A Atribuição Inautêntica de Sentidos e o Estado de Exceção Permanente na Ordem Jurídica – Por Rosivaldo Toscano Jr.

05/10/2017

Demos início a uma série (aqui) muito importante para compreendermos o papel que o Judiciário vem exercendo na vida social, buscando descobrir onde reside a legitimidade de suas decisões e quais os seus limites. Enfim, qual a relação que deve(ria) se estabelecer entre o juiz e a normatividade? Começamos falando sobre os significados de poder “potestas”, poder “potentia” e poder obediencial. Depois (aqui), discutimos as principais linhas que demarcam a judicialização da política do ativismo judicial.

Hoje, trataremos da atribuição inautêntica de sentidos, uma típica postura solipsista. Atribuir sentidos é o que fazemos quando nos deparamos com qualquer texto em sentido lato (p. e., um livro, um filme, uma obra de arte, um acontecimento). Ao contrário do que o senso comum imagina, nunca captamos os fenômenos como eles realmente são. Sempre estamos interpretando e essa interpretação – a atribuição de sentido – é intersubjetivamente mediada. Isto é, os sentidos não estão ao nosso dispor, são fruto de nossa existência em sociedade, dentro de uma tradição.

Por exemplo, não podemos chegar na garagem do vizinho, estacionar um Fusca atrás do carro dele dizendo que aquilo é uma Ferrari. Fatalmente ele sabe o que é (ou não) um Fusca porque os significantes possuem limites de significado. E esses limites estão, no caso, no conceito de Fusca intersubjetivamente compartilhado entre nós, do qual não podemos contorná-lo sem feri-lo, sem cair na inautenticidade, no dizer de Heidegger. Essa é a tradição.

E o que significa fusão de horizontes?[1] Que tanto o texto quanto o intérprete têm um horizonte, uma referência própria de significado. A interpretação é uma fusão de horizontes na medida em que faz a mediação desses dois planos de significação. Diz Gadamer, acertadamente, que a verdade não advém de um método racional separado da tradição como quer a modernidade, mas sim de um diálogo. Os atos de interpretação são dialógicos, dentro de uma tradição.

O intérprete firma um significado provisional que é confrontado com o horizonte do texto. Há um diálogo dentro de uma tradição. E não existe um ponto arquimediano fora dela, como queria Descartes.[2] É exatamente a tradição que serve de parâmetro para a atitude racional. Para Gadamer, a tradição não é somente o processo de passar conhecimento entre as gerações. A tradição é a própria linguagem.

Diz Gadamer: “Na realidade, não é a história que pertence a nós, mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nos compreenda­mos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos”.[3]

E como se manifesta a atribuição inautêntica de sentidos? É quando se gera uma norma a partir de um texto, de modo a que aquela não seja autêntica dentro de uma tradição. Isto é, a norma não é verdade enquanto fusão de horizontes, senão exercício de arbítrio por meio da retórica.

Um caso paradigmático de atribuição inautêntica de sentidos, de modo a violar a tradição, é o da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça – STJ (“A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”) ante a determinação do art. 65 do Código Penal (“São circunstâncias que SEMPRE atenuam a pena: […]”) (destacamos). A súmula derroga a lei por meio de uma artimanha retórica falaciosa, inautêntica.

Observe-se que a súmula fala em “mínimo legal”, de modo a deturpar o sentido dos limites que existem somente para a fixação da pena-base, como dizem as redações dos arts. 68 e 59, II, do CP:

“Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento”.

*                   *                   *                   *                   *

“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

(…)

II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;”

Ocorre que a imposição dessa limitação na fase do art. 59 do CP (da fixação da pena-abse), não existe na segunda e na terceira etapa da individualização da pena. Mas ao apelar para uma expressão de alto valor na ordem jurídica, evocando exatamente o que ela viola – a legalidade – a súmula, seletivamente, consegue-se obter o efeito almejado: o de convencer os atores jurídicos acerca de sua conformidade com a ordem jurídica. Isto é, uma clara violação do princípio da legalidade – uma vez que desconsidera a obrigatoriedade da atenuação da pena (“sempre”) e o fato de que a quantidade de pena aplicável somente se aplica à pena-base – é perpetrada em nome do que retoricamente se almejaria proteger.

A criação de um suposto “mínimo legal” que revogaria a obrigatoriedade de sempre se atenuar a pena, igualmente poderia ser aplicada às causas de aumento e de diminuição da pena. Isto é, poder-se-ia, sob o mesmo raciocínio, construir-se o seguinte enunciado: “A incidência da causa de diminuição da pena não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

Não se pode falar em “mínimo legal” quando não existe uma limitação decorrente de texto da lei e, o mais grave, quando se nega a aplicação do princípio da legalidade ao se impedir que a atenuante, como exigido no Código Penal, sempre atenue a pena.

Para além da impossibilidade de extensão da limitação apenas prevista para a fixação da pena base, trata-se de uma atribuição inautêntica de sentidos porque também não se pode interpretar “sempre” como “às vezes”, já que há constrangimentos semânticos invencíveis, dentro de uma autêntica atribuição intersubjetiva de sentido. Há, como diz Lenio Streck, “uma entificação minimamente compreensível no plano do imaginário dos juristas”.[4]

Há conceitos compartilhados pela comunidade que não autorizam (a autoridade da tradição – Gadamer) a que se entenda que, diante da expressão “São circunstâncias que SEMPRE atenuam a pena”, o juiz possa não aplicá-la sob algum pretexto não previsto em lei. Mesmo assim, quase duas décadas após a súmula ter entrado em vigor, não se tem, nem no STF nem no STJ, questionado a autenticidade do texto da súmula. Sentenças continuam sendo proferidas violando a regra do art. 65 do CP. A pretexto de protegê-la (e tão somente por isso) a legalidade foi “revogada” pela súmula do STJ.

Acresce-se a essa prática a contaminação do Judiciário pelo discurso eficienticista, que utiliza argumentos utilitaristas para sobrepujar a normatividade e, ao mesmo tempo, concentrar poder na cúpula. Caso recente foi o do Procedimento de Controle Administrativo de nº 0000071-07.2015.2.00.0000, movido pela Associação do Ministério Público de Pernambuco, considerando violação do princípio da legalidade a realização de audiências de instrução nos processos criminais sem a participação de um representante do Ministério Público.[5] A decisão do Conselho Nacional de Justiça foi no sentido de que pode o magistrado realizar as audiências criminais sem Ministério Público. De uma só tacada, violou-se a privatividade constitucional da ação penal pelo Ministério Público e o mais grave: o sistema acusatório. Não pode um magistrado fazer as vezes de acusador e julgador. Trata-se de uma questão básica, de primeiro ano de faculdade, mas que naufraga sob o argumento da eficiência quantitativa. Uma alta questão constitucional é distorcida em mera situação de gestão deficiente de um stakeholder, no caso, o Ministério Público.

Esse caso é sintomático de algo grave: estamos vivenciando um estado de exceção hermenêutico (Streck) em tal grau que o próprio prejudicado, o Ministério Público, ao invés de agir jurisdicionalmente, impugnando a decisão por meio de recurso ao tribunal competente, busca uma punição disciplinar do magistrado prolator da decisão, desconhecendo o exercício da função judicial e a independência funcional do magistrado enquanto membro de Poder em um Estado de Direito. Deu no que deu.

A decisão do órgão Censor, ao invés de desconhecer o reclamo administrativo, por não se tratar de suas atribuições constitucionais apreciar mérito judicial, baseia-se em argumentos de política para decidir e, de usurpa a reserva de jurisdição.

Nessa dimensão, a autonomia do direito é substituída pelo pragmatismo político-jurídico que coloca a ordem jurídica em um estado de exceção permanente, o que importa no declínio do império do direito – o que comumente ocorre em Estados estruturalmente débeis. Trata-se de um risco para a democracia o que estamos vivendo atualmente, porque a Constituição e a normas infraconstitucionais perdem sua eficácia diante da vontade de poder dos seus supostos intérpretes.[6] O sistema jurídico é violado. A esse fenômeno Marcelo Neves deu o nome de alopoiese.[7]

Com nossa realidade histórica marcada pelo autoritarismo, pela fragilidade da democracia, não é difícil concluir quem se beneficia dessa diáspora entre o texto e a norma na atribuição inautêntica de sentidos e no estado de exceção hermenêutico: os estamentos e o capitalismo financeiro que hoje é seu coautor e/ou legatário, haja vista sua proximidade com o poder e a capacidade de produzir discursos de verdade. Tais discursos ganham força em um Judiciário corporativo, um Judiciário da accountability e de atores jurídicos pop stars a mercê dos meios de comunicação social.

Não tem jeito: não há como se aceitar a alopoiese, a quebra da autonomia do direito, sem o ônus do enfraquecimento da democracia e a utilização do direito, como razão instrumental, pelos poderosos. Transforma-se no exercício da “vontade de poder” nietzscheana. E a história nos ensina que a corda sempre arrebenta do lado mais frágil. Normatividade é garantia de igualdade. É a virtude soberana.[8] E igualdade é a expressão basilar do Estado Democrático de Direito. Somente o direito com sua autonomia preservada é capaz de ser transformador, de efetivar os Direitos Fundamentais da Constituição, bem como os direitos reconhecidos nos tratados internacionais incorporados ao nosso ordenamento.

Ainda dentro da ideia de interpretação como vontade de poder em um sentido horizontal, é comum o uso de princípios ad-hoc e de conceitos assertóricos. Vale a pena esperar pelo próximo capítulo. Veremo-nos novamente na semana que vem!

 

Notas e Referências:

[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 456-457.

[2] LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 14.

[3] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 415-416.

[4] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 32.

[5] AUSÊNCIA de membro do MP não obriga adiamento de julgamento, decide CNJ. Portal do Conselho Nacional de Justiça, Aba Notícias. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83558-ausencia-de-membro-do-mp-nao-obriga-adiamento-de-julgamento-decide-cnj-2>. Acesso em 5 out. 2016.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Livraria Saraiva, 2011. p. 43.

[7] “[…] no Brasil, o problema não reside primacialmente na falta de suficiente adequação e abertura (cognitiva) do sistema jurídico ao seu ambiente social (heterorreferência). Contrariamente a essa tradição jurídico-sociológica, tenho destacado que se trata de insuficiente fechamento (normativo) por força das injunções de fatores sociais diversos. Além da sobreposição destrutiva do código hipertrófico ‘ter/não­ter’ e de particularismos relacionais difusos, a autonomia operacional do direito é atingida generalizadamente por intrusões do código político.” (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e o Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 245).

[8] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

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