A banalidade do mal: Direito Penal do Inimigo, totalitarismo e poder punitivo

01/05/2016

Por Pedro Henrique Pavanatto de Freitas - 01/05/2016

A palavra “inimigo” remonta, primeiramente, a alguém com o qual não se deve tratar com afeição, com amor. Cumpre ressaltar, criticamente, portanto, alguns aspectos da sociedade contemporânea, que através do poder punitivo faz um ataque diário a pessoas que são declaradas como inimigas, em uma face oculta, pois não oficialmente assumida do Direito Penal do Inimigo proposto pelo funcionalista alemão Jakobs. Há uma ligação intrínseca do inimigo à ideia de mal, pois, busca-se através do Direito Penal do Inimigo identificar pessoas más, hostis. Porém, segundo a filósofa política alemã Hannah Arendt, “o mal não possui nem profundidade nem dimensão demoníaca (versa aqui algo que já vai de encontro ao significado popular de inimigo: Demônio ou demoníaco) sendo o mal superficial, é apenas uma armação que cobre um vazio”.

Para demonstrar o conceito superficial do mal, buscamos na obra Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, a significação da problemática do enraizamento do mal na conduta social. Nesta obra da cientista política Hannah Arendt faz uma análise do julgamento de Otto Adolf Eichmann, Obersturmbannführer (tenente-coronel) da SS Nazista, em Jerusalém, acusado (entre outros) de crimes contra o povo judeu, crimes contra humanidade e crimes de guerra.

Ainda, cabe ressaltar que o acusado foi tido como responsável pela morte de mais de 5 milhões de Judeus, pois este era, dentro da complicada hierarquia do Nacional-Socialismo Alemão, o homem que cuidava da emigração e do transporte para os campos de concentração dos judeus no Terceiro Reich. Porém, ao contrário do que podemos à primeira vista pensar, Eichmann possuía um comportamento exemplar, tinha uma personalidade quanto a seus familiares, amigos e membros da comunidade, não apenas normal, mas inteiramente desejável. E ainda, segundo o sacerdote que era seu confessor durantes os meses que seguiram o julgamento, Eichmann “era um homem de ideias muito positivas”.

Apesar da acusação e posterior condenação de Eichmann (foi condenado a pena de morte em Israel) vemos que não se tratava de um monstro. Durante todo julgamento ficou claro que não estávamos a tratar com um caso de insanidade moral e muito menos de insanidade legal, não era o caso de um ódio irracional aos judeus, de um fanático anti-semitismo. Pessoalmente, ele tinha até razões pessoais para não ir contra os judeus.

Desta controvérsia, percebemos um fato notável sobre o mal. o caso de Eichmann é capaz de demonstra que a banalidade do mal faz referência, portanto, à aparência de mal, enquanto fenômeno que se mostra visível, vemos que “as aparências não apenas revelam; elas também ocultam” ou seja, as aparências expõem e também protegem da exposição e, exatamente porque se trata do que está por trás delas, a proteção pode ser sua mais importante função. A aparência de banalidade (regra em regimes totalitários) tem justamente a função de ocultar o verdadeiro escândalo que são estes regimes.

Esta banalidade do mal se baseia em três diferentes pilares: a irrealidade, a necessidade e a ausência do pensamento:

A irrealidade é o desconhecimento deliberado das pretensões da realidade. Os chavões, as trivialidades, as frases prontas e ainda, os códigos de expressão padronizados e convencionais que servem para afastar os indivíduos da realidade, transformando-os em coisas, seres não pensantes, levando-os a viver e agir em um mundo irreal. Nesse sentido é possível ser exemplificado com frases nacionalistas-românticas como: “Brasil ame ou deixe!”. Está incapacidade acompanhou Eichmann até seu último suspiro, ele nunca conseguiu se expressar sem as frases prontas ditas pela propaganda e pelos discursos de seu governo. Falava: Minha única língua é o oficialês [Amtssprache]. O ponto aqui é que o oficialês demonstra a ausência de capacidade reflexiva, pensar sem clichês.

A necessidade seria a presença de um sistema que exige que cada um seja condescendente, por meio de sua função, a um ponto tal que implicaria a perda da identidade pessoal e, portanto, a possibilidade de reivindicar a responsabilidade de seus atos. Eichmann cumpria seu dever, claramente ele não só obedecia às ordens como obedecia à lei. Ponto claramente contemporâneo tendo em vista leis promulgadas em nossa sociedade de clara abstração e diminuições de liberdades individuais.

Além disto, existe a busca pela ausência de pensamento dos cidadãos que fazem parte do sistema. Essa ausência de pensamento facilita a passividade e sujeição, pois o estado de não pensar obriga as pessoas a se agarrarem às regras de conduta, quaisquer que elas sejam tornando-se habituadas a obediência cega ao que as controla, seja governo ou qualquer ente detentor de poder, ou seja, seguem medidas e leis sem fazer um exame rigoroso de seus conteúdos.

Por conseguinte, no mal não conseguimos buscar razão, não existem bases no mal, pois quando pensado e devidamente analisado este mal, apenas o vazio lá é encontrado. Logo, quando o mal se torna banal pode ser atribuído a qualquer um, sem distinção, sempre buscando servir a interesses não democráticos e deixando de lado o Estado de Direito.

Logo, quando o poder punitivo escolhe certas pessoas para assumir o papel de inimigos da sociedade, vemos que isto constitui um importante elemento para a supressão da democracia pelo totalitarismo, como no caso de um direito penal do inimigo de papel semelhante ao do “Direito Nazista”. A distinção entre cidadãos e inimigos transforma os últimos em meros objetos coisificando o ser humano, desta maneira algumas leis penais acabam por ser um instrumento de banalização do ser humano. E devido a isto nenhum membro de um sistema que tem inimigos ao invés de pessoas como foco de aplicação do Direito Penal ficará receoso em eliminá-los.

Mas não só, quando o poder punitivo indiscriminadamente seleciona “inimigos” transforma-se o direito penal na ferramenta necessária e essencial de um estado totalitário, pois retira-se das pessoas que estão por trás do sistema estabelecidos a responsabilidade e a capacidade de serem punidos pelas atrocidades que cometerem, ou seja, os atos, por mais atrozes que sejam, constam nas leis e as pessoas, que estão dentro desta hierarquia de poder, não respondem por seus atos, pois apenas cumprem as leis.

Aproximando, novamente, do ponto de comparação a conduta de Eichmann não era a única. Haviam muitos indivíduos iguais a ele, sendo que a maioria dessas pessoas não eram nem cruel nem malvado, eram considerados, ao contrário, absolutamente normais. Logo, estes tipos de criminosos, cometem seus crimes sob circunstâncias tais que se torna quase impossível, para eles, saber ou sentir que estão agindo mal. Vê-se que os acontecimentos políticos, sociais e econômicos conspiram, como os instrumentos para tornar os indivíduos supérfluos.

O problema que Hannah Arendt traz a baila está no fato que quando o Estado tem como modelo de cidadão, o indivíduo que atua sob ordens, que obedece cegamente e é incapaz de pensar por si mesmo, esse modelo deixa de ser pluricultural e passa a ser autoritário. A supremacia da obediência pressupõe o fim da espontaneidade do pensamento e nessa ausência de pensamento, nessa expressão humana opaca, nessa rarefação das consciências aparece a tragédia, batizada por Hannah Arendt de a “banalidade do mal”.

Por vezes o poder punitivo contemporâneo faz exatamente o mesmo, isto é, dá aos políticos, militares, burocratas do sistema, os meios para cometerem as piores atrocidades sob o manto da legalidade e da razão de Estado, pois não serão os aplicadores da lei que praticam o mal, mas sim a norma, o sistema legal.


Notas e Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999.

CORREA, Leonildo; GRECO, Vicente. A Banalidade do Mal e o Direito Penal do Inimigo. 2012. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/hannah-arendt-contra-g%C3%BCnther-jakobs>.

GERBER, Daniel. Direito Penal do Inimigo: Jackobs, nazismo e a velha estória de sempre. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/7340/direito-penal-do-inimigo>

JACKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo. Trad. CALLEGARI, André Luis, GIACOMOLLI, Nereu José. Livraria do Advogado, 2005.


Pedro Henrique Pavanatto de Freitas. Pedro Henrique Pavanatto de Freitas é Mestrando em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGCCrim) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais da PUCRS. Membro do Grupo de Pesquisa Linguagem, Cognição e Processo Penal, sob a coordenação da Prof.ª Clarice Beatriz da Costa Söhngen. Advogado Criminalista. E-mail: pavanatto.pedrohenrique@gmail.com


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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