A boa-fé objetiva na formação dos contratos - Por Mauricio Mota

01/11/2017

A boa-fé assume relevância na prática jurídica européia a partir das transformações advindas da Revolução Industrial que estabelecem um novo padrão frenético de realização das transações civis e comerciais. Tal frenesi obriga os contraentes a se relacionarem, cada vez mais, dentro de estreitas relações de confiança e lealdade, dada a multiplicidade de operações a realizar num mundo em incessante mudança.

Assim, impunha-se que além das disposições expressas do contrato, tal como disposto no Código napoleônico, também fosse tutelada a confiança legítima das partes no regular cumprimento do contrato.

Essa nova mentalidade expressa-se sobretudo na Alemanha a partir da jurisprudência dos Tribunais Comerciais, e, particularmente, do Oberappellationsgericht zu Lübeck (OAG Lübeck), tribunal superior de apelação comercial criado em Lübeck em 1815 por quatro cidades livres do Ocidente alemão - Lübeck, Hamburgo, Bremen e Frankfurt - por força do incremento das necessidades comerciais e com jurisdição sobre as cidades em causa.

Segundo Menezes Cordeiro, ainda que num estágio embrionário, denota-se já a presença dos vetores futuros da evolução do conceito: o exercício inadmissível de posições jurídicas, a interpretação objetiva e os deveres de comportamento no tráfego. Tudo isso traduzia a vitalidade do fator germânico da tradição romanística, o poder juscriativo das necessidades reais e um certo desapego jurisprudencial perante a doutrina, dadas as insuficiências desta.

O BGB (Bügerliches Gesetzbuch), em vigor a partir de 1900, consagra o novo princípio em seus parágrafos 242 e 157[1]. O Código Civil Suíço, vigente a partir de 1912 estabelece em seu art. 2º que todos estão obrigados a exercer seus direitos e executar suas obrigações de boa-fé. O Código Civil italiano de 1942, prevë em seu art. 1175 que o devedor e credor devem se comportar segundo a regra da correção. E, no que pertine ao contrato (art. 1337), dispös que as partes, no desenvolvimento das tratativas e na formaçao do contrato devem se comportar segundo a boa-fé. Do mesmo modo o Código Civil português de  1966 previu que quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé e que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé. Igualmente o título preliminar do Código Civil espanhol, pioneiramente, preceituou que os direitos devem se exercitar conforme os ditados da boa-fé.

No que concerne à formação dos contratos, a moderna noção de boa-fé objetiva detalha com exatidão a fase pré-contratual do contrato, das negociações preliminares à declaração de oferta, disciplinando que nesta os contraentes devem agir com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando rupturas abruptas e inesperadas das conversações etc.

São estabelecidos os parâmetros normativos de três deveres fundamentais da fase pré-contratual: o de proteção, o de informação e o de reserva.

Por “dever de proteção”, se entende, nessa fase contratual, que é aquilo que importa à boa-fé objetiva nas tratativas de um contrato. Estabelece-se que não há responsabilidade nos tratos preliminares de um contrato, caso esse não se aperfeiçoe, exceto quando o comportamento das partes for contrário à boa-fé.

Trata-se de importante definição, levando-se em conta que a boa-fé não é um padrão de conduta nas preliminares e na formação dos contratos aceite nos sistemas de common law. Nestes sistemas rejeita-se a existência de qualquer vínculo obrigacional entre aqueles que negociam com vista à conclusão de um contrato, apenas se admitindo a imputação de danos causados in contrahendo nos termos da responsabilidade extracontratual.

No direito inglês a abertura de negociações para a celebração de um contrato não cria entre as partes qualquer relação jurídica integrada por deveres de conduta específicos fundados na boa-fé: cada uma delas pode, por exemplo, conduzir negociações paralelas sem informar a outra e rompê-las arbitrariamente, mesmo à beira da conclusão do contrato, bem como omitir à contraparte informações vitais para a decisão de contratar, que só ela possui. A proteção conferida assim pelo direito inglês contra danos sofridos por uma das partes nos preliminares e na formação dos contratos é, por isso, muito inferior à que se encontra consignada nos códigos continentais.

No direito anglo-saxão a preocupação dominante não é a de que o contrato aceitável não é qualquer contrato, mas tão-só aquele em conformidade com as exigências da ética e da sua função social, como nos direitos alemão, italiano e português e sim a de que a conduta contratual consiste em assegurar as condições essenciais ao funcionamento da economia de mercado: liberdade contratual e força vinculativa dos contratos. Por isso, a responsabilidade pré-contratual, que inevitavelmente envolve certa limitação da autonomia privada, tem menor acolhimento.

No entanto, a boa-fé objetiva vai paulatinamente se pautando como padrão único europeu para definição da liberdade das partes nas tratativas pré-contratuais.

O dever de correção nas tratativas impõe que cada parte deve agir com lealdade, não criando expectativas que sabem destinadas ao fracasso. Se a parte não tem a intenção de concluir o contrato (por ausência de boa-fé subjetiva), a entabulação ou o prosseguimento das tratativas, suscitando a confiança da outra parte, é comportamento contrário à boa-fé e, assim, enseja a responsabilidade pelos danos causados[2].

No que se refere ao rompimento abrupto das negociações sem motivo justificado, deve existir um parâmetro de razoabilidade para aferir a legitimidade ou não desse comportamento: a confiança suscitada no outro contraente. Esta existe toda vez que no curso das tratativas as partes tenham já examinado os elementos essenciais do contrato, previsto uma eventual conclusão e gerado a confiança razoável quanto ao que seria estipulado nesse contrato. Era a solução já dada pela jurisprudência, inclusive a brasileira, um parâmetro adequado para aferir a seriedade e densidade das tratativas que geram o direito à indenização[3].

A compensação prevista no caso de rompimento abrupto das negociações sem motivo justificado é o ressarcimento dos danos que o contraente sofreu em razão de ter, de boa-fé, confiado na conclusão do contrato. Esse prejuízo abrange, em princípio, às despesas em que incorreu durante o desenrolar das tratativas (o interesse negativo).

Essa indenização de danos pode englobar, em situações excepcionais, o que a parte obteria na hipótese do contrato ter sido estabelecido. Isso ocorreria quando a infringência dos deveres de lealdade e correção pela parte que rompe as negociações acarretar a perda da possibilidade de a outra parte realizar negócio similar com outra pessoa[4]. Nesse sentido o Anteprojeto do Código Europeu dos Contratos da Academia de Pavia incorpora o estalão de decisões  do Bundesgerichtshof – BGH (Corte Federal de Justiça alemã) de conceder a indenização do interesse positivo nos casos de perda de oportunidade de similar contratação[5].

A hipótese em apreço de indenização do interesse positivo ou de cumprimento é aquela decorrente de perda de chance, na qual uma das partes contratantes tenha, de modo inequívoco, perdido a chance de realizar negócio similar causado pelo trato pendente e injustificadamente frustrado. Nesses casos, cabe a indenização por tudo aquilo que, razoavelmente, se deixou de realizar.

A perda de chance é aquele dano do qual decorre a frustração de uma esperança, na perda de uma oportunidade, de uma probabilidade. Neste dano coexistem um elemento de certeza e um elemento de incerteza. O elemento de certeza parte do pensamento de que por não ter se realizado o contrato a parte manteria a esperança de, no futuro, obter um lucro. De outro lado, o elemento da incerteza se impõe, porque por não se haver produzido o acerto contratual e mantido a chance (ou oportunidade), não se teria certeza da obtenção do lucro ou se a perda teria sido evitada. Concretiza-se a perda de uma chance quando determinado acontecimento não ocorreu, mas poderia ter ocorrido, por si mesmo ou através de intervenção de terceiro. O evento teria sido possível, mas a atuação da contraparte tornou-o impossível; provocou a perda de uma chance.

A perda de uma chance é um tipo especial de dano. Não se trata de mitigação do nexo causal, mas, tão somente, do deslocamento do vínculo causal para a perda de chance, constituindo esta, em si mesma, o próprio dano. Constitui-se numa zona limítrofe entre o certo e o incerto, o hipotético e o seguro, tratando-se de uma situação na qual se mede o comportamento antijurídico que interfere no curso normal dos acontecimentos, de tal forma que não mais se poderá saber se o afetado por si mesmo obteria ou não os ganhos ou se evitaria ou não certa vantagem, pois um fato de terceiro o impede de ter a oportunidade de participar na definição dessas probabilidades.

Naquilo que pertine ao quantum debeatur, se a chance é a possibilidade de um benefício futuro provável, integrada nas faculdades de atuação do sujeito, sua perda deve ser considerada um dano, ainda quando possa resultar dificultoso estimar seu alcance. Nesta concorrência de fatores passados e futuros, necessários e contingentes, existe uma consequência atual e certa, em razão do que se aconselha efetuar um balanço das perspectivas a favor e contra e, do saldo resultante, se obterá a proporção do ressarcimento. A indenização deverá ser da chance e não dos ganhos perdidos. A obrigação de reparar é somente parcial, se comparada aos ganhos finais, por isso não se reivindica a reparação destes, mas somente se considera relevante a perda da possibilidade de serem evitados.

O dever de informação nas tratativas pré-contratuais está configurado na obrigação que cada parte tem a obrigação de informar à outra sobre cada circunstância de fato ou de direito que ela tem ou deveria ter conhecimento e que possa influir na validade do contrato ou no interesse de concluí-lo[6].

O dever de informar nas negociações preliminares é regido pelo princípio da boa-fé objetiva. Esta impõe às partes especiais deveres de conduta uma em relação à outra. Esses deveres são aqueles referentes ao comportamento exigível do bom cidadão, do profissional competente, enfim, de uma pessoa diligente, comportamento este expresso na noção de bonus pater familias. Deve-se observar também se a situação criada produziu na contraparte um estado de confiança no negócio celebrado, quando então deverá se tutelar essa expectativa. Desde que a contraparte tenha legitimamente confiado na estabilidade e segurança do negócio jurídico que celebrava impõe-se a tutela dessa confiança pelo princípio da boa-fé objetiva. Deste modo, avulta reforçado o dever de agir, de informar no preâmbulo do negócio jurídico, resultando este dos usos do tráfico e do princípio da boa-fé.

O dever de informar nas tratativas do negócio jurídico então se consubstancia na obrigação de revelar tudo aquilo que constitua circunstância determinante da realização do negócio. Este dever abrange as circunstâncias intrínsecas do negócio ou de seu conteúdo (v.g. os vícios redibitórios) mas também todas as condições extrínsecas que, do conhecimento da parte, influenciem decisivamente a realização do negócio. “Também há dever de informar passível de anular o negócio jurídico por omissão quando a parte conhece um valor mercantil porque só ela obtém as informações (as insider informations)”[7].

Deste modo, não se trata de admitir um dever geral de informar ou esclarecer a contraparte acerca da totalidade das circunstâncias de fato e de direito determinantes da decisão de contratar, mas sim que o dever de informar abrange tudo aquilo que relaciona-se com a validade do contrato e estimativa do interesse objetivo de contratação nas circunstâncias comuns do trato negocial[8]. Ao contraente cabe velar por si mesmo, esclarecidas as circunstâncias objetivas do negócio, por seu interesse específico em contratar, segundo o padrão de diligência exigível ao comum das pessoas.

Em uma perspectiva nova também contraria a boa-fé a conduta negligente da parte que não informa à outra sobre dados fundamentais concernentes à validade ou ao interesse de conclusão do contrato que poderiam ser obtidos por simples comportamento diligente. Como se delimitam os contornos dessa presunção? Trata-se aqui de negligência ou imprudência anormal no trato geral dos negócios, falta de cumprimento ao dever normal de diligência a evidenciar culpabilidade. Sendo uma infração a um dever lateral de conduta de diligência na fase pré-contratual, deve a culpa ser presumida, salvo prova insofismável da parte em contrário. Registre-se que a aferição do dolo no direito civil é genérica e que, em geral, no trato negocial, é de se presumir o conhecimento da parte a quem aproveita do prejuízo acarretado à contraparte.

A sanção prevista para a falta no dever de informar é a indenização pelo interesse negativo ou, em caso de perda de oportunidade de negócio similar, pelo próprio interesse positivo desse fato decorrente.

Essa sanção existe mesmo no caso do contrato vir a ser concluído, quando então o juiz irá fixar a indenização que julgar em conformidade com a equidade, salvo o direito da parte prejudicada de pedir a anulação do contrato por erro[9].

No que concerne ao dever de reserva ou segredo entre as partes nas tratativas negociais, as relações negociais importam no dever de sigilo acerca das informações recebidas ou fatos conhecidos decorrentes dos vínculos de tratativas iniciado, como do exame de documentos; de equipamentos; de projetos industriais; do processo produtivo; da situação econômico-financeira da outra parte ou de terceiro. Este sigilo pode perdurar, conforme o caso, até além do vínculo pré-negocial.

A boa-fé, assim como a dignidade e solidariedade, veda a utilização de informações obtidas no âmbito das tratativas, ainda que não por causa delas, mas somente por ocasião delas. Este dever persiste mesmo que sua divulgação não atinja a reputação ou o bom nome da outra parte, pois se deve considerá-lo objetivamente. Não importam os motivos pelos quais o sigilo foi quebrado, se para prejudicar a parte ou para benefício próprio. Esses aspectos poderão influir no valor da indenização mas não são pressupostos para a responsabilidade[10].

Hipótese de quebra do dever de reserva para benefício próprio é a do médico cirurgião plástico, que divulga o fato de artista conhecido o haver procurado ou a do advogado, que revela ter sido procurado por político que pretendia se divorciar. Em ambos nos casos há a ruptura da lealdade, especialmente em relação ao dever de manter sigilo, dever negativo resultante da cláusula geral de boa-fé objetiva.

Nessas circunstâncias a parte que houver obtido uma vantagem indevida com a informação confidencial (que estava obrigado a guardar em segredo) deverá indenizar a contraparte na medida do seu próprio enriquecimento com o ilícito. Medida idêntica já é referendada no ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere no mercado de valores mobiliários, ao uso de insider information[11].

Quanto ao valor jurídico do silêncio, na definição de René Demogue, “há silêncio no sentido jurídico quando uma pessoa no curso dessa atividade permanente que é a vida, não manifestou sua vontade em relação a um ato jurídico, nem por uma ação especial necessária a este efeito (vontade expressa) nem por uma ação da qual se possa deduzir sua vontade (vontade tácita)[12].

O silêncio tradicionalmente era concebido como uma não manifestação de vontade, não podendo, em princípio ser considerado como um consentimento ou uma confissão. Ainda era a velha assertiva de Savigny que predominava: “Se, pois, alguém me apresenta um contrato e manifesta que tomará meu silêncio como aquiescência, eu não me obrigo, porque ninguém tem o direito, quando eu não consinto, de forçar-me a uma contradição positiva[13]. Savigny admitia apenas duas exceções a esta regra, sem extensões analógicas: as que se fundavam numa relação especial de direito, como as de direito de família e àquelas decorrentes da relação entre o silêncio atual e as manifestações precedentes.

A vida moderna porém, como já visto, vai impor a vinculação jurídica do chamado silêncio circunstanciado.

Assim, o silêncio “só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstâncias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta à interpelação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer pessoa normal induziria, à crença legítima de haver o silente revelado, desse modo, uma vontade seguramente identificada [14].

Consoante a noção de boa-fé objetiva o silêncio e a passividade só equivalem à aceitação quando assim haja sido previsto pelas partes ou possa se deduzir da existência de relações que estas hajam mantido, das circunstâncias ou do costume ou, ainda, quando a oferta tenda a celebrar um contrato do qual derivem obrigações apenas para o seu autor.

Desse modo o silêncio assume significativo protagonismo jurídico sempre que das circunstâncias de fato ou da conduta precedente das partes, interpretada em consonância com o princípio da boa-fé objetiva, se possa verificar que foi suscitada uma confiança legítima e está presente uma vontade plenamente justificada. Portanto, não existente essas circunstâncias especialíssimas, não há valor jurídico do silêncio[15].

No que se refere à irrevogabilidade da oferta, a noção contemporânea de boa-fé objetiva estabelece que a declaração de vontade no sentido da celebração de um contrato, feita com seriedade e de forma completa – dela já constando os elementos necessários à criação da relação contratual por simples ato de aceitação da outra parte vincula o policitante, impondo-lhe o dever de reparar as perdas e danos decorrentes da não celebração do contrato objeto da proposta. Fundada na boa-fé objetiva, a oferta, ainda que não haja a aceitação do oblato, pode permanecer irrevogável durante certo lapso de tempo se, com base nas relações precedentes entre as partes, as tratativas ou os costumes, pudéssemos razoavelmente reputá-la como tal[16]. A mesma disposição de irrevogabilidade por contrariedade à boa-fé se encontra presente na regulação dos atos unilaterais[17], da promessa ao público[18] e dos contratos constituídos mediante comportamentos concludentes[19].

A irrevogabilidade da oferta também tem portanto na boa-fé a sua fundamentação. Consoante o dever lateral de conduta de lealdade entre as partes a publicidade de um oferecimento ao público de oportunidade contratual implica na irrevogabilidade da oferta, desde que o potencial comprador preencha os requisitos legais para negociar e sua proposta de aceite do negócio tenha atingido o preço mínimo de venda, ficando vedado ao ofertante retirar a oferta no curso da duração razoável do negócio.

Como bem explica, por exemplo, Pontes de Miranda em seu Tratado de Direito Privado:

“No direito comum, a mani­festação ou a declaração de vontade que há nas ofertas não criava, por si, negócio jurídico (= a entrada do suporte fático no mundo jurídico só se dava quando se uniam oferta e aceitação): não vinculava, de si só. Portanto, era fato da vida, porém não fato da vida jurídica. Se ainda não havia ocorrido a aceitação, a oferta pertencia à classe dos elementos não juridicizados (classe a): extinguia-se com a morte, com a incapacidade civil superveniente; e podia ser, livremente, revogada. As relações da vida impuseram ao direito comercial e, depois, ao direito civil, que se tratasse a manifestação de vontade do oferente, desde logo, como suporte fático de negócio jurídico, portanto como vinculante. O direito austríaco, o alemão, o suíço e o brasileiro deram a solução técnica. A vinculação passou a ser a regra: “O que oferta a outrem conclusão de contrato (Código Civil alemão, § 145) é vinculado (gebunden) à oferta, salvo se excluiu a vinculação” A proposta do contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circuns­tâncias do caso”[20]. 

Nas declarações unilaterais de vontade, há a prevalência da confiança suscitada sobre a intenção do agente na prática do ato[21]. Deste modo, a situação geral pela qual alguém tenha feito racionalmente confiança sobre uma dada manifestação jurídica e se comportado em coerência com tal manifestação, proporciona-lhe direito de contar com ela, ainda que tal manifestação não corresponda à realidade[22].

Concluindo, podemos afiançar a consagração da boa-fé objetiva formulada como um dever global  de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade para não frustrar a confiança da outra parte.

Do princípio da boa-fé objetiva deriva o reconhecimento de deveres secundários (não diretamente pactuados), independentes da vontade manifestada pelas partes, a serem observados durante a fase de formação e de cumprimento da obrigação e mesmo, em alguns casos, após o adimplemento desta;

São inseridos como deveres fundamentais dos contratos os deveres de proteção, de informação e de reserva ou segredo. A boa-fé objetiva dá um novo conteúdo a questões da formação dos contratos, como a determinação do valor jurídico do silêncio nos contratos, a irrevogabilidade da oferta, a contratação decorrente de comportamentos jurídicos concludentes, o regime jurídico das expressões implícitas e obscuras, etc.

A relevância jurídica do contato negocial entre as partes implica numa intensificação da responsabilidade que irá se expressar num regime mais gravoso de responsabilidade por ofensas de integridade. Configura-se, então, nesse quadro especial desenhado pelo contrato, informado pela boa-fé objetiva, a violação dos deveres laterais de conduta como uma responsabilidade agravada, totalizante dos valores em jogo no contrato.  

Referências 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. Resp.16.284/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, RSTJ, v. 32.

D’AMÉLIO, Mariano. Apparenza del diritto. In: Novissimo Digesto Italiano - Volume I - Torino: Vnione Tipografico-Editrice Torinese, 1958.

DEMOGUE, René. Traité des obligations em géneral. t. I. Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1923.

ENNECCERUS, Ludwig e NIPPERDEY, Hans Karl, Tratado de Derecho Civil, T. I, vol. II, 1ª parte, Barcelona: Bosch Editorial, 1981.

FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Pessoas físicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954, § 36, 4.

MOZOS, José Luiz de los. La buena fé en el Anteproyecto de Codigo Europeo de Contratos de Academia de Pavia. In: CORDOBA, Marcos M. (Director) Tratado de la buene fé en el derecho. Tomo II. Doctrina Estranjera. Buenos Aires: La Ley, 2004.

PEREIRA, Régis Fichtner. A responsabilidade civil pré-contratual: teoria geral e responsabilidade pela ruptura das negociações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2001.

RÁO, Vicente.  Ato jurídico. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 16ª Câmara Cível. Apelação nº 598209179. Apelante: Eunice Dias Casagrande. Apelada: Acemil Empreendimentos Imobiliários Ltda. Decisão unânime. DJ 19 de agosto de 1998.            

SAVIGNY, Friedrich Karl Von.  Sistema del derecho romano actual.  T. II. Madri: F. Góngora Y Compañía Editores, 1879. 


[1] “§ 242  - O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego”

§ 157  -  Os contratos interpretam-se como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego”

[2] Art. 6º  1. Chacune des parties est libre d’entreprendre des tractations en vue de conclure un contrat sans qu’on puisse lui imputer la moindre responsabilité au cas où le contrat n’est pas stipulé, sauf si son comportement est contraire à la bonne foi.

2. Agit à l’encontre de la bonne foi la partie qui entreprend ou poursuit les tractations sans l’intention de parvenir à la conclusion du contrat. MOZOS, José Luiz de los. La buena fé en el Anteproyecto de Codigo Europeo de Contratos de Academia de Pavia. In: CORDOBA, Marcos M. (Director) Tratado de la buene fé en el derecho. Tomo II. Doctrina Estranjera. Buenos Aires: La Ley, 2004.

[3] Por exemplo, no direito brasileiro: TJRS. 16ª Câmara Cível. Apelação nº 598209179. Apelante: Eunice Dias Casagrande. Apelada: Acemil Empreendimentos Imobiliários Ltda. Decisão unânime. DJ 19 de agosto de 1998. "RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL OU CULPA IN CONTRAHENDO. Tendo havido tratativas sérias referentes à locação de imóvel, rompidas pela requerida sem justificativa e sem observância dos deveres anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, cabe indenização. Lições doutrinárias. Apelo provido em parte."

“Na hipótese, incide o princípio da boa-fé objetiva, atuando como norma de conduta entre os contraentes. Desse princípio, decorrem os chamados deveres anexos ou secundários ou acessórios, como são os de cuidado, de informação ou aviso, e de cooperação. efetivamente, ocorreram sérias tratativas relativamente ao contrato de locação à época em que a apelada detinha poderes para administrar os imóveis e o contrato chegou a ser elaborado, mas não foi devidamente efetivado sem que ficasse evidenciada a razão da desistência da locação, não tendo a apelada se comportado com o respeito em relação à apelante, cuidado esse que deve pautar todas as relações negociais, entendeu o colegiado ser cabível a indenização por danos morais em face da frustração e incômodos causados.

[4] Art. 6º  4. Dans les cas prévus aux alinéas précédents, la partie qui a agi à l’encontre de la bonne foi est tenue de réparer le dommage subi par l’autre partie au maximum dans la mesure des frais engagés par cette dernière au cours des tractations en vue de la stipulation du contrat, ainsi que de la perte d’occasions similaires causée par les tractations pendantes.

[5] PEREIRA, Régis Fichtner. A responsabilidade civil pré-contratual: teoria geral e responsabilidade pela ruptura das negociações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 384/385

[6] Art. 7º  1. Au cours des tractations, chacune des parties a le devoir d’informer l’autre sur chaque circonstance de fait et de droit dont elle a connaissance ou dont elle doit avoir connaissance et qui permet à l’autre de se rendre compte de la validité du contrat et de l’intérêt à le conclure. MOZOS, José Luiz de los. La buena fé en el Anteproyecto de Codigo Europeo de Contratos de Academia de Pavia. In: CORDOBA, Marcos M. (Director) Tratado de la buene fé en el derecho. Tomo II. Doctrina Estranjera. Buenos Aires: La Ley, 2004.

[7] FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 114.

[8] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. (JTJ 155/197-205).

[9] Art. 7º  2. En cas d’omission d’information ou de déclaration fausse ou réticente, si le contrat n’a pas été conclu ou s’il est frappé de nullité, celle des parties qui a agi à l’encontre de la bonne foi est tenue pour responsable devant l’autre dans la mesure prévue à l’alinéa 4 de l’article 6. Si le contrat a été conclu, elle est tenue à restituer la somme ou à verser l’indemnité que le juge estime conformes à l’équité, sauf le droit de l’autre partie d’attaquer le contrat pour erreur. MOZOS, José Luiz de los. La buena fé en el Anteproyecto de Codigo Europeo de Contratos de Academia de Pavia. In: CORDOBA, Marcos M. (Director) Tratado de la buene fé en el derecho. Tomo II. Doctrina Estranjera. Buenos Aires: La Ley, 2004.

[10] POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba : Juruá, 2001, p. 207

[11] Lei nº. 6385/1976. Uso Indevido de Informação Privilegiada

Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

[12] DEMOGUE, René. Traité des Obligations em Géneral. t. I. Paris : Librairie Arthur Rousseau, 1923, p. 299.

[13] SAVIGNY, Friedrich Karl Von.  Sistema del Derecho Romano Actual.  T. II. Madri: F. Góngora Y Compañía Editores, 1879, p. 314.

[14] RÁO, Vicente.  Ato Jurídico. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 120.

[15] Assim também na jurisprudência brasileira: A manifestação de vontade não poderá ser concebida como configurada se os princípios inerentes à matéria exigirem uma declaração expressa. Como bem definiu a 1ª Turma do STJ: “Administrativo. Silêncio da Administração. Prazo Prescricional. A teoria do silêncio eloqüente é incompatível com o imperativo de motivação dos atos administrativos. Somente a manifestação expressa da Administração pode marcar o início do prazo prescricional” (STJ, 1ª T., Resp.16.284/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, RSTJ, v. 32, p. 416)

[16] Art. 17   1. Une offre est irrévocable dès lors que son auteur s’est obligé expressément à la maintenir ferme pour un certain laps de temps, ou si, sur la base de précédents rapports intervenus entre les parties, des tractations, du contenu des clauses ou de la coutume, on peut raisonnablement la réputer telle. Sauf ce qui est prévu à l’article 14, alinéa 1, la déclaration de la révocation d’une offre irrévocable est sans effet. MOZOS, José Luiz de los. op. cit., Buenos Aires: La Ley, 2004.

[17] Art. 20  -  Actes unilatéraux

Les déclarations et les actes unilatéraux réceptices produisent les effets qui peuvent en dériver en vertu de la loi, de la coutume et de la bonne foi, à partir du moment où ils parviennent à la connaissance de la personne à laquelle ils sont destinés et, même si leur émetteur les déclare irrévocables, ils peuvent être retirés jusqu’à ce moment. MOZOS, José Luiz de los. op. cit., Buenos Aires: La Ley, 2004.

[18] Art. 23   1. La promesse adressée au public, prévue à l’article 13 alinéa 2, lie celui qui la fait dès qu’elle est rendue publique et s’éteint à l’expiration du délai qui y est indiqué ou que l’on peut déduire de sa nature ou de son but, ou à compter d’un an après son émission si la situation qu’elle prévoit n’est pas survenue. MOZOS, José Luiz de los. op. cit., Buenos Aires: La Ley, 2004.

[19] Art. 24    Actes concluants   -   Sauf ce qui est prévu dans les dispositions précédentes, le contrat est conclu par l’intermédiaire de comportements concluants quand toutes les conditions du contrat à stipuler résultent de ces comportements, compte tenu également d’accords et de rapports précédents, de l’éventuelle émission de catalogues de prix, d’offres au public, de règles législatives, de dispositions réglementaires et de coutumes. MOZOS, José Luiz de los. op. cit., Buenos Aires: La Ley, 2004.

[20] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Pessoas físicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954, § 36, 4.

[21] Art. 24 - Actes concluants - Sauf ce qui est prévu dans les dispositions précédentes, le contrat est conclu par l’intermédiaire de comportements concluants quand toutes les conditions du contrat à stipuler résultent de ces comportements, compte tenu également d’accords et de rapports précédents, de l’éventuelle émission de catalogues de prix, d’offres au public, de règles législatives, de dispositions réglementaires et de coutumes. MOZOS, José Luiz de los. op. cit., Buenos Aires: La Ley, 2004.

[22] D’AM ÉLIO, Mariano. Apparenza del diritto. In: Novissimo Digesto Italiano - Volume I - Torino : Vnione Tipografico-Editrice Torinese, 1958, p. 714. 

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