou-se seu uso na década de 50 nos Estados Unidos, com várias empresas competindo pela liderança do mercado.

Até 1964, todo modelo de computador, inclusive quando fabricado por uma mesma empresa, além de possuir projeto exclusivo, exigia um sistema operacional e um software aplicativo próprio. Era preciso muito trabalho para migrar de um software de um modelo de computador para outro, mesmo quando o software era escrito em linguagem-padrão como COBOL ou FORTRAN.

Entretanto, nesse ano, a IBM produz um computador de arquitetura escalável, a família System/360, os quais, independentemente de tamanho, responderiam ao mesmo conjunto de instruções. Modelos construídos com diferentes tecnologias, desde os mais lentos aos mais velozes, desde as máquinas de pequeno porte que cabiam num escritório de tamanho normal, até os gigantes refrigerados a água, enclausurados em cabines climatizadas de vidro, todos eram capazes de executar o mesmo sistema operacional. Os usuários poderiam transferir as suas aplicações e periféricos, acessórios, tais como discos, unidades de fita e impressoras, livremente de um modelo a outro. A arquitetura escalável reformulou por completo a indústria[2].

O System 360 foi um sucesso absoluto e fez da IBM a mais dinâmica das empresas ligadas à fabricação de mainframes durante os anos seguintes. Os usuários investiram muito no 360, confiantes de que seu comprometimento com software e treinamento não seria desperdiçado. Se precisassem passar para um computador maior, poderiam obter um IBM capaz de rodar o mesmo sistema e partilhar da mesma arquitetura.

Tal sucesso atraiu competidores, principalmente ex-funcionários da IBM que criando novas empresas procuraram construir computadores totalmente compatíveis com o software do IBM 360. Assim passou a existir no mercado hardware capaz de rodar não só com os mesmos sistemas operacionais e as mesmas aplicações dos computadores da IBM mas também por preços sensivelmente menores que os computadores IBM. Logo o sistema IBM converteu-se no hardware padrão do mercado.

No que se refere aos computadores pessoais equipados com microprocessadores, terreno onde não imperava a IBM, a principal fornecedora de hardware dos EUA era a DEC e os usuários desses computadores tinham de fazer seus próprios programas pois não havia softwares aplicativos para esses computadores de baixo custo. Para desenvolver esses programas aplicativos eles utilizavam sobretudo o Microsoft Basic, escrevendo seus próprios programas em linguagem Basic.

No verão de 1980 a IBM, líder inconteste do mercado de hardware, com mais de 80% das vendas de computadores de grande porte, resolve entrar no mercado de máquinas pequenas e baratas tanto para consumidores particulares quanto para empresas. Para tanto, associa-se à Microsoft que forneceria o sistema operacional e à Intel que forneceria o microprocessador para os computadores IBM. A Microsoft cria então o que viria a ser o sistema operacional mais famoso do mercado o MS-DOS ou Sistema Operacional de Disco da Microsoft.

Fornecendo seu sistema operacional junto com os computadores IBM a uma taxa irrisória de licença de uso (60 dólares) a Microsoft transforma o MS-DOS no padrão do mercado. Em três anos quase todos os padrões concorrentes de computador e de sistemas operacionais haviam desaparecido.

Em 1983 a Microsoft começa a desenvolver uma interface gráfica para tornar o MS-DOS mais amigável para o usuário, em estratégica ocupação de espaço mercadológico. Assim os micros se tornariam mais fáceis de usar e facilitariam a vida de quem já possuísse o equipamento, atraindo ainda clientes sem tempo de aprender a trabalhar com interfaces complicadas.

Porém um fato grave viria a atrapalhar a parceria até então proveitosa entre a Microsoft e a IBM. Esta última empresa lança em 1984 o seu microcomputador de segunda geração, uma máquina de alto desempenho PC AT, que incorporava o microprocessador 80286 da Intel (vulgarmente conhecido como “286”). Era três vezes mais rápido que o IBM-PC original. O AT fez um enorme sucesso e, um ano depois, era responsável por mais de 70% de todas as vendas de microcomputadores. Porém, os microcomputadores passaram a ameaçar as vendas de seus computadores profissionais e a IBM procurou frear o desenvolvimento do PC para evitar a canibalização de seus produtos mais caros. Assim, decidiu adiar o lançamento do PC equipado com o potente chip 386 da Intel, sucessor do 286, para proteger as vendas dos minicomputadores low end, máquinas de médio porte que não tinham muito mais capacidade que um PC 386. O atraso permitiu que outra empresa, a Compaq, fosse a primeira a lançar o 386 em 1986, abalando o império da IBM.

Para recuperar o tempo perdido a IBM decidiu construir computadores e escrever sistemas operacionais total e exclusivamente dependentes um do outro, de modo a paralisar os concorrentes ou pagar salgadíssimas taxas de licença. A estratégia era tornar obsoleto todos os microcomputadores “compatíveis com IBM” que estavam sendo fabricados.

Nesse ponto seus interesses colidem com os interesses da Microsoft que dedicava parte considerável de suas atividades ao fornecimento do MS-DOS a fabricantes de micros compatíveis com os sistemas IBM. A Microsoft abandona o projeto de um sistema operacional conjunto com a IBM (o OS/2) e decide partir para a criação de sua própria interface gráfica para DOS, o Windows.

Lançado em abril de 1987 o OS/2 da IBM apresenta problemas de compatibilidade com os periféricos existentes no mercado e não consegue atingir o gosto popular. Ao não conseguir impor seu padrão e insistir no mesmo, a empresa perde o controle da arquitetura de microcomputadores, não sendo mais capaz de, sozinha, levar toda a indústria a adotar um novo projeto. Enquanto isso o Windows, um software menor que ocupava muito menos espaço em disco rígido e podia funcionar em máquinas com menos memória, passa a ocupar crescentes nichos de mercado[3].

Hoje o Windows é o padrão do sistema operacional para microcomputadores. Seu sucesso é explicado pelo seu criador, Bill Gates, como uma espiral de retorno positiva, espiral essa formada por todos os aplicativos produzidos por empresas de software que utilizam-se da plataforma Windows. Quanto mais produtos for Windows existe no mercado, mais se incrementam as vendas do próprio Windows e dos demais softwares da Microsoft. A Microsoft é hoje uma empresa de 312 bilhões de dólares e a fortuna pessoal de seu dono, Bill Gates, está avaliada em 86 bilhões de dólares, o homem mais rico do mundo segundo o ranking 2017 da Revista Forbes[4]. Por outro lado a Microsoft se constitui hoje numa multinacional do software, com virtual monopólio desta atividade, sendo alvo de incessante controle pela Comissão Antitrust do governo norte-americano.

Os contratos de software no Brasil são regulados pela Lei de direitos autorais (Lei nº. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998) e pela Lei de proteção da propriedade intelectual de programa de computador (Lei nº 9.609 de 19 de fevereiro de 1998).

Esses contratos deverão ser escritos de acordo com a determinação do art. 50 da Lei nº 9.610/98:

Art. 50 - A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se fará sempre por escrito, presume-se onerosa. 

A proteção aos direitos relativos aos programas de computador (o software é definido pela lei brasileira como programa de computador, art. 1º da lei nº. 9.609/98) é assegurada pelo prazo de 50 anos contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da sua criação (art. 2º, § 2º). A lei prevê também que a proteção legal do programa de computador de origem estrangeira só será assegurada se o país de origem do programa conceda, aos brasileiros e estrangeiros domiciliados no Brasil, direitos equivalentes (art. 2º, § 4º).

Não constituem ofensa ao direito de autor de um programa de computador a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda, a citação parcial do programa, para fins didáticos, desde que identificados o programa e o titular dos direitos respectivos, a integração de um programa, mantendo-se suas características essenciais, a um sistema aplicativo ou operacional, tecnicamente indispensável às necessidades do usuário, desde que para o uso exclusivo de quem a promoveu (art. 6º).

Os principais tipos de contrato que possuem o software como objeto são:

- contratos de cessão ou licença de uso;

- contratos de distribuição ou revenda;

- contratos de manutenção;

- contratos de desenvolvimento de sistemas por encomenda;

- contratos de edição.

Os contratos de distribuição ou representação de software são aqueles realizados entre dois contratantes, a softhouse e o representante, pelo qual o representante adquire o direito de comercializar o produto.

Na maioria das vezes estes contratos estipulam que os vendedores não poderão nomear outros revendedores ou revender os produtos; deverão seguir certos padrões de condições de licença de uso; a garantia final será dada pelo fornecedor que prestará também os serviços de manutenção.

Pode ser exigido pelo fornecedor nesse contrato uma caução em garantia pelos produtos fornecidos, em valores fixos por ano, que equivalerão a “x” produtos e serão, ao final, creditados ao distribuidor. A caução é empregada habitualmente em contratos entre empresas nacionais e estrangeiras.

Outro tipo bastante comum de contrato envolvendo programa de computador é o de manutenção. Por esse contrato a empresa contratada assume a obrigação de, dentro de um plano de visitas e trabalhos previamente combinado, efetuar periódicos exames no equipamento de forma a detectar possíveis defeitos que sejam iminentes e, de forma preventiva, agir antes que os problemas aconteçam de maneira que o computador funcione normalmente sem problemas.

É essencialmente um contrato de manutenção preventiva realizado comumente através de programas que gravam informações e relatórios de manutenções anteriores, desde o início de funcionamento do equipamento, de modo a detectar com facilidade os possíveis defeitos.

A manutenção também pode ser corretiva. O usuário chama a empresa contratada após ocorrer o problema e esta age para corrigir um defeito manifestado.

Geralmente os contratos de manutenção são exclusivos, ou seja, só a empresa contratada pode fornecer a manutenção - já que é imprescindível conhecer o código fonte para poder trabalhar com o programa - e contém cláusula que estabelece a necessidade da empresa prestadora ter facilidade de acesso às instalações para poder executar satisfatoriamente o seu trabalho.

Quando a manutenção é fornecida pelo próprio fornecedor do programa de computador é comum virem juntos, em um só instrumento, os contratos de licença de uso e de manutenção. As condições do contrato variam em função das características de fato do produto e das possibilidades da contratante sendo os contratos em geral de duração de 12 meses, renováveis, com pagamentos mensais.

Outro contrato de programa de computador importante é o contrato de desenvolvimento de sistemas por encomenda. Por esse contrato uma empresa (na maioria das vezes) contrata com outra empresa ou com uma pessoa física o desenvolvimento de um sistema sob medida ou por encomenda. Por “sistema” deve-se entender um conjunto de programas ou de módulos de programas que precisa ser desenvolvido por completo ou parcialmente para atender a necessidades específicas da empresa contratante.

A natureza jurídica desse contrato é a de um contrato de prestação de serviços e não de fornecimento de mercadoria, sendo portanto devido à Fazenda Pública apenas o pagamento de ISS.

O pagamento é usualmente feito ao final, de uma só vez, com a apresentação do sistema concluído, testado, dado oficialmente como pronto e mediante a entrega da documentação completa e conferida. Deve-se efetuar nesses contratos uma aceitação formal do sistema por parte da contratante, para salvaguardar os direitos de ambas as partes do contrato.

O contrato de edição ou contrato de publishers é também um tipo importante dos contratos envolvendo os programas de computador. Consiste numa prestação de serviços semelhante à realizada pelos editores de livros, pela qual a empresa contratada (distribuidora) se dispõe a assumir a responsabilidade pela estrutura comercial de programas de computador criados por terceiros, ou seja, desde a concepção da embalagem do produto até a sua distribuição no mercado.

Finalmente, veremos adiante o objeto propriamente dito deste artigo que são os contratos de licença ou cessão de uso de programa de computador.

A lei nº. 9.609/98 em seu art. 9º estabelece que a exploração econômica de programas de computador será objeto de contratos de licença ou cessão de uso livremente pactuados pelas partes.

A doutrina estabelece uma distinção de gênero para espécie entre as figuras jurídicas da cessão e a da licença. Na cessão de uso ocorre uma transferência de direitos, ou seja, o beneficiário tem o direito não só de usar mas também de fruir, podendo utilizar economicamente a obra que lhe foi atribuída.

A licença de uso permite apenas a utilização direta da obra dentro de formas restritas e determinadas no contrato.

O contrato de licença de uso de programa de computador deve conter basicamente o objeto, a definição e a especificação do programa, as condições de aceitação e garantia, a previsão de manutenção ou não, os termos de treinamento de pessoal, o direito de aquisição de novas versões, os custos e encargos e o termo de duração do contrato, características que serão a seguir esmiuçadas.

O programa de computador, por definição, é um produto intelectual, uma série de instruções para que a máquina realize determinados procedimentos (art. 1º); assim é somente com a utilização que se pode avaliar o desempenho do produto.

Portanto, nesses contratos devem constar:

a) descrição funcional do programa de computador, quer dizer: 1 - todas as tarefas que o programa de computador deverá cumprir; 2 - todas as entradas; 3 - todas as saídas; 4 - todas as necessidades de processamento; 5 - todos os arquivos de dados; 6 - volumes de atividades e arquivos;

b) descrição da marca do equipamento onde o programa de computador deve operar, incluindo: 1 - restrições de armazenagem; 2 - restrições em matéria de equipamentos periféricos; 3 - procedimentos de transmissão de dados; e 4 - interface de comunicação;

c) descrição da marca do programa de computador dentro do qual o programa deve residir incluindo: 1 - especificações dos sistemas operativos; 2 - as linguagens de programação; 3 - outros programas com os quais o programa de computador do cliente deve interconectar-se de maneira apropriada; 4 - qualquer sistema de nomenclatura que deve ser usado para os programas;

d) informes concernentes ao rendimento do programa de computador com relação a: 1- sua organização interna; 2 - sua velocidade de execução; 3 - sua capacidade de aperfeiçoamento e modificação; 4 - suas propriedades de detecção de erros; 5 - suas propriedades de correção e recuperação de erros; e 6 - qualquer restrição de atividades que o usuário deve evitar;

e) normas de programação e documentação incluindo detalhes quanto a: 1 - conteúdo da documentação; 2 - quantidade; 3 - formulários; 4 - natureza e alcance da codificação;[5]

Essas especificações devem estar completas no momento da celebração do contrato, devendo estar incorporadas como parte dele, particularmente quando se tratar de contratos standard de licença de uso de programa de computador.

Em geral, nos contratos de licença de uso de programa de computador o cliente só recebe o código objeto, isto é, um programa legível para a máquina mas não o acesso ao código fonte. Tal fato cria severas limitações nesses contratos: em primeiro lugar criam a dependência do provedor para a manutenção do programa de computador; excluem também a possibilidade de modificação e aperfeiçoamento do programa por parte do usuário para o atendimento de suas necessidades específicas.

Além disso, deixam o usuário em situação deveras desvantajosa caso o provedor suspenda suas operações, abra falência ou de qualquer outro modo interrompa seus serviços. A lei brasileira prevê uma garantia ainda muito débil para esses casos, ao exigir como condição para a comercialização do programa de computador o registro de seu programa fonte; entretanto, não prevê o seu fornecimento obrigatório aos usuários no caso de falência da empresa, nem soluciona os casos concernentes aos usuários não programadores.

Outra questão importante no que concerne às especificações diz respeito à documentação do programa, isto é, os registros escritos sobre a maneira como foi elaborado o programa, o que este faz e a maneira de usá-lo. Em geral a documentação deve conter:

Documentação do usuário:

a) instruções escritas que sirvam de guia para o operador em computação sobre a maneira de carregar e transferir o programa e sobre a maneira de manejar as exceções (por exemplo quando o programa rejeita dados por estarem em formato equivocado etc.);

b) instruções escritas para os operadores de entrada quanto à maneira de identificar os dados de entrada;

c) diagrama de fluxos funcionais ou de sistema mostrando em linhas gerais de que maneira funciona o sistema;

Documentação do sistema/programa

a) diagramas do fluxo do programa resumindo cada programa (e que provavelmente serviram de guia ao programador para escrever o programa);

b) sequência do código fonte[6].

Ainda na questão referente à definição do programa de computador, assume relevância o aspecto concernente à titularidade do mesmo.

No contrato de licença de uso de programa de computador (pré-impresso) se procura fundamentalmente estabelecer as regras para o uso não exclusivo desse programa, protegendo a propriedade do seu produtor. Daí decorrem as tradicionais proibições de ceder, vender, dar em locação, alterar ou fazer cópias sem expressa autorização do fornecedor, também se proibindo o uso do programa para fins diferentes daqueles para os quais foi adquirido, como, por ex., prestar serviços a terceiros.

O licenciante geralmente também não se responsabiliza por problemas, erros, danos ou prejuízos advindos de: falhas no programa de computador constatadas após o período de garantia; quaisquer alterações efetuadas sem autorização expressa, seja no programa fornecido, seja no equipamento; má operação ou operação indevida sem sua expressa anuência; decisões tomadas com base em informações, quaisquer que sejam, fornecidas pelo programa de computador.

Uma condição que também costuma ser estipulada nesses contratos é a que obriga o licenciado, caso o equipamento onde se encontra instalado o programa de computador, objeto do contrato, seja apreendido, retomado, arrestado, seqüestrado ou simplesmente ameaçado por quaisquer medidas judiciais que o retirem da posse e uso do licenciado, a destruir ou remover o programa, de forma a que o equipamento seja transladado sem o programa de computador e, consequentemente, de forma a se evitar que o programa de computador caia em mãos de terceiros não obrigados[7].

No que se refere às condições de aceitação e garantia, um aspecto importante dos contratos de programa de computador é o de que maneira e quando é aceito o programa de computador. Nos contratos pré-impressos em geral inexistem disposições sobre este tema ou então estas carecem do necessário equilíbrio com respeito à proteção dos interesses e direitos do usuário. É desejável que seja dado ao futuro usuário referências (que podem ser na forma de programas shareware, de aplicabilidade limitada) de forma que se permita a este avaliar o programa de computador antes de ver-se obrigado a efetuar qualquer pagamento. Tais provas dariam ao usuário uma oportunidade de conhecer o programa e de medir e comparar a quantidade de uso da unidade central de processamento (CPU), a memória dos núcleos, o armazenamento de discos e outros parâmetros.

Não sendo isto possível, de qualquer maneira, depois do licenciamento deveria começar um período de prova adequadamente largo (p. ex., 90 dias) durante o qual o usuário pudesse pôr à prova o programa de computador sob condições operativas reais, em face de suas necessidades e com dados verídicos.

Efetuada esta, se estabeleceria um limite de tempo depois do qual se consideraria que o programa de computador teria sido automaticamente aceito. Porém tal presunção deveria ter por base o uso produtivo do cliente e não o mero decorrer do tempo. Desde que este pudesse provar que não foi possível, por razões independentes de sua vontade, de fazer uso produtivo do programa no período de prova, tais dados, desde que comprovados, deveriam prevalecer de forma a garantir ao cliente o direito de provar efetivamente o programa de computador recebido.

No que se refere às garantias é patente o desequilíbrio entre as partes no contrato de licença de uso de programa de computador.

Um dos tópicos mais vagos em muitos contratos de programa de computador está relacionado com as garantias outorgadas pelo provedor com respeito ao funcionamento. As típicas cláusulas em contratos pré-impressos excluem usualmente qualquer garantia, ou a limitam a uma obrigação de levar a cabo os melhores esforços no sentido de corrigir falhas. Esta solução deixa o usuário sem proteção real alguma frente ao inadimplemento por parte do provedor em proporcionar um programa de computador apropriado.

Em outras palavras, o provedor não garante que o programa de computador se ajustará às necessidades do usuário nem que o programa de computador seria capaz de passar sem objeções ao circuito comercial ou que se ajusta ao fim ordinário para o qual é utilizado.

Portanto para que a garantia do contrato seja efetiva devem estar presentes os seguintes elementos:

a) em primeiro lugar a definição de um “período de garantia” dentro do qual o provedor se veria obrigado a manter a operatividade do programa de computador sem encargo, e a desenhar, codificar e verificar a documentação e a entregar quaisquer emendas requeridas para corrigir erros que afetem a dita operação. Este requisito pode restringir-se, excluindo aqueles erros triviais ou pequenos que não prejudicam significativamente o rendimento conforme as especificações.

b) devem ser inclusas também punições apropriadas para os casos em que o provedor não cumpra adequadamente suas obrigações. A prática geral nos acordos pré-impressos é de evitar tais soluções e de excluir qualquer responsabilidade que surja do inadimplemento.

A garantia desses contratos deve abranger também a violação dos direitos de terceiros. Deste modo deve ser garantido ao usuário proteção contra qualquer ação empreendida por um terceiro com base na violação de sua propriedade intelectual, de sua patente ou de outros direitos.

Na hipótese em que se prove que o programa de computador em questão está sujeito a direitos de terceiros o provedor deve ser obrigado a, alternativamente:

a) proporcionar ao usuário o direito de continuar usando o dito programa de computador;

b) reelaborar ou modificar o programa de computador na medida necessária para evitar a violação;

c) eliminar o dito programa de computador ou uma parte dele e reembolsar o usuário na parte proporcional do honorário.

Nessas duas últimas situações, deveria permitir-se contratualmente ao usuário rescindir o contrato, já que seu objeto havia sofrido alterações que podiam afetar seu interesse em manter a relação contratual[8].

As disposições a respeito do preço do programa de computador, se não estão adequadamente redigidas, podem criar riscos substanciais para o usuário. Nos contratos pré-impressos dos grandes fabricantes que também subministram sistemas operativos, resultam habituais as cláusulas abertas que permitem ao provedor dispor de uma grande flexibilidade na fixação e revisão de preços, sem nenhum vínculo real com o cumprimento da obrigação.

Nos contratos de licença de uso de programa de computador, além do preço, deve-se considerar outros custos indiretos, principalmente de instalação, capacitação, manutenção, cópias adicionais da documentação, tempo de máquina e, eventualmente, conversão e adaptação ao cliente do programa de computador transferido. O contrato portanto deve ser o mais preciso possível sobre essa questão, incluindo tudo aquilo relacionado com o alcance das obrigações de manutenção e do tratamento das atualizações e aperfeiçoamentos.

As restrições ao uso contidas nos contratos de programa de computador representam uma ferramenta comum e importante do provedor a fim de obter o máximo de ingressos a partir da comercialização do programa, aumentando ou fixando um novo preço conforme o número ou tipos de usos. Tais restrições podem incluir, conforme as práticas correntes dos provedores mais importantes, algumas ou todas das seguintes cláusulas:

a) uma limitação de uso para só um usuário especificado;

b) uso restrito a um lugar determinado, geralmente definido por um domicílio postal e um edifício únicos;

c) uso para apoiar exclusivamente terminais operados pelo usuário;

d) uso em uma única unidade central de processamento (CPU);

e) uso em uma CPU por vez em um lugar que dispõe de vários sistemas adequadamente configurados;

O problema do uso em mais de uma CPU do usuário pode ser resolvido obtendo-se uma tarifa reduzida para qualquer licença sucessiva de um mesmo programa. Outra solução para os grandes usuários é a negociação de uma licença matriz que pode reduzir notoriamente o preço no conceito de licença. Um problema prático que deve afrontar-se neste último caso é o de se avaliar se as várias CPUs do usuário são compatíveis (se não o são, o provedor solicitará normalmente um maior honorário para cada versão do programa de computador que se requeira). Em uma licença matriz, também deve-se tratar a questão da centralização dos pedidos de serviço, de garantia e manutenção[9].

No que diz respeito à expectativa gerada nos contratos referentes a programa de computador, a informática trouxe uma verdadeira revolução no que se refere ao conceito de produto para uso e as expectativas que ele gera. Normalmente quando pensamos em um produto nossa expectativa é a que ele simplesmente funcione bem, de acordo com suas especificações técnicas: de um aparelho de CD esperamos que ele reproduza sem ruídos e com alta qualidade sonora os sons previamente gravados em um disco de CD; não esperamos contudo que este possa reproduzir sons gravados em disco de 78 rotações ou mesmo em discos de vinil, seus antecessores na reprodução de sons, ou que seja conectável com outros aparelhos como o videocassete ou uma filmadora.

Tudo se altera contudo quando se pensa num programa de computador. De um programa de computador, um editor de textos, Microsoft Word por exemplo, legitimamente esperamos que este primeiramente possa rodar em qualquer máquina (compatível com PC, Mac, etc.), que seja retro operante, ou seja, que possa reconhecer textos escritos em antigos processadores como o Wordstart 1.0 ou o velho EDIT do DOS; espera-se também que o programa seja compatível com todas as plataformas disponíveis no mercado (OS-2, Windows, Apple etc.); espera-se ainda que este possa operar em compatibilidade total com outros aplicativos, sejam estes Microsoft, Apple, Linux, etc... Portanto o “passado informático” deve ser perfeitamente ajustável ao programa e sua tutela jurídica é uma expectativa legítima.

Do mesmo modo o presente aguarda tutela. Ao comprar um programa a expectativa é a de que ele não só seja compatível com os padrões de plataforma atuais do mercado mas que também rode nas modificações tecnológicas que estão surgindo. Exige-se o melhor de dois mundos. É legítimo esperar que este programa possa fazer tudo aquilo que a sua propaganda diz que ele realiza e, ao mesmo tempo, que possa conformá-lo e modificá-lo à saciedade para atender às necessidades particulares dos usuários.

Mas ainda, os programa de computadores estão ficando cada vez maiores, consumindo cada vez mais memória e sobretudo ficando cada vez mais caros; assim, tendo dispendido uma soma considerável na compra de cada um deles é correto esperar que sejam eternamente compatíveis com as novas inovações tecnológicas, que sempre se possa rodar em um futuro e sofisticadíssimo computador o velho editor de textos, tal como até hoje posso ouvir na vitrola os discos de 78 rotações ou dirigir um antigo Ford modelo T de 1929.

Enfim, é legítimo esperar uma conectividade absoluta e duradoura, que o programa seja eterno enquanto dure. Mais do que isso também é necessário ter um direito de upgrade indeterminado. Desde que se compre determinada marca de programa de computador tem que ser garantido o direito de comprar todas as novas versões, pagando apenas aquilo que constitui a justa retribuição em relação ao valor agregado ao programa (suas novas funções) e não ser obrigado a comprar novamente um produto que de certa maneira já se possui (em versão menos desenvolvida). A tutela legítima do futuro em termos de programa de computador deve abranger ainda todas as funções desempenhadas pelo velho programa que deverão estar disponíveis em sua versão upgrade, sendo inadmissível a retirada intempestiva de quaisquer dos atributos do programa.

Do mesmo modo a minha capacitação pessoal para o uso de determinado programa tem de ser respeitada, uma vez que, certamente, foi gasto muito tempo, dinheiro, e treinamento aprendendo a operar este programa. Assim, a nova versão deste programa deve conservar todos os mecanismos e a lógica de funcionamento deste, como um dever lateral de cuidado, de modo a não lesar seus usuários.

Esta é, num pequeno resumo, a expectativa legítima de um usuário quando adentra numa loja de venda de programa de computadores. Trata-se de uma profunda e radical revolução no entendimento do que deva ser a tutela de confiança das partes numa relação de consumo; por uma simples razão: um software nada mais é do que um conjunto de instruções dadas a uma máquina para a realização da minha vontade, dos meus desígnios. Como bem se expressa Bill Gates:

“Os computadores são maravilhosos porque quando você trabalha com eles obtém resultados imediatos que lhe permitem saber se seu programa funciona. Poucas coisas na vida dão um retorno desses. Foi aí que começou meu fascínio por software. O retorno dado por programas simples é particularmente desprovido de ambigüidade. Até hoje vibro ao pensar que, quando o programa dá certo, ele funciona perfeitamente bem o tempo todo, toda vez que eu uso, do jeito como eu disse para fazer”[10].

Assim, um programa de computador não é um mero objeto de consumo que realiza uma ou algumas funções bem determinadas, mas sim, dependendo do programa, um instrumental para que eu realize virtualmente o que eu quiser, dentro de sua especificidade. É, em suma, o poder da vontade instrumentado e potenciado em uma determinada direção, livre de freios ou ambiguidades.

Deste modo, dada a autonomia de cada indivíduo para regular seus próprios interesses, na esfera permitida pelo ordenamento, é legítimo esperar que um programa de computador possa efetivamente ser essa vontade ampliada, potenciada em determinada direção e regida por dada especificidade, vontade esta que não pode deixar de ser tutelada em sua atemporalidade senão quando infrinja os direitos de outrem ou os preceitos legais.

No que se refere à tutela de expectativas jurídicas a insuficiência da normatização jurídica na apreensão da realidade cambiante, e particularmente da informática, nos é demonstrado pelo próprio conceito legal de programa de computador, datado de 1998:

Lei nº. 9.609/98 

Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

Como explicamos anteriormente, a inovação tecnológica está alterando essa própria ideia de instruções fixas e determinadas criadas por alguém para que a máquina execute exatamente aquelas instruções pré-determinadas. Está se pesquisando programas capazes de executar silogismos: dada a premissa maior e a premissa menor o computador seria capaz de dar a conclusão lógica ao problema, de acordo com dados habitualmente inferidos da forma de utilização do computador, e consequentemente de raciocínio do usuário. Trata-se de uma evidente revolução na teoria do conhecimento das máquinas, a implicar em mudanças na própria ideia de propriedade intelectual exclusiva do fabricante. Portanto, num curto espaço de tempo o conceito legal pode já estar totalmente superado pela realidade fática, gerando-se assim uma permanente inadequação da norma legal à situação que pretendia regular. Como bem lembra Tarcísio Cerqueira:

“Não devemos nos esquecer que estamos legislando sobre uma atividade de intenso dinamismo, que se altera a cada semana e a cada dia - e quanto mais para o futuro caminhamos maior a velocidade das mudanças. Se fôssemos legislar sobre o software há dez anos atrás (quando se media a produtividade de um programador pela quantidade de linhas de programas produzidas - o que consideramos hoje um absurdo) a realidade certamente seria outra e, consequentemente, nossa lei estaria desatualizada. E seria mais uma lei a não ser obedecida”[11].

Portanto, em se tratando de regulamentação jurídica dos negócios de informática e particularmente de contrato de licença de uso de programa de computador, devemos renunciar àquela procura de um conceitualismo estéril e passarmos a adotar para a regulação desses institutos cláusulas gerais capazes de   dar conta da complexidade e da mutação dessas relações jurídicas.

A relação obrigacional decorrente dos contratos de licença de uso de programa de computador deve ser entendida, segundo os ditames da boa-fé objetiva, como um processo que possui várias fases: uma fase preliminar ou pré-contratual, de negociações preliminares e de declaração de oferta; uma fase posterior, de execução contratual e ainda uma fase pós contratual, de deveres suscitados após o término do contrato[12].

Em todas essas fases os contraentes ou em expectativa de contratar devem agir com correção e lealdade em relação à contraparte, de modo a não frustrar a sua confiança.

Na fase ainda pré-contratual, das negociações preliminares, os candidatos a contraentes devem agir com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação dos dados obtidos em confiança, não realizando rupturas abruptas das conversações etc.[13].

São, de modo geral, escassas as negociações preliminares em tema de contratos de licença de uso de programa de computador, por predominarem no âmbito desses os contratos pré-impressos e por adesão. Entretanto, no que se refere aos contratos de desenvolvimento de sistemas por encomendas, incide a força dessas regras, particularmente no que se refere à tutela de expectativas geradas nas negociações ou do dever de não revelação de dados obtidos em confiança. Violados estes deveres, configura-se a responsabilidade extracontratual.

A fase das negociações importa em deveres de colaboração como o de bem informar o contraente sobre o conteúdo do contrato e o dever de proteção, não abusando da outra parte.

O dever de informação e proteção da outra parte é particularmente significativo nas negociações para contratação de programas de computador, porque, o mais das vezes, implicam numa paralisação dos investimentos da empresa em informática durante a escolha do programa de computador. Além disso acarreta também um investimento em treinamento prévio daquelas pessoas que deverão operar imediatamente o programa de computador.

Portanto, se a empresa fornecedora chega à conclusão que seu programa de computador não atende às necessidades do usuário ou ainda possui rotinas incompatíveis com a metodologia de trabalho adotada por este, deve encerrar de pronto as negociações, dada a inutilidade do prosseguimento.

Do mesmo modo o fornecedor deve lealmente informar ao usuário a existência de bugs (erros) que possam comprometer o desenvolvimento de rotinas específicas do programa de interesse do usuário. Um programa de computador é um produto sofisticado, o que aumenta, pela conduta de boa-fé, a responsabilidade do fornecedor, dada a sua especialidade profissional e sua natural ascendência sobre o consumidor. Seu dever de informar deverá então abranger o esclarecimento, o aconselhamento e a advertência.

Tema relevante no direito de informação é o da publicidade, que deve conter dados fáticos, técnicos e científicos que deem sustentação à mensagem e, principalmente, não pode ser enganosa (art. 37 do Código de Defesa do Consumidor).

As obrigações da fase contratual não se limitam à prestação principal mas abrangem toda uma série de deveres acessórios - quando a boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o contrato - e mesmo na fase pós contratual quando subsistem ainda deveres post pactum finitum, dentre eles o dever de destruir as cópias ainda porventura em poder do usuário depois de findo o contrato de licença de uso de programa de computador.

No que concerne à função interpretativa da boa-fé objetiva nesse âmbito, os contratos de programa de computador assumem com frequência a modalidade de contratos de adesão, nos quais, em geral falta o princípio da igualdade econômica. Neste tipo de contrato uma das partes fixa todas as cláusulas e a outra pode ou não aderir, sem ter oportunidade de formular uma contraoferta e, em certas ocasiões, de rejeitá-las.

A situação de desigualdade entre as partes, característica dos contratos de adesão, se agrava nesses contratos, porque o cliente, por ignorar a técnica informática, não pode estabelecer um juízo de valor sobre o produto que se propõe. Por outro lado, do ponto de vista econômico, sua situação não lhe permite muitas vezes resistir à pressão dos provedores.

Portanto ao dever de informação pré-contratual visto anteriormente, agrega-se na fase contratual a obrigação de fornecer informações sobre a adequação e qualidades dos produtos vendidos, assim como as possibilidades de ampliação dos mesmos.

No que se refere às garantias de funcionamento e performance outorgadas pelo provedor, as típicas cláusulas dos contratos pré-impressos a limitam a uma obrigação de levar a cabo os melhores esforços para corrigir qualquer falha identificada.

Interpretada segundo o dever de conduta reta e leal imposto pela boa fé, esta obrigação deve ser entendida como se ajustando às especificações funcionais, de rendimento e cumprimento dos tempos declarados pelo provedor. Não cumpridos estes o provedor é obrigado a trocar o produto ou a resolver a obrigação.

O período de garantia se diminuto, deve ser reinterpretado elasticamente de modo a abranger um período razoável de teste por parte do usuário (em geral, 90 dias). Neste período correm por conta do fabricante todas as despesas de manutenção de operatividade do programa de computador, inclusive aquelas requeridas por modificações para corrigir erros que afetem as ditas operações.

No que se refere aos aperfeiçoamentos e fornecimentos gratuitos pelo fabricante de arquivos e novas configurações de programa deve-se igualmente interpretar a cláusula concessiva destes como abrangendo todas as ofertas concedidas a futuros usuários, ainda que em caráter promocional especial.

A função integrativa da boa-fé é uma das mais relevantes no que diz respeito à observância de certos deveres de lealdade que, embora não expressamente previstos pelas partes no contrato, devem ser observados dentro da ideia de confiança que impõe a prática por cada uma das partes dos atos necessários à realização dos fins visados pela outra parte.

Deste modo uma conduta reta e leal segundo os ditames da boa-fé objetiva impõe ao fabricante de um programa de computador o dever de assegurar a compatibilidade deste com todas as antigas versões de seu produto e mesmo com as antigas versões dos principais produtos concorrentes no seu segmento de mercado, de modo que o usuário tenha garantido a qualquer tempo o uso de trabalhos realizados em seus antigos programas.

Do mesmo modo a função integrativa da boa-fé dita a este fabricante o dever lateral de assegurar que seu programa possa rodar em qualquer máquina e sob qualquer plataforma hoje existente no mercado pois a compatibilidade dos programas de computador é uma necessidade para qualquer uso profissional de um programa de computador.

O dever de lealdade obriga também que em situações de transição entre modelos de plataformas hegemônicos no mercado, um novo programa de computador só seja lançado se puder se compatibilizar com ambos os modelos. É o dever que incumbe ao fabricante de não submeter desnecessariamente os clientes a “atrasos tecnológicos”.

O direito ao upgrade do programa também se insere na modalidade de um dever lateral de conduta, mesmo que não expressamente previsto. O fabricante deve, agindo de boa-fé, assegurar a cada usuário o direito de comprar todas as novas versões do programa, pagando apenas o valor do produto novo que foi agregado a este.

Aqui o princípio da boa-fé mescla-se com a justiça contratual. O direito de comprar a nova versão pagando apenas o justo preço do seu incremento é um princípio de justiça contratual: não basta que haja uma pequena diferença de preço entre o programa full e o programa upgrade mas sim que o segundo seja efetivamente vendido aos seus já usuários pelo justo valor do seu incremento, do contrário estes estariam adquirindo de novo um produto que já teriam comprado. O dever lateral de conservação imposto pela boa fé impõe também que o novo programa observe a lógica de funcionamento do antigo de modo a assegurar a conservação do treinamento dispendido pelo cliente para o manejo do programa.

Resultam desses fatos que, num contrato de licença de uso de programa de computador os deveres acessórios possam ser mais complexos e mais cogentes que a própria prestação principal. Isso deriva da natureza especial da relação jurídica criada, uma relação de fornecimento de um produto que nada mais é que uma potencialização da vontade do usuário empregada em uma dada finalidade.

A função de controle da boa-fé é limitativa: ela estabelece que o credor, no exercício do seu direito não pode exceder os limites impostos pela boa fé, sob pena de proceder antijuridicamente. Essa função de controle da boa-fé tem especial relevância no que se refere à invalidade das cláusulas abusivas.

Nos contratos de licença de uso de programa de computador a concentração do poder de negociação em uma das partes contratantes, como sucede nos contratos de adesão leva ao abuso, especialmente quando o empresário aproveita seu domínio negocial para exonerar-se de responsabilidades ou limitar suas consequências, para atenuar suas obrigações ou facilitar a execução a seu encargo, ou, da perspectiva do consumidor, para agravar desmesuradamente suas cargas, acentuar seus deveres, inverter o ônus do encargo probatório; enfim desequilibrar o princípio da reciprocidade das estipulações, de tal sorte a acumular vantagens em seu favor e simultaneamente desvantagens nas prestações do cliente.

Entre as cláusulas abusivas mais frequentes nos contratos de licença de programa de computador, que a função de controle da boa-fé reputa como não escritas, estão as cláusulas limitativas da responsabilidade, os pactos de garantia e disposições sobre a lei aplicável.

A obrigação de reparar o dano resultante do inadimplemento contratual nasce do nexo causal entre o dano e o inadimplemento do contrato. Porém, sucede muitas vezes em contratos de programa de computador que o fornecedor intente liberar-se antecipadamente dos danos que resultam para seu co-contratante de seu inadimplemento. Se estabelece então cláusulas que limitam antecipadamente a responsabilidade que deve assumir o inadimplente.

A limitação da responsabilidade deve ser entendida em sentido amplo: abrange esta as limitações das causas de atribuição de responsabilidades e as limitações de fato resultantes. Incluem-se assim a inversão do ônus da prova para o credor, a limitação do patrimônio garante da obrigação do devedor, a limitação do tempo de prescrição ou de caducidade da ação para exigir a responsabilidade etc.

Tal solução não discrepa da prevista em outros ordenamentos que também preveem a desconsideração dessas cláusulas com base na boa fé:

“La excusa de culpa grave, por otra parte, significa un ataque direto al princípio de la buena fe, que es indispensable en el cumplimiento de las obligaciones: no se concilia con dicho principio, permitir que desde el comienzo se tenga por liberado al deudor de su propria responsabilidad”[14]

Os pactos de garantia são aquelas cláusulas mediante as quais, não obstante a existência de caso fortuito ou força maior, o devedor não se exonera das consequências de seu inadimplemento. A ideia de controle ínsita no cumprimento de boa-fé da obrigação impede que nestes casos o princípio da autonomia da vontade justifique a ruptura de um dos pilares fundamentais do sistema ressarcitório: a eximição da responsabilidade quando a inexecução por ser atribuível a um caso fortuito, não se acha juridicamente vinculada à conduta do devedor pelo nexo de causalidade adequado.

Deve ser considerada também à luz das proibições impostas pela função de controle da boa-fé as cláusulas de aplicabilidade da lei do país do contratante predisponente em contratação internacional. Deve ser aplicável a lei do país onde se dá o cumprimento substancial do contrato e não necessariamente a do país do contratante predisponente.

A função de controle da boa-fé exige ainda que no cumprimento do contrato sejam observadas as práticas reiteradas efetuadas pelos contratantes, em detrimento da forma literal pela qual se expressaram no contrato.

Concluindo, podemos dizer que a globalização das economias e a interconectividade resultante do grande desenvolvimento de uma rede planetária de computadores, a mudança vertiginosa na tecnologia desses equipamentos e nas relações jurídicas dos negócios de informática trouxe novos e prementes desafios à ciência do Direito.

Um mundo em permanente devir não se coaduna facilmente com a imposição de regras imutáveis, feitas para fixar a generalidade e perenidade das relações que interessam ao direito. A velocidade das transformações cedo deixa sem sentido os preceitos jurídicos, tornando obsoleto aquilo que ontem parecia tão revolucionário.

Como não se pode renunciar à regulação dessas relações sociais sob pena de se aguçar os conflitos intersetoriais, deve o direito buscar em preceitos gerais, abertos o bastante para abarcar a realidade cambiante, a solução para a resolução desses novos problemas.

Assim, na disciplina dessas modernas relações de consumo de massas que são os contratos de licença de uso de programa de computador, mais do que procurarmos a pureza analítica das definições perpétuas, das ontológicas naturezas jurídicas, devemos procurar o regramento aberto, totalizante, que integrado a uma jurisprudência construtivista possa dar efetiva proteção e tutela às partes em conflito.

Nessa ideia global se insere a importância da noção de boa-fé objetiva para a interpretação, modificação, controle e mesmo resolução dos contratos de licença de uso de programa de computador.

A noção aberta de boa-fé, de iminente sentido historicista e juscultural, é capaz de englobar em sua simplicidade totalizadora a enorme complexidade e mutabilidade pelas quais se revestem esses contratos. Também ela pode se devidamente trabalhada pela jurisprudência, dar conta das necessidades transtemporais de uso dos programas de computador, assegurando efetivamente a tutela das expectativas e da confiança dos usuários.

Trata-se portanto de um campo negocial novo que se abre na senda do mundo jurídico e que, por sua diversidade e mutabilidade ontológica, só podem ser devidamente regulados e equacionados com o auxílio de cláusulas gerais e conceitos abertos como a boa-fé objetiva.


Notas e Referências:

[1] CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software: direito autoral e contratos. Rio de Janeiro, Fotomática Ed.; Ed. e Gráfica Polar, 1993, p. 57/58.

[2] GATES, Bill. A estrada para o futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 55/56.

[3] GATES, Bill. op. cit., p. 55/86.

[4] Revista Forbes. The world´s billionaires. Disponível em: https://www.forbes.com/billionaires/#863711d251c7. Acessado em 04.06.2017.

[5] CORREA, Carlos M. et ali. Derecho informático. Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1994, p. 192.

[6] CORREA, Carlos M. et ali. op. cit., p. 193.

[7] CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. op. cit., p. 86.

[8] CORREA, Carlos M. et allí. op. cit., p. 197/199.

[9] CORREA, Carlos M. et allí., op. cit., p. 205/206.

[10] GATES, Bill. op. cit., p. 12.

[11] CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. op. cit., p. 56.

[12] SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. Obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 96-97.

[13] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor - RDC 18/23-31. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun. 1996, p. 4.

[14] CAZEAUX, Pedro N.; REPRESAS, Félix A. Trigo. Derecho de las obligaciones. tomo I. Buenos Aires: Ed. Platense, 1979, p. 285.

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor - RDC 18/23-31. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun. 1996.

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