Por Natasha Karenina - 11/02/2016
Em virtude da profusão de blogueiras feministas e debates temáticos na internet, movimentos feministas de dimensão mundial como a própria Marcha Mundial das Mulheres e a Marcha da Vadia, inovações legislativas como a Lei Maria da Penha ou mesmo autoidentificação pública de muitas mulheres e de muitos outros fatores, o feminismo tem se tornado cada vez mais uma questão essencial na vida de todas nós mulheres – nos declaremos ou não como tal. A conquista de novos direitos e a (tentativa de) retirada de alguns têm mantido esta questão na esfera pública muito em virtude do tensionamento de nós mulheres. Cada vez mais jovens as meninas têm a oportunidade de refletir sobre seus direitos e situações de violações, ainda que a violência contras as mulheres continue sendo uma preocupação das agências nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos.
Todas nós, em alguma medida, fomos vítimas, ou presenciamos, assédio, discriminação, silenciamento ou outras formas de violência física, psicológica, econômica em virtude simplesmente do fato de sermos mulheres. Campanhas virtuais como #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto proporcionaram que simultaneamente relatos de violências contras as mulheres, cometidas inclusive por pessoas de sua intimidade, fossem narradas como forma de denúncia, terapia e empoderamento. Mesmo sem saber quem eram os agressores, infelizmente podíamos nos identificar com muitas das situações apresentadas, o que reforça a ideia de que o machismo não é pontual e sim um elemento estrutural de nossa sociedade.
O espaço acadêmico, ainda mais o jurídico, até pouco tempo não era por nós ocupado, ou, quando ocupado, restávamos cursos considerados adequados para mulheres como Pedagogia, Licenciaturas em geral e Serviço Social. No Direito, para obtermos respeito, muitas vezes precisamos agir com mais dureza: empostar a voz, vestir ternos e cores sóbrias, evitar temas e discussões que possam ser “femininos” para que não percamos o respeito em nosso ambiente de estudo ou trabalho[1]. A necessidade de reconhecer nosso papel político dentro dos cursos de Direito, dominados por ternos e rigor, dialoga com a imprescindível necessidade de nos organizarmos enquanto mulheres.
Remontando os meus tempos de graduanda, percebo como é difícil olhar para o passado com olhos de observador imparcial e não de julgador, especialmente quando se trata do nosso próprio passado e de questões voltadas ao feminismo. Durante a Universidade, participei do Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina, o projeto Cajuína, que partia dos marcos teóricos da assessoria jurídica universitária popular – AJUP.
A AJUP consiste no trabalho desenvolvido por estudantes, de Direito ou não de assistência, orientação jurídica e/ou educação popular com movimentos sociais ou dentro da própria universidade para realização de direitos fundamentais de integrantes de movimentos sociais ou estudantes por meio de mecanismos institucionais ou não. Muitas universidades do Brasil contam com núcleos de assessoria jurídica, que se articulam regionalmente em seus estados ou nacionalmente em torno da Rede Nacional de Assessoria Jurídica – RENAJU.
Ainda que estes grupos pautem a sua atuação interna e externamente na educação popular e no respeito aos direitos humanos, não reforcem hierarquias de poder dentro dos núcleos e busquem a construção de saberes dialógicos com as comunidades, muitas alunas minhas e outras estudantes que fazem parte de AJUPS têm relatado casos de machismo, racismo, LGBTfobia e outras manifestações de preconceito que parecem inconcebíveis em ambientes que pregam a dirimição de todo e qualquer preconceito.
Infelizmente as práticas relatadas não são exclusividade das AJUPs e também são percebidas nas atividades e construções políticas de forma geral. Interromper a fala da companheira (manterrupting) para, por exemplo explicar o que ela está dizendo e levar o crédito por isso (bropriation); explicar obviedades para uma mulher julgando-a incapaz de entender determiado assunto (mansplaining); manipular psicologicamente a companheira para fazer com que duvide de suas memórias ou capacidades intelectuais (gaslighting) nos espaços de militância; delegar às mulheres as tarefas de secretariado – relatoria e coordenação das reuniões, por exemplo - e não garantir que elas ocupem lugar de figuras públicas, fazendo com que as referências das organizações sejam sempre homens. Esses exemplos também são narrados em blogs e textos das militâncias estudantis, partidárias, campesinas, sindicais e outras.
Ao saber de tais relatos minha primeira e apressada impressão foi pensar: “Na minha época não tinha isso”. Ora, Natasha, na sua época não havia isso ou vocês coletivamente ainda não tinham desenvolvido um processo de consciência que permitisse enxergar atos de machismo, ponto deste texto, em práticas cotidianas de familiares, namorados ou companheiros, membros da mesma organização? O fato de vocês não perceberem significa que estes atos de machismo não existissem?
Ainda que de fato eu não seja tão velha no movimento e esteja formada há menos de cinco anos, percebo que a temática que opressões era menos discutida internamente em meu projeto e mesmo na RENAJU. Educação popular, direitos humanos e criminalização dos movimentos sociais eram as pautas que estavam em voga e ainda que se discutisse feminismo, esta não era uma questão tão essencial para nós. Qual o motivo disso ter acontecido? A falta de debate e de espaços auto-organizados faziam com que nós não tivéssemos nos dado conta da estrutura na qual estávamos inseridas. Sabíamos da existência do machismo, declarávamo-nos feministas mas vivíamos relacionamentos abusivos, sofríamos com a heternormatividade e não conseguíamos identificar situações de opressão. A questão da naturalização das estruturas dominantes machistas, sexistas e heteronormativas e a pouca discussão sobre o tema são fatores que podem ter influenciado este processo.
Em contrapartida, muitas das minhas alunas e estudantes que fazem parte de AJUP têm uma facilidade muito maior em reconhecer situações de opressoras e, especialmente de violência contra a mulher. Seus núcleos têm contato com esses espaços auto-organizados, compostos apenas por mulheres, que permitem seu protagonismo do processo de tomada de consciência enquanto feministas. Tornamo-nos assim capazes de promover nossa própria emancipação e criamos uma identidade política coletiva enquanto mulheres, o que nos coloca em movimento e permite que ajamos em unidade. Tais espaços não excluem a existência de espaços mistos, em que homens e mulheres possam debater juntos. Espaços auto-organizados e mistos são complementares, mas cada um possui funções políticas diferentes.
Tenho visto com bastante entusiasmo as iniciativas de auto-organização das AJUPs existentes em Teresina – ainda que não saiba exatamente quando eles tiveram início - porque isto permite que as meninas consigam compartilhar experiências de violências sofridas nos cursos de Direito, nos próprios núcleos e em outros espaços de militância como no movimento estudantil e nos movimentos sociais. Além disto, estas iniciativas permitem a percepção de como reproduzimos o machismo estrutural, a nós ensinadas em diversos espaços desde criança, e como juntas, enquanto irmãs e não inimigas, podemos superá-las. Estes espaços não estão livres de conflitos assim como nós não estamos livres de deixar de reproduzir o machismo.
Dentro das AJUPs, os espaços auto-organizados garantem que as mulheres consigam se empoderar para identificar situações de machismo e de outros tipos de violência e encontrar formas coletivas de ir além delas em suas experiências pessoais e organizacionais. O empoderamento garante as mulheres consigam se posicionar perante as práticas machistas e seus companheiros de organização e consigam todos e todas construir espaços verdadeiramente não hierárquicos em que a educação popular e a cultura de direitos humanos não sejam meros discursos.
É importante perceber que, auto-organizadas, conseguimos nos conhecer melhor e às nossas companheiras de organização para juntas e pensar coletivamente como atuaremos para dentro e para fora de nosso núcleo, especialmente no curso de Direito que demanda fortalecimento diário contra diversas opressões. A auto-organização não é importante apenas para as estudantes do curso de Direito, integrantes ou não de AJUPs, mas para todas nós mulheres em busca de auto-conhecimento, fortalecimento e empoderamento enquanto irmãs.
Notas e Referências:
[1] A advogada Cynthia Semiramis publicou o texto “O judiciário e as roupas femininas” com interessantes considerações em seu blog. Disponível em: <https://cynthiasemiramis.org/2007/03/16/o-judiciario-e-as-roupas-femininas/>. Acesso em 02 fev. 2016.
. Natasha Karenina é graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Professora de graduação em Direito. . .
Imagem ilustrativa do post: Women working? // Foto de: Connie Ma // Sem alterações
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