O Código Civil de 2002, apesar de se tratar de diploma normativo não tão recente, trouxe grandes inovações no plano jurídico, a exemplo da função social da propriedade e do contrato e da boa-fé objetiva, além da sua conhecida versão subjetiva.
Uma das diretrizes galgadas por legislador civilista foi a de externar a preocupação com a eticidade nas relações jurídicas, na medida em que estabeleceu, expressamente, valores de ética, probidade e boa-fé.
Muitas dessas inovações axiológicas não foram integralmente assimiladas pela sociedade, muitas ainda pendentes de sedimentação jurisprudencial nos Tribunais Superiores. Também encontram resistência em uma ultrapassada cultura que crê na absoluta divisão entre a vida pública e a privada e na imaginária intangibilidade de certos institutos, como o da propriedade e da vontade.
Os valores associados à eticidade trazida pelo Código Civil de 2002 representaram uma resposta ao modelo pós Constituição Federal de 1988, a partir do qual os princípios passam a ter contorno de norma, chamados de “princípios normativos” e assumem o papel de fonte supletiva remota à norma de aplicação imediata.
Nesse contexto, a boa-fé aqui tratada, transmudou-se em princípio normativo e em ferramenta hermenêutica, muito manuseada pelo Poder Judiciário, a despeito das críticas que parte da doutrina faz quanto ao seu suposto uso exagerado e desmedido.
Contudo, é consenso que os princípios éticos do Código Civilista, notadamente o da boa-fé, transbordam os limites da vida privada e atingem, inexoravelmente, as relações de direito público, a exemplo da relação jurídica processual.
Prevista nos artigos 113, 187 e 422 do CC, a boa-fé objetiva é vetor de interpretação, formação, desenvolvimento e execução dos negócios jurídicos, e ainda, instrumento limitador ao exercício de direitos subjetivos.
Enquanto princípio geral do direito, a boa-fé objetiva expande-se para fora dos muros do Direito Civil. Na vida moderna, exige do sujeito de direito uma conduta ativa de honestidade e de solidariedade.
A antiga visão de que boa-fé é sinônimo de inação, isto é, um não agir de má-fé, restou superada.
A forma objetiva da boa-fé requer uma conduta efetiva, positiva, anterior, durante e após a formalização das relações jurídicas, que traz consigo uma série de deveres, tais como a lealdade, o dever de informação, de transparência, de coerência, capaz de mudar toda a interpretação dos atos jurídicos.
Com o advento do Novo Código de Processo Civil e sua efetiva entrada em vigor, a boa-fé passou a ser instrumento à prestação jurisdicional.
Os 12 primeiros artigos do NCPC trazem as chamadas “Normas fundamentais do Processo Civil”. Consoante consta de sua Exposição de Motivos, retratam a necessidade de tornar expressos princípios processuais estampados na Constituição Federal para dentro do Código de Processo Civil, seja para dar-lhes uma redação mais moderna, ou ainda para lhes emprestar maior força normativa e mais efetividade prática.
Observa-se que algumas normas fundamentais do processo são igualmente direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, a exemplo do contraditório e do acesso à justiça.
O artigo 5º[1] do NCPC trouxe de forma expressa, como norma fundamental do processo, o princípio da boa-fé.
Trata-se de inequívoca manifestação da boa-fé objetiva no processo, conforme teor do Enunciado nº 374 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “O artigo 5º prevê a boa-fé objetiva.”
No regime processual anterior (CPC 1973), a boa-fé era um mero dever processual, imponível ao binômio parte/procurador. No NCPC, porém, passou a ser norma fundamental de processo, também imponível ao magistrado.
Em julgado emblemático e anterior à edição da Nova lei Adjetiva, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1306463/RS[2], de relatoria do Ministro Herman Benjamim, reconheceu ser atentatória a prática de atos contraditórios pelo sujeito da relação processual responsável por conduzir o procedimento com vistas à concretização do princípio do devido processo legal (juiz) quando, depois de homologar a convenção pela suspensão do processo, criando nos jurisdicionados a legítima expectativa de que o processo só voltaria a tramitar após o termo final do prazo convencionado, logo em seguida praticou ato processual de ofício - publicação de decisão – considerando-o como termo inicial do prazo recursal. Sob a ótica do Ministro, nessa circunstância, o Poder Judiciário feriu a máxima nemo potest venire contra factum proprium, reconhecidamente aplicável no âmbito processual.
Mais recentemente, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), emitiu uma série de Enunciados acerca da temáticas, dentre os quais se destacam: Enunciado 375-FPPC: “O órgão jurisdicional também deve comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva”; Enunciado 376-FPPC: “A vedação do comportamento contraditório aplica-se ao órgão jurisdicional”; Enunciado 377-FPPC: “A boa-fé objetiva impede que o julgador profira, sem motivar a alteração, decisões diferentes sobre uma mesma questão e direito aplicável às situações de fato análogas, ainda que em processos distinto”.
Assim, resta evidente que todos os atores que produzam efeitos na relação processual, devem agir em estrita obediência à probidade e retidão processual, o que não recai tão somente às partes e auxiliares da justiça, como também ao magistrado, detento do poder jurisdicional e da definitividade das decisões.
O fundamento constitucional da boa-fé processual está no devido processo legal, que é fruto de um ideal de processo justo e equitativo, valores bastante próximos do “fair trial” do modelo norte americano.
A exigência fundamental para um agir no processo pautado pela boa-fé possui inúmeros reflexos em todo o novel sistema processual civil.
A título de ilustração, cita-se a previsão de majoração dos honorários em caso de recurso, conforme artigo 85, §11º[3] do NCPC.
De igual forma, a previsão dos chamados “atos atentatórios à dignidade da justiça”, do “embaraço à efetivação das decisões judiciais” e a “inovação no estado de coisas no processo” são exemplos de uma melhor e mais rigorosa regulação da litigância de má fé, conforme artigos 79 a 81, com destaque ao artigo 77, §2º.
Vale lembrar que na hipótese de o advogado incorrer em ato atentatório à dignidade da justiça, não cabe ao magistrado a aplicação de qualquer penalidade ou sanção processual em face do procurador, tratando-se de reserva à jurisdição, na forma do artigo 77, §6º, do novo CPC[4]. Nesse caso, eventual responsabilidade disciplinar será apurada pelo respectivo órgão de classe.
A boa-fé também resta transparecida nas Tutelas de Evidência, que pode ser concedida frente ao comportamento protelatório de uma das partes, conforme artigo 311, I do NCPC[5]:
Sobre o tema, especial atenção deve ser dada ao disposto no artigo 322, §2º[6], que permite que o magistrado interprete e amplie os limites do pedido, a partir da boa-fé e do “conjunto da postulação”.
Trata-se de considerável flexibilização do princípio dispositivo, uma vez que autoriza o juiz a analisar o pedido de acordo com a boa-fé e não mais sob uma interpretação restritiva, defendida no Código anterior.
Como consequência, reaviva-se a discussão acerca da nulidade (ou não mais) da sentença que decide fora dos limites do pedido (extra petita), em explícita demonstração de que o legislador do NCPC, reforça o caráter instrumental do processo como busca do efetivo enfrentamento do mérito e da rápida pacificação social.
Na prática, espera-se que o poder inserto no artigo 322, §2º do CPC, seja manuseado com cautela pelo magistrado, que deverá estabelecer prévia e juntamente com as partes, os limites objetivos da lide, a fim de que o devido processo legal seja resguardado, como direito fundamental ao Autor e ao Réu.
Por fim, em linhas gerais, percebe-se um engrandecimento do princípio da boa-fé, em sua faceta objetiva, o que, sem dúvida alguma, representa um grande avanço ao Estado Democrático de Direito e o início de uma necessária alteração de cultura processual de postergação e deslealdade entre os seus diferentes atores.
Notas e Referências
[1] Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
[2] REsp 1306463/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 11/09/2012
[3] § 11. O tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso,
o disposto nos §§ 2º a 6º, sendo vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento.”
[4] Art. 77. Art. 77 Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
6oAos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2oa 5o, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará.
[5] Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado ú
til do processo, quando:
I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte.”
[6] Art. 322. O pedido deve ser certo.
1o Compreendem-se no principal os juros legais, a correção monetária e as verbas de sucumbência, inclusive os honorários advocatícios.
2o A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé.”
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