A banalidade do mal: o tempo da tomada da palavra - Por Elisabeth Bittencourt

04/05/2016

Por Elisabeth Bittencourt – 04/05/2016

Sonhei com Primo Levi. Para quem não sabe, inclusive eu, ele escreve... sobre o que mesmo? Devo ter lido, escutado em algum lugar, que sua escrita teria a ver com a experiência de viver num gueto de um campo de concentração nazista. Na dúvida se Primo Levi estaria fazendo ficção ou contando a história de sua própria experiência, dei novamente uma da bela açougueira de Freud, aquela que queria caviar, mas armou uma cena em que aparecia que o que ela queria mesmo era salmão, mentirinha que a jogava direto para o seu desejo de desejo insatisfeito. Desejo de saber o quê? O que mesmo?

Bem, o fato é que comprei o livro e, como no caso do livro de Althusser (1992) O futuro dura muito tempo, dei de presente o Primo Levi para o meu marido. Assim, mantinha uma certa promessa que havia me feito ainda na adolescência, depois que li Treblinka, que contava a história desse campo de concentração. Na época tinha uma amiga judia e conversávamos muito sobre as dificuldades do amor quando a família quer que você se case com alguém que seja judeu.

Depois disso, fiz uma promessa da qual não mais me lembrava até hoje, mas que cumpri até agora: a de nunca mais ler qualquer coisa sobre o nazismo. Fiquei horrorizada! Lembro que, naqueles tempos juvenis, agradecia aos deuses por ter nascido no Brasil, esquecendo por instantes todos os problemas sociais deste país.

Mas é claro que existem os filmes! Como resistir a eles? Recordo que depois que vi “Os deuses malditos”, de Visconti – soberbo filme –, refiz a promessa: este seria o último filme que eu veria em que a cena da suástica dava o fio da trama.

Aqui e ali a cena fascista me acenava e eu não dava bola para ela, tamanho o horror. Precisava me reencontrar com a cena temida que agora trazia esse novo nome que sempre me instigou: a banalidade do mal? Além de que trazia mais uma mulher para a minha turma: Hannah Arendt. Sempre reparei nos ares de espanto que suas idéias causavam em rodas com os meus amigos. Até pouco tempo o que mais me espantava era imaginar como Hannah havia se apaixonado por Heidegger? Olhava para a foto dele e ficava amedrontada; logo os amigos me diziam que ele era boa gente e me falavam de suas ideias, que me cativavam. Ainda bem que existem os amigos!

Finalmente, consegui esticar a mão e reabrir de novo o horror nunca dantes visto por mim e que Hannah, com maestria e pontuações absurdas e profundas, ia me revelando, aos poucos: o horror que não pude ver em minha adolescência.

O pacto de silêncio

Hoje, pela manhã, fui surpreendida com o pacto de silêncio que havia feito na adolescência. Entrementes, o que mais me desconcertou e de que – num só-depois – pude me dar conta, foi o seguinte. Assim que comecei a ler o escrito de Hannah, logo no começinho, começaram a aparecer associações que vinham dos ecos da fala de Alain Didier-Weill na Bahia, num congresso sobre a culpa.

Esse psicanalista francês, que conjuga psicanálise com música, contou de um amigo seu que, surpreendentemente, havia esperado 30 anos para revelar uma parte de sua história, que incluía o convívio num gueto de Varsóvia. Levei um susto! Imagino quantos não fizeram um pacto de silenciar o horror do nazismo!

Alain Didier-Weill ficara particularmente tocado pelo fato de conhecer esse colega psiquiatra desde maio de 1968, de terem feito parte de um grupo de jovens internos em psiquiatria, em que Tom – que assim vai ser chamado – liderava as esperanças desse mágico ano de 68, que este ano faz aniversário.

Uma ressalva: Bertolucci, diretor de cinema italiano, conta numa entrevista que, em 68, dormíamos tendo a certeza de que o dia seguinte seria um novo dia e que eles, nós, os jovens, seríamos os principais protagonistas dessa mudança.

Mas... por que Tom teria levado 30 anos para quebrar o pacto de silêncio sobre sua história? Alain Didier-Weill sugere que evoquemos os “comentários enigmáticos” de Lacan sobre a Shoah. Segundo ele, nenhuma interpretação poderia “dar conta do que acontecera” (Didier-Weill, 2001, p. 95). Lança então uma luz que traz à cena – mais uma vez – um olhar que fascina. Não mais o olhar de Antígona que fascina e fez sua sina e a minha também, mas o fascínio do olhar de um suposto deus obscuro. Sirvo-me de suas palavras para dar alguma configuração ao olhar do deus obscuro.

Mas antes de seguir adiante, vou lhes contar o que aconteceu com Tom, que, aos 13 anos de idade, no gueto de Varsóvia, vivia no seu dia-a-dia o “assassinato progressivo de seus próximos” (Didier-Weill, 2001, p. 96).

Certo dia Tom roubou algumas batatas e as escondeu nas calças. Foi visto por um bedel nazista que o chamou, apontando para ele uma metralhadora. Para sua surpresa, o funcionário do nazismo não o metralhou. Trocou a rajada da metralhadora por uma outra arma mais enigmática e potente e, num certo sentido, mais eficiente.

Em vez de metralhar Tom, o bedel exige que ele tire a roupa diante do grupo presente; as batatas rolam pelo chão, ao mesmo tempo que Tom vira um resto de qualquer coisa, um “nadica de nada”, como se diz no Maranhão. Quando chega ao gueto, tenta o suicídio, mas não morre.

Entre os sobreviventes, havia um velho psiquiatra que acompanhou Tom quando ele saiu do coma. Alain Didier-Weill surpreende-se com a simplicidade e a eficácia de sentido da frase do psiquiatra que fez Tom voltar a desejar: planejar que um dia seria psiquiatra e ajudaria outros, conforme ele havia sido ajudado. O psiquiatra diz: “Mas você sabe, Tom, a vida no gueto não é normal” (Didier-Weill, 2001, p. 96).

O fascínio do olhar do deus obscuro

Vejo que caí num cerco já familiar. O cerco do brilho do olhar de Antígona que me fascinou tempos atrás e me fez escrever “O arrebatamento”. E agora, de que se trata? O cerco de um olhar fulminante de um deus obscuro que coloca o sujeito num lugar vil: “ele faz esta experiência de indignidade absoluta” (Didier-Weill, 2001, p. 96).

O de que se trata, então, são comoções que, conforme Lacan, “nos retêm – nos interditam – nos intimidam – nos desnorteiam” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 300). E é nesse desnorteamento, já agoniada, com medo de me perder de Hannah, que mais uma vez me vejo nesse cerco de interrogações que envolvem o olhar que fascina: “Faz sina. Faz brilhar aquilo que brilha no olhar de Antígona. O quê? O quê?”.

As perguntas de Hannah Arendt

Hannah Arendt coloca que a justiça de Israel exige que Eichmann – responsável pela imigração forçada de milhões de judeus – seja “processado, defendido e julgado”, enquanto, segundo ela, ficavam suspensas “as questões aparentemente mais importantes” (Arendt, 2007, p. 15). Quais seriam elas?

Inspirei-me em algumas dessas perguntas para construir um percurso nessa questão que envolve o horror peculiar que o nazismo difundiu em sua missão ariana: “Como pôde acontecer uma coisa dessas? [...] Como puderam os judeus, por meio de seus líderes, colaborar com sua própria destruição? Por que marcharam para a morte como carneiros para o matadouro?” (Arendt, 2007, p. 15).

Acredito que esse cerco de interrogações beira o irrepresentável para além das questões históricas, políticas, ideológicas, etc... Conforme Lacan coloca, nas palavras de Alain Didier-Weill (2001, p. 95): “nenhuma interpretação [...] de ordem marxista ou hegeliana, poderia dar conta do que acontecera”. Não é à-toa que nesse tempo Sade é ressuscitado.

Fico constrangida em restringir minha escrita, tamanho o horror de um crime contra a humanidade, aos efeitos do olhar. Mas Isso não importa! O que importa é, voltando a Tom, ele se viu frente a frente ao deus obscuro e precisou de 60 anos para que chegasse ao tempo de concluir: “Quer dizer, o tempo da tomada da palavra” (Didier-Weill, 2001, p. 96).

Alain Didier-Weill (2001, p. 95) coloca que é “extremamente difícil escapar ao fascínio daquilo que” Lacan chamou o deus obscuro: “é necessário um olhar particularmente corajoso para poder olhar frente a frente esse deus obscuro sem se deixar envolver pela fascinação”. Pela fascinação de viver a experiência da indignidade absoluta? Isso fascina!

O olhar do deus obscuro atinge o sujeito da cena. O que é colocado em questão é ele mesmo e não o outro, prejudicando assim sua capacidade de julgar. O que é abatido é a dignidade daquele ser fascinado pela vileza, pela humilhação. Isso existe dentro de todos nós, mas como pôde contaminar a massa?

Tom foi atingido no cerne de seu ser, efeito do olhar do deus obscuro que tem o poder de destituir o sujeito, jogando-o numa experiência em que a vileza e a humilhação darão o tom de sua atitude futura. É por Isso que ele tenta o suicídio: sua vida não tem mais sentido.

Que olhar é esse? Segundo Alain Didier-Weill (2001, p. 97): “sob o olhar do deus obscuro, o ser humano pode perder a capacidade de julgar, a capacidade de julgar o bem e o mal”. Tom foi despertado pela possibilidade de julgar, a partir da interpretação do psiquiatra: ali, no gueto, as coisas não eram normais. Em uma outra situação, talvez Tom não roubasse batatas. Nesse momento, ele compreende, deseja um futuro para si e leva 60 anos para tirar a palavra da aba do seu chapéu, para transformá-la num testemunho público.

O que se passa no inconsciente de um sujeito que é visto pelo olhar de alguém que se sente superior por representar uma raça etnicamente pura? É visto no sentido de que, ao se defrontar com tal olhar, ele não tem recursos psíquicos para resistir à sedução do olhar desse deus obscuro, que se imiscui no olhar daqueles que acreditam encarnar uma raça superior. Diante dele, Tom se vê como inferior. A partir daí muitas consequências podem ser tiradas.

Uma delas é a eficácia desse olhar obscuro que precisa de um inconsciente que não pôde simbolizar a tentação de cair num lugar de indignidade absoluta, mas, como disse o psiquiatra: ali não era um lugar “normal”. Afinal, as pessoas no gueto eram aniquiladas dia-a-dia. Ou seja, não se trata da sua casa. E mais, ainda, conta-se que delas, se fazia sabão.

Mas, fora dali, havia a possibilidade de um outro regime político. Se escapo da morte, pode ser que a vida vire outra. É uma promessa que escapa do olhar do deus obscuro. Alguma coisa em mim se enlaça com essa promessa e me protege, apesar da atrocidade do momento.

O terrível desse olhar obscuro, segundo Alain Didier-Weill (2001, p. 97),

é o que há nele que faz com que o sujeito não possa lhe contestar, [...] aceitando a fascinação e impedindo a aparição desse olhar, que Lacan chama corajoso olhar, excepcional, de poder olhar esse olhar do deus obscuro, desse outro absoluto, sem ser alterado.

O suicídio de Tom é uma tentativa de escapar de si. É a certeza de que, se ele vive, é impossível não se deixar atrair para esse lugar de enorme gozo: o lugar de ele se ver vilipendiado: “Ele sabe que não é um sub-homem, mas é uma verdade sem consequências, sem esperança, porque ele sabe a verdade, mas não acredita nela” (Didier-Weill, 2001, p. 98).

O horror do nazismo

No entanto, se essas questões apontadas por Hannah fazem a angústia se instalar, existe algo que acrescenta um-a-mais ao horror do nazismo. Algo, de que ela muito rapidamente se deu conta, talvez por escutar Heidegger, que influenciava bastante Lacan: o homem contemporâneo, foracluído de seu sujeito, influenciado pelas maquininhas modernas de criar ilusão, amansado em sua virulência, que já não se preocupa em se perguntar por isso ou aquilo – é efeito de uma dessubjetivação.

Cito Lacan (apud Julien, 2001, p. 71):

Ele colaborará eficazmente à obra comum no seu trabalho cotidiano. Vai ocupar os seus momentos de lazer com todas as amenidades de uma cultura, do romance policial, memórias históricas, conferências educativas, com a ortopedia das relações grupais. (É isso, relações de grupo, no trabalho, com o facilitador. Vocês conhecem isso. Para que você se torne um bom instrumento no grupo de trabalho). E assim ele esquecerá sua existência, sua morte, e entrará numa falsa comunicação, desconhecendo o sentido particular, não universal de sua vida.

Ele é o responsável pelo horror do nazismo: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 2007, p. 299).

É disso que se trata. Em nossos dias, o homem caminha pelo fogo sem ver o fogo. Mais uma magiquinha dos tempos atuais. Mas, se ele não vê o fogo, este se alastra pelo seu corpo reduzindo a cinzas aquilo que apontaria o âmago de seu ser, aquilo que inscreveria um estilo, aquele que poderia escolher: pera, uva ou maçã?

Despossuído de si, livre de sua tragicidade, o homem contemporâneo, perdido da palavra plena, desiste de pensar. Passa a brigar por um dinheirinho a mais que, para além de qualquer ironia, é bastante necessário neste país de miseráveis, em que, para você sobreviver, em cada esquina tem que lutar com a torpeza.

Esse homem normal que, diante da dessubjetivação, não sabe o que fazer, o que dizer, esse homem que perdeu o fio da palavra que diga do seu desejo, que precisa de um manual de instruções nem que seja para mandar milhões de judeus para qualquer lugar, forçando a emigração nem que fosse para os quintos dos infernos: esse seria o monstro. E existem monstros?

Para terminar, palavras de Hannah Arendt (2007, p. 92):

essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava [...] um tipo novo de criminoso, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado.


Notas e Referências:

ALTHUSSER, Luis. O futuro dura muito tempo. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 1992.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. INCLUIR Tradução de José Rubens Siqueira.São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BITTENCOURT, Elisabeth. O arrebatamento. Bergasse 19: Revista da Escola Lacaniana de Psicanálise. Rio de Janeiro, v. 1, p. 97-107, 2007.

DIDIER-WEILL, Alain. Pesquisa sobre a culpa. In: Congresso internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia: a Culpa, 2, 2001, Salvador. [Trabalhos apresentados]. Salvador: Colégio de Psicanálise da Bahia, 2001. p. 95-123.

JULIEN, Philippe. A culpa na modernidade. In: Congresso internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia: a Culpa, 2, 2001, Salvador. [Trabalhos apresentados]. Salvador: Colégio de Psicanálise da Bahia, 2001. p. 69-82.

LACAN, Jacques. (1959-1960). O seminário, livro 7: a ética da Psicanálise.Versão brasileira de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

Filmografia

OS DEUSES malditos. Dirigido por Luchino Visconti. Produção: Ever Haggiag e Alfred Levy. Itália: Eichberg-Film GmbH / Praesidens-Pegaso Italnoeggio, 1969. 1 DVD.


IV Encontro 13 Luas sob o tema “A responsabilidade” a partir de Eichmann em Jerusalém de Hanna Arendt, promovido pelo Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: março de 2008, Ilha do Mel, Paraná.


Elisabeth Bittencourt. Elisabeth Bittencourt é Psicanalista e Escritora. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Smoke // Foto de: David Johny // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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