A assistência social como direito fundamental: do plano normativo ao de eficácia na atual conjuntura política  

18/06/2019

 

Historicamente identificada com a filantropia e benemerência, a assistência social foi, por muito tempo, tomada como expressão de altruísmo e não como um direito. Diante da falta de reconhecimento pelo Estado da assistência social como assunto de sua competência, a assistência social nasce “relegada ao lugar do não direito, a partir de ações desorganizadas e segmentadas, calcadas nas ideias de filantropia e caridade”[i].

No plano de ações governamentais, a assistência social será pautada no Brasil somente em 1937, com a criação do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), ao lado da criação da Legião Brasileira de Assistência, a LBA, na década de 40 do século XX[ii].

 Só a partir de 1977, com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, é que assistência social se vinculou a um sistema de proteção social, o SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social. Contudo, permaneceram os estados e municípios sem um reconhecimento perante o SINPAS, cuja ação era centralizada no âmbito federal[iii].

É sob a égide da CRFB/88 que a assistência social assume papel como direito fundamental. No art. 6º, caput, do referido diploma, está a “assistência aos desamparados” como um direito social. Nesse viés, a Assistência Social foi reconhecida como política pública que deve atender a todos que dela necessitar, configurando-se como direito fundamental e dever do Estado (art. 203, caput).

Tal direito é ratificado pela Lei nº 8.742/93, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), mas só em 2004 é instituída a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que, em conjunto ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), visa criar medidas que assistam e defendam os cidadãos que se encontram em situação de vulnerabilidade social[iv].

O caráter do regime da assistência social é dado pelo art. 204, inc. I, da CRFB/88 e se particulariza pela exigência de ação integrada entre as três esferas federativas (federal, estadual e municipal) e entre Poder Público e a sociedade civil, mediante compromisso com o desenvolvimento humano e social do país, a fim de enfrentar a pobreza, as desigualdades sociais, econômicas e as disparidades regionais e locais existentes no país.

Todavia, entre o campo normativo do direito e o de eficácia, existem dificuldades a serem transpostas. Dessa forma, a assistência social enfrenta, como muitos outros direitos que exigem uma contraprestação estatal, problemas para sua plena e eficaz implantação.

Não se pode desconsiderar que a criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 2004, deflagrou um rearranjo institucional da assistência social, que passou de “ações desordenadas promovidas por primeiras-damas ou entidades filantrópicas para tornar-se uma das principais políticas setoriais do país”.[v]

Entretanto, a conjuntura política atual aprofunda esses desafios e lança incertezas no que se refere à continuidade das ações realizadas até então. A extinção do MDS, transformado em uma das pastas do Ministério da Cidadania, sugere transformações ainda incertas no que concerne às suas funções.

Dentro de um cenário de retrocesso, a Emenda Constitucional nº 95 de 2016, cria o “Novo Regime Fiscal”, que estabelece por 20 anos um teto para crescimento das despesas públicas vinculado à inflação. De acordo com estimativas, a regra implica na redução da despesa primária do governo federal de cerca de 20% do PIB em 2016, para algo próximo de 16% do PIB até 2026 e de 12% em 2036[vi].

Em razão de algumas despesas como os benefícios previdenciários crescerem acima da inflação, esse teto demandará o encolhimento de demais gastos, dentre os quais está o Programa Bolsa Família (PBF), “de 8% para 4% do PIB em 10 anos e para 3% em 20 anos, o que pode comprometer o funcionamento da máquina pública e o financiamento de atividades estatais básicas”[vii].

Nessa linha, a reforma da previdência em atual tramitação, anuncia mudanças na forma da prestação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é assegurado pela LOAS. O benefício que hoje é concedido àqueles com mais de 65 anos em situação de miserabilidade – desde que a renda familiar per capita seja menor que um quarto de salário mínimo – e às pessoas com deficiência (art. 20, lei 8.742/93), passará a ser "fásico": para quem tem a partir de 60 anos, o pagamento será de R$ 400,00; para quem tem mais de 70, de um salário mínimo.

Urge afirmar, contudo, que a redução nos gastos públicos não pode onerar direitos fundamentais da parcela mais carente da população, sob pena de um alargamento da vulnerabilidade social já existente. Ademais, em comparação internacional, os gastos sociais no Brasil são consideravelmente menores do que em outros países.

Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em relatório desse ano, constatou que, no Brasil, 17% do PIB é destinado para gastos sociais, enquanto que, na França, destina-se 30%, sendo que a média dos 36 países participantes da OCDE fica em torno de 20%[viii].

No campo de soluções para o presente imbróglio, sabe-se que a assistência social precisa de ampliação na rede de serviços – e não de redução. Esses serviços devem ser estruturados para assegurar atendimento de qualidade aos usuários. Também é necessário maior investimento público, potencializando o SUAS mediante uma gestão pública democrática para desenvolver a Política de Nacional de Assistência Social[ix].

No entanto, para que haja tal investimento, é preciso que haja interesse. O orçamento público, nesse contexto, é um verdadeiro “campo de luta política com as distintas forças sociais que buscam seus interesses”[x].

Percebe-se, portanto, que não é a falta de orçamento público que justifica o corte de investimentos na área da assistência social: é a falta de interesse em redirecionar recursos a ela. Essa falta de interesse é evidenciada quando se observa, por exemplo, que o Brasil é um dos poucos países que isenta de imposto de renda os dividendos distribuídos a acionistas.

Segundo especialistas, a tributação dos dividendos seria capaz de contribuir com uma maior justiça fiscal, gerando rendas extras para o governo[xi], sem mirar na parcela mais vulnerável da população.

 Afinal, os benefícios tributários aos rendimentos do capital, entre outras assimetrias, contribuem para que o Brasil possua uma das maiores concentração de renda entre os países do mundo[xii], o que fomenta a crescente desigualdade social do país.

Porém, vive-se em uma conjuntura política que tem na redução dos direitos sociais o único caminho para recuperar a economia. Mudanças no status quo que privilegia a menor parcela da população sequer são cogitadas. A consequência disso é a assistência social relegada, colocada novamente à margem, como um não direito.

 

Notas e Referências

[i] GUTIERRES, Kellen Alves. Trajetória da assistência social como direito e o futuro incerto do sistema único da assistência social. In: Revista Perseu: história, memória e política, n. 13, 2017. São Paulo: Fundação Perseu, 2017. p. 87.

[ii] BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica: NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2005. p. 9.

[iii] BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica: NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2005. p. 9.

[iv] SANTANA, Eline Peixoto de; et al. Histórico da Política de Assistência Social: uma construção lenta e desafiante, do âmbito das benesses ao campo dos direitos sociais. VI Jornada Internacional de Políticas Públicas, Universidade do Maranhão – UFMA. Maranhão: 2013.

[v] GUTIERRES, Kellen Alves. Trajetória da assistência social como direito e o futuro incerto do sistema único da assistência social. In: Revista Perseu: história, memória e política, n. 13, 2017. São Paulo: Fundação Perseu, 2017. p. 87.

[vi] Fórum 21; Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES); GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social. Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil. São Paulo: 2016. p. 9.

[vii] Fórum 21; Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES); GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social. Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil. São Paulo: 2016. p. 9.

[viii] OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Society at a Glance 2019OECD Social Indicators. Paris: OECD Publishing, 2019. p. 104.

[ix] SCHMIDT, Janaína Albuquerque de Camargo; SILVA, Mossicléia Mendes da. A assistência social da contemporaneidade: uma análise a partir do orçamento público. In: Revista Katálysis. Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 86-94, jan./jun. 2015. p. 92.

[x] SCHMIDT, Janaína Albuquerque de Camargo; SILVA, Mossicléia Mendes da. A assistência social da contemporaneidade: uma análise a partir do orçamento público. In: Revista Katálysis. Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 86-94, jan./jun. 2015. p. 90.

[xi] GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Texto para discussão 2190. Brasília: Ipea, 2016. p. 18.

[xii] GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Texto para discussão 2190. Brasília: Ipea, 2016. p. 33.

 

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