Da leitura do artigo 6º e seguintes do Código de Processo Penal é possível concluir que o Ministério Público, investigadores privados, ofendidos, familiares e advogados não foram incluídos no sujeito ativo da investigação preliminar. Contudo, em que pese não exista previsão legal no Código de Processo Penal e tampouco na Constituição Federal (art. 144, § 4º) para o Ministério Público investigar, com o passar do tempo, referida instituição passou a investigar as infrações penais.
Além do art. 144, § 4º da Constituição Federal não possibilitar ao parquet a investigação criminal, o art. 129 da Carta Magna também não enumera como função ministerial a investigação criminal.
A Constituição Federal prevê explicitamente como atribuição da polícia judiciária a apuração das infrações penais, conforme se observa no art. 144, § 4º, sendo que cabe ao Ministério Público tão somente fiscalizar a atividade policial, nos termos do artigo 129, VII, da Constituição Federal.
O Código de Processo Penal, por sua vez, prevê que cabe ao Ministério Público requisitar diligências à autoridade policial (art. 13, II, CPP). Desse modo, não atribui poderes à referida instituição.
Na literalidade, o Ministério Público não possui atribuição para investigar infrações penais e diversos são os argumentos da doutrina que defende a impossibilidade de o parquet atuar na função investigativa, sendo um dos argumentos o de que não se pode extrapolar o limite constitucional, eis que ao agente público só é permitido agir conforme a lei.
Contudo, também existem argumentos favoráveis à investigação criminal ministerial e o principal fundamento favorável é pautado na teoria dos poderes implícitos:
O principal argumento a favor da possibilidade de o Ministério Público realizar investigação própria é que a atividade de investigação preliminar para fins criminais não é exclusiva da autoridade policial. Costuma-se a acrescentar, a tal argumento a chamada teoria dos poderes implícitos: se a Constituição conferiu ao Ministério Público o direito de promover a ação penal, deve dispor dos meios necessários para fazê-lo, mesmo que para tanto não haja expressa previsão constitucional, e isso incluiria o direito de investigar diretamente as fontes de provas. Afirma-se, também, que para determinados delitos – por exemplo, que envolvam agentes policiais, ou mesmo importantes autoridades políticas – os membros do Ministério Público, por gozarem de garantias constitucionais para sua atuação, poderiam investigar de forma mais independente e, portanto, efetiva.[1]
Por essa teoria, parte da doutrina defende que o Ministério Público pode investigar, pois se referido órgão pode promover a ação penal também deve dispor dos meios necessários para a persecução criminal. Ocorre que, como apontado por Paulo Rangel, no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro, há casos em que a atividade judiciária vem sendo feita pela polícia militar, o que evidentemente afronta à Constituição Federal, tendo em vista que:
No Brasil, hodiernamente, em especial no Estado do Rio de Janeiro, há casos de exercício da polícia de atividade judiciária sendo feito pela Polícia Militar, em verdadeira afronta à Constituição, inclusive, há delegacias de polícia que já contam com certo número efetivo de policiais militares realizando investigação criminal como se integrantes da polícia judiciária fossem. A matéria é constitucional e não pode ser tratada em nível estadual, mas sim, somente pela União, através do Congresso Nacional (cf. arts. 22, I, c/c 24, XVI, c/c 144, § 4º, da CRFB). A lotação de policiais militares em Unidades de Polícia Judiciária, por decreto ou qualquer outro ato normativo do Governador do Estado, é manifestamente inconstitucional. Os atos da Administração Pública devem obedecer ao princípio da legalidade (art. 37 da CRFB).[2]
Se tal raciocínio se aplica à polícia militar que não tem previsão constitucional para investigar, também deve se aplicar ao Ministério Público, isso em uma interpretação literal. Porém, o jurista Paulo Rangel no livro “Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público” faz uma série de apontamentos favoráveis a investigação criminal ministerial e aduz que cabe ao Ministério Público zelar pela ordem violada e que a investigação ministerial é uma garantia constitucional do cidadão:
Negar a atuação direta do Ministério Público nas investigações criminais é querer legitimar a atuação de determinadas organizações criminosas, bem como o corporativismo policial em casos que envolvam a pessoa de determinadas autoridades, como, por exemplo, os grupos de extermínio patrocinados por determinados “comerciantes” envolvendo certas autoridades das mais diversas esferas de poder. Se não há investigação competente por parte do aparelho policial visando elucidar a prática de um crime, não resta outra saída à sociedade senão exigir do Ministério Público, seu guardião, a investigação criminal devida e responsabilidade do seu autor.[3]
Rangel aponta que não há no novo Código e nem no anteprojeto de Código de Processo Penal nenhuma disposição legal que impeça a investigação ministerial, acrescentando que o Ministério Público também pode investigar os crimes cometidos pelos “administradores, integrantes do governo, que, por exercerem poder hierárquico sobre as atividades das autoridades policiais, muitas vezes, impedem que haja uma apuração isenta [...]”[4] – como de fato, com a devida vênia, também não há dispositivo que possibilite a investigação ministerial, como apontado pelo professor José Afonso da Silva.
Valtan Furtado, em um artigo publicado junto ao boletim do IBCRIM, trouxe 15 razões para o Ministério Público Investigar Infrações Penais e dentre os motivos que ele enumera encontra-se a questão de que referida investigação já é tendência na Alemanha, Itália, Portugal, França, Chile, Bolívia, Venezuela etc., bem como que:
A prática tem demonstrado como é relevante a atividade investigatória do MP no campo criminal, seja na apuração de crimes de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, fraude contra o sistema financeiro e corrupção, sendo o famoso caso do desvio de recursos do TRT de São Paulo apenas um dos inúmeros em que se revelou fecunda a condução de investigadores no âmbito interno do MP.[5]
A questão da investigação ministerial também chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que no ano de 2003 concluiu que o agente ministerial não tinha o poder de realizar e presidir o inquérito policial, mas tão somente de requisitar diligências e informações à autoridade policial, nos termos do RHC n.º 81.326/7/DF, de relatoria do Ministro Nelson Jobim.
Posteriormente, o STF no Recurso Especial 593727/MG e no HC 85011/RS reconheceu que o Ministério Público tem legitimidade para promover autonomamente a investigação de natureza penal, mediante alguns critérios que estão enumerados na própria decisão, sendo necessário destacar os critérios mais importantes: 1) Que os direitos e garantias fundamentais do investigado devem ser respeitados pelo Ministério Público; 2) Que os atos investigatórios devem ser documentados; 3) O Ministério Público deve respeitar às prerrogativas dos advogados; 4) Que os atos do parquet estarão sujeitos ao controle permanente do judiciário.
Todavia, a discussão da (im) possibilidade de investigação ministerial ainda permanece na comunidade jurídica.
Como apontado por Badaró, normalmente o Promotor de Justiça acaba investigando apenas aqueles casos ligados à mídia que são cometidos por políticos, líderes religiosos, pessoas influentes, ricas etc. Tanto é que esse é um dos fundamentos utilizados por aqueles que são favoráveis à investigação criminal ministerial, o de que o MP deve investigar especialmente porque investigaria pessoas influentes.
Outro argumento dos que são contrários à investigação criminal ministerial é o de que a Constituição Federal não foi omissa, haja vista que a Carta Magna atribui exclusivamente à polícia judiciária a tarefa mencionada acima, tanto é que o próprio Código de Processo Penal prevê como funcionará a investigação por parte da polícia judiciária.
Além disso, também se tem o entendimento de que é perigoso concentrar o poder de investigação e de titular da ação penal pública nas mãos de um único ente - Ministério Público, sob pena de atribuição excessiva de poder.
Outro ponto é que durante a constituinte todas as tentativas de inclusão do Ministério Público enquanto detentor do poder investigatório foram rejeitadas, o que demonstra que a intenção do legislador não era a de atribuir referido poder ao parquet.
O Ministério Público tem poder para atuar nas investigações já existentes e abertas pela polícia judiciária, todavia, para alguns, não deveria ter o poder fático de atuar autonomamente – o que é assegurado pelo STF na decisão prolatada no Recurso Extraordinária 593727/MG e no Habeas Corpus 85011/RS.
Outro contraponto, é o de que o parquet ao presidir a investigação preliminar reforça a tese acusatória e reforça o seu papel acusador, já que não existe neutralidade/imparcialidade no papel do investigador, sendo que ele poderá inclusive desconsiderar provas favoráveis à defesa em razão do âmago acusatório.
A propósito o ius puniendi é realizado pelo Ministério Público em face do acusado, portanto, o Ministério Público é parte no processo penal – em que pese a instituição muitas vezes se autodenomina como imparcial. A respeito do Ministério Público figurar como parte no processo penal:
São múltiplas as críticas à artificial construção jurídica da imparcialidade do promotor no processo penal. O crítico mais incansável foi, sem dúvida, o mestre Carnelutti, que em diversas oportunidades pôs em relevo a impossibilidade de “la cuadratura del círculo: ¿No es como reducir un círculo a un cuadrado, construir una parte imparcial? El ministerio público es un juez que se hace parte. Por eso, en vez de ser una parte que sube, es un juez que baja”. Em outra passagem, Carnelutti (Lecciones sobre el proceso penal, p. 99) explica que não se pode ocultar que, se o promotor exerce verdadeiramente a função de acusador, querer que ele seja um órgão imparcial não representa no processo mais que uma inútil e hasta molesta duplicidad. Para J. Goldschmidt (Problemas jurídicos y políticos del proceso penal, p. 29) (...).[6]
Como dito, o Promotor exerce a função de acusador, assim, não se pode influir que uma investigação ou que o pleito ministerial seja dotado de imparcialidade, especialmente porque, no sistema pátrio, a imparcialidade é característica apenas do Juiz.
O professor José Afonso da Silva em um parecer ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) concluiu que o Ministério Público não tem competência constitucional para investigação criminal direta; que não se pode usar o argumento de que a polícia é corrupta para conferir poder investigatório ao Ministério Público, eis que não se pode concluir que a corrupção também não atinge/atingiria o Ministério Público[7]; que o Ministério Público tem funções maiores do que a investigação criminal, de modo que cabe a instituição zelar por quem não tem quem defesa, como o índio, a natureza e o consumidor; que o que vale não é a intenção do legislador, mas “a intencionalidade das normas constitucionais o que significa que o sentido de cada norma ou de cada conjunto de normas se extrai do plexo de valores que foram incorporadas na Constituição”[8], especialmente porque a própria Constituição estabeleceu à polícia civil e federal a função judiciária.
No que tange ao argumento comumente utilizado, qual seja, o da teoria dos poderes implícitos, o professor José Afonso da Silva expõe que esse argumento também não é válido à investigação ministerial, porquanto a Constituição Federal não silenciou em relação ao poder investigatório, pelo contrário, a CF atribuiu expressamente esse Poder a outro órgão que não é o Ministério Público:
Primeiro, o poder implícito só ocorre quando Constituição não se ocupa da matéria; segundo, não cabe a determinado órgão a competência que está prevista para outro. No caso sob nossas vistas, a Constituição se ocupou do tema, conferindo a investigação na esfera penal à polícia judiciária, logo, ela não cabe a nenhum outro órgão ou instituição, nem, portanto, ao Ministério Público.[9]
Portanto, de acordo com o posicionamento do professor José Afonso da Silva, a investigação ministerial não encontra amparo constitucional, mas faticamente é permitido ao parquet a investigação criminal, tanto é que a Lei Orgânica do Ministério Público possui previsão específica para tanto, nos termos do art. 8º, V, da Lei Complementar n.º 75/1993.
Notas e Referências
[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 156.
[2] RANGEL, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. 5. ed. São Paulo: Atlas Ltda, 2016, p. 100.
[3] RANGEL, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. 5. ed. São Paulo: Atlas Ltda, 2016, p. 105.
[4] Ibid., p. 106.
[5] FURTADO, Valtan. 15 Razões para o Ministério Público Investigar Infrações Penais. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 12, n. 139, p. 10-11, jun./2004.
[6] LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 366.
[7] “O Ministério Público brasileiro ficou muito entusiasmado com a atuação dos Procuradores italianos na chamada operação “mãos limpas”, que teve inequívoco sucesso no combate aos crimes mafiosos. Como se sabe, na Itália vigorava até 1989 o juizado de instrução, quando foi suprimido, e os poderes de inquérito e de investigação concentraram-se nas mãos do Ministério Público. Essa transformação proveio da legislação anti-máfia e teve impacto imediato, mas não tardou a surgirem os abusos de poder. O Procurador Di Pietro, o mais destacado membro do Ministério Público de então, teve que renunciar ao cargo em conseqüências das denúncias de desvio de poder; assim também se deu com Procuradores na Sicília. Então, a suposição do parecer do Prof. Luís Roberto Barroso é algo que a experiência já provou. O Ministério Público no Brasil é hoje uma Instituição da mais alta consideração pública por sua atuação ética e sua eficiência que é preciso conservar e defender. E um dos modos eficazes dessa defesa consiste em mantê-lo dentro dos estritos contornos de suas funções institucionais que não inclui a função investigatória direta.” Disponível em: CONJUR. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-jose-afonso-silva-pec-37.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
[8] CONJUR. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-jose-afonso-silva-pec-37.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
[9] CONJUR. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-jose-afonso-silva-pec-37.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
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