A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CUSTOS VULNERABILIS NO PROCESSO PENAL        

14/07/2019

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

A Defensoria Pública nasce como meio de garantir as pessoas em estado de necessidade acesso à justiça, o que a princípio se perfez por meio da assistência judiciária, dispensando-se as custas e emolumentos daqueles que não teriam recursos financeiros para demandar em juízo. Entretanto, diante da complexidade das relações processuais e das diversas demandas de vulnerabilidades, surge a necessidade de um novo atuar defensorial capaz de efetivar uma real assistência jurídica, abarcando não apenas os vulneráveis economicamente, mas todos aqueles que necessitarem da proteção do Estado em razão de alguma vulnerabilidade.

Desse modo, foram criadas normas e teorias formando um verdadeiro microssistema jurídico defensorial, que corroboraram para a ampliação da atuação da Defensoria Pública,  deixando esta de ser mero representante processual dos hipossuficientes, para ocupar o papel de órgão interveniente na condição de custos vulnerabilis (RESSUREIÇÃO, 2008, p.358), consolidando seu papel de órgão promotor dos direitos humanos e guardião dos vulneráveis.

No que tange a seara processual penal a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis, possibilita um reequilíbrio na relação processual funcionando como meio de paridade de armas entre a defesa e Estado-acusador, bem como funciona como multiplicador de precedentes pró defesa, conforme será demonstrado ao longo do presente texto. No entanto, antes de se adentrar na temática principal, faz-se necessário demonstrar em prol de quais sujeitos a Defensoria Pública atua, trazendo a baila a significação do termo custos vulnerabilis que qualifica a nova atuação do órgão defensorial como interveniente processual.

 

A Defensoria Pública como guardiã dos vulneráveis.

A Defensoria Pública é instituição de caráter permanente e essencial a função jurisdicional do Estado, erigida pelo artigo 134 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) como órgão responsável pela promoção dos direitos humanos, além da orientação jurídica, judicial e extrajudicial, de forma integral e gratuita aos necessitados.

Entretanto, ao se interpretar quem são os necessitados elencados no artigo 134 da CF/88, é necessário ter cautela, pois como bem assevera Maia (2019, p.1260), uma leitura apressada poderia levar o leitor a interpretar que esta atuação da defensoria em prol dos necessitados, somente se perfaz em razão daqueles com insuficiência de recurso financeiros, limitando o atuar defensorial ao caráter econômico. Todavia, deve-se atentar para o fato de que o constituinte não atribuiu significado aos termos “necessitados” ou “insuficiência de recursos”, tratando-se, portanto, de conceito jurídico indeterminado, que deve ser interpretado no caso concreto de modo a garantir o mais amplo acesso à justiça.

Ademais, como bem aponta Passadore (2016, p.160), seria paradoxal restringir o conceito de necessitado as pessoas sem recursos financeiros, uma vez que se um dos objetivos constitucionais é erradicar a pobreza (art. 1°, III, da CF/88), a Defensoria Pública então não poderia ser uma instituição de caráter permanente (artigo 134, caput, da CF/88), o que demonstra que as atribuições da defensoria vão além do mero assistencialismo econômico.

Diante do exposto, depreende-se que é dado ao termo “necessitado” previsto no artigo 134 da CF/88 uma ressignificação, de modo a abranger não apenas aos hipossuficientes econômicos, mas também os vulneráveis de forma ampla.

Nesse ponto, faz-se oportuno trazer à baila o conceito de vulnerável firmado na XIV Conferência Judicial Ibero-Americana- no texto intitulado; Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade (2008, p.5-6), o qual afirma que são consideradas em situação de vulnerabilidade as pessoas que encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, em virtude da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais.

 

O termo custos vulnerabilis e sua significação

Com a ampliação do campo de atuação da Defensoria Pública, nasce o termo custos vulnerabilis, mencionado pela primeira vez pelo Defensor Público Maurilio Casas Maia (2014, p.56), para designar a intervenção defensorial em prol dos vulneráveis.

Ao delinear a intervenção da Defensora Pública como custos vulnerabilis Maia (2016, p.1253-1285) parte do pressuposto de que “as instituições em geral - e em especial as instituições postulantes do Sistema Constitucional de Justiça -, possuem interesses jurídicos e público, constitucionalmente fixados, pelos quais devem velar”. Desse modo, as instituições públicas devem balizar suas atividades de acordo com sua missão institucional, a qual deriva do seu interesse constitucional. Nesse passo, é a lei complementar 80/94, em seu artigo 4º, XI que traz a missão institucional da Defensoria Pública como guardiã dos vulneráveis, missão esta que deriva da atribuição de tutela dos direitos humanos, fixada à defensoria pública pelo artigo 134 da CF/88.

Assim, Maia (2016, p.1253-1285) instituidor do tema, defende que o termo custos vulnerabilis designa a intervenção da Defensoria Pública, atuando esta não em nome da parte, mas em nome próprio, com lastro no seu interesse constitucional, visando assegurar sua missão institucional de guarda dos vulneráveis.

 

Fundamentação legal da atuação custos vulnerabilis no processo penal

Em que pese a atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis no processo penal, objeto do presente artigo, esta surge como meio de garantir aos mais necessitados o acesso à justiça através de uma assistência jurídica especializada, efetivando a aplicabilidade dos princípios da ampla defesa e do contraditório, sem o qual o processo penal tornar-se-ia inválido.

A referida intervenção além de deter autorização constitucional prevista no artigo 134 da CF/88, possui como marco normativo regente o disposto no artigo 4º, XVII da Lei Complementar nº 80/94 (Lei Orgânica Nacional Da Defensoria Pública- LONDEP), que atribuiu como missão institucional da defensoria a guarda dos direitos e garantias fundamentais daquelas pessoas indiciadas/acusadas/réu. Destaque-se ainda, como meios autorizadores da atuação custos vulnerabilis no processo penal, os artigos 61, VII; 41,VII e 81-A, todos da lei nº 7.210/85 -Lei De Execuções Penais (ROCHA, 2017).

 

Atuação custos vulnerabilis como meio de equilíbrio entre Estado-acusador e defesa

                 Além dos dispositivos legais vigentes, a intervenção da defensoria pública como custos vulnerabilis no processo penal, tem como fundamento a busca pelo equilíbrio entre o poder do Estado-acusador e a defesa do cidadão, de modo a garantir paridade de armas entre as partes, efetivando os princípios do contraditório e da ampla defesa.

                 Nesta senda, Ferrajoli (2002, p.467) afirma que o procedimento do contraditório somente estaria garantido e equilibrado quando houvesse paridade de armas entre as partes (acusação-defesa). Para tanto, seria necessário que ao lado do defensor de confiança (advogado privado) fosse instituído um defensor público, o qual funcionaria como Ministério Público de defesa, intervindo como figura antagônica e paralela ao Ministério Público de acusação. Agindo o defensor de modo a complementar a atividade do curador privado, uma vez que este não possui os mesmos poderes do órgão acusador de influir junto ao aparelhamento investigativo do Estado, eliminando-se o desequilíbrio institucional que de fato existe entre acusação e defesa.

Por conseguinte, a Defensoria Pública funcionaria como meio de equilibrar a relação processual penal, na medida em que interviesse no processo como custos vulnerabilis atuando em conjunto com o curador privado, de modo a fornecer os subsídios necessários para suprir a disparidade de armas existente entre o poder de acusação do Estado e a limitação da defesa particular, eis que órgão defensorial apresenta maior vantagem organizacional ao demandar (MORAIS DA ROSA; ROCHA, 2017).

Nesse ponto, atente-se que a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis no processo penal não se confunde com a atuação da defensoria enquanto curadora especial, nesta a atuação do órgão se dá como representante processual da parte e ocorre em razão do acusado não constituir defesa técnica, motivo pelo qual os autos do processo são encaminhados à Defensoria Pública, conforme determina artigo 396-A, parágrafo 2º do código de processo penal. Já como custos vulnerabilis a intervenção da Defensoria Pública deverá ocorrer em razão de sua missão institucional sempre que o órgão detectar efetiva ou provável violação a direito ou garantia fundamental do acusado, independentemente de sua condição financeira, ou da presença de advogado particular (CAVALCANTE, 2018).

Assim, percebe-se que a intervenção custos vulnerabilis fundamenta-se como meio de equilibrar a relação estabelecida entre acusação e defesa, garantindo ao vulnerável paridade de armas ante o poder acusador do Estado, possibilitando uma melhor efetivação do contraditório e da ampla defesa.

 

Intervenção Custos Vulnerabilis Como Multiplicador De Precedentes Pró-Defesa

Além de objetivar a paridade de armas frente ao poder acusatório exercido pelo Ministério Público, a atuação custos vulnerabilis no direito processual penal teria por escopo funcionar como meio multiplicador de precedentes favorável ao réu.

Nesse sentido, o desembargador Queiroz Chíxaro (2018, p.43-44), em voto de sua relatoria na revisão criminal nº 4001877-26.2017.8.040000 defendeu a atuação custos vulnerabilis, como modo de viabilizar a ampla participação democrática na formação de precedentes penais, afirmando que tal intervenção se justifica pelo fato de que é comum ocorrer na esfera penal uma dupla atuação do Ministério Público, ora atuando como parte autora da ação penal (dominus litis) , ora intervindo como custos legis (fiscal da lei), tendo o órgão ministerial reforçada sua partição desigual no processo, de modo a influir múltiplas vezes na formação de precedentes.

Dessa forma, ocorre uma dupla e desvantajosa participação do órgão ministerial, que pode ser facilmente visualizada no julgamento de recursos (especialmente apelações criminais) e de processos de origem do segundo grau, uma vez que nesses casos o relator abre vistas para que Ministério Público com atuação junto ao tribunal, emita um parecer acerca do tema, mesmo nos casos em que esse recurso já tenha sido interposto pelo próprio parquet. Não obstante, essa dupla atuação pode ainda ser visualizada nos casos em que o recurso foi manejado pela defesa e houve prévio contra-arrazoado pelo representante ministerial em primeiro grau (ROCHA, 2017).

Isto posto, percebe-se a importância da intervenção da Defensoria Pública enquanto custos vulnerabilis, como meio de ampliar a atuação do órgão defensorial, fazendo contraponto a vasta atuação Ministério Público, equilibrando a criação de precedentes de defesas em prol do acusado, eis que diferentemente do órgão ministerial, a defensoria não pode se manifestar de forma contraria a liberdade.

 

Reconhecimento Judicial da Intervenção Custos Vulnerabilis

Embora a intervenção custos vulnerabilis seja um tema incipiente, vem ganhando notória repercussão doutrinária e judicial a partir de teses e estudos desenvolvidos por diversos Defensores Públicos no Brasil. Recentemente, pode-se citar o reconhecimento judicial da referida intervenção pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e do Ceará, respectivamente nos autos dos processos nº 2086996-06.2019.8.26.0000 e nº 0625834-21.2017.8.06.0000 (ROVER, 2019).

Tal repercussão fundamenta-se não apenas pelo caráter constitucional (art. 134 CF/888) ou institucional (LC nº 80/94) do custos vulnerabilis, mas por toda uma série de dispositivos legais que autorizam e evidenciam o atuar da defensorial, formando o que (RESSUREIÇÃO, 2017) chamou de verdadeiro microssistema jurídico defensorial.

No que cinge a seara penal pode-se verificar a aceitação da atuação custos vunerabilis nos seguintes processos; apelação criminal nº 0010769-94.2014.8.04.0000 de relatoria do desembargador Jorge Manoel Lopes Lins; Revisão Criminal n.º 4002158-79.2017.8.04.0000 e 4002077-67.2016.8.04.0000, ambos de Relatoria do desembargador Ernesto Anselmo Queiroz Chíxaro.

 

Considerações finais

Ante o exposto verifica-se  a relevância da intervenção custos vulnerabilis no processo penal na medida em que esta tutela as classes mais vulneráveis, permitindo a promoção do reequilíbrio na relação processual entre estado-acusador e defesa, de modo a aprimorar e ampliar a formação de precedentes favoráveis esses indivíduos, assegurando a efetivação dos princípios da ampla defesa e o contraditório.

Assim, a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis, dar-se-á na medida em que o defensor público identificar alguma hipótese de vulnerabilidade, requerendo este sua intervenção no feito, naqueles casos em que outro tipo de atuação defensorial não se enquadraria, a fim de salvaguardar a missão institucional de guarda dos vulneráveis da Defensoria Pública, consolidando a promoção dos direitos humanos e os meios de acesso à justiça.

 

 

Notas e Referências

CAVALCANTE, Bruno Braga. A atuação defensorial como custos vulnerabilis no processo penal. Consultor Jurídico. 2018, p. 03. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-22/tribuna-defensoria-atuacao-defensorial-custos-vulnerabilis-processo-penal#_ftn4. Acesso em: 08/04/2019.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3ª ed. Trad. Ana Paula Zomer; Fauzi Hassan Choukr ;Juarez Tavares ; Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p.467.

MAIA, Maurílio Casa. A Intervenção De Terceiro da Defensoria Pública nas Ações Possessórias Multitudinárias do NCPC: Colisão de Interesses (art. 4º-A, V, LC n. 80/1994) e posições processuais dinâmicas. In: DIDIER, Fredie (Coord.). Novo CPC – Doutrina Selecionada. Salvador: Juspodivm, 2016, p.1253-1289.

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