A Apreensão de Adolescente sob a Ótica da Cultura Punitivista

08/11/2015

Por Felipe Monteiro Minotto - 08/11/2015

A prática da apreensão de adolescentes atualmente tem gerado uma repercussão maior em face das recentes notícias sobre roubos e furtos cometidos por adolescentes no RJ [1]. Entretanto, a discussão acabou colidindo com a disposição normativa na medida em que foi gerada uma verdadeira legitimação do injusto em nome de um famigerado punitivismo que na realidade inclinava-se muito mais para uma discriminação social eminente do que uma efetivação do combate à insegurança pública.

A solução estatal para o problema foi a realização de BLITZ nos ônibus que iam em direção às praias da Zona Sul do Rio de Janeiro, inclusive com a apreensão de adolescentes sem a situação de flagrância, que é elemento condicionante para a apreensão, conforme preconiza o art. 106, caput do Estatuto da Criança e do Adolescente, senão vejamos:

Art. 106. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente[2].

A situação regular de apreensão de adolescentes somente poderá ocorrer em duas hipóteses na forma do art. 106, caput do ECA: (a) Flagrante de ato infracional; (b) Por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Fora disso, qualquer das hipóteses de restrição da liberdade de adolescentes não previstas na Lei devem ser objeto de total repúdio, além da necessária responsabilização penal e administrativa do agente público que efetiva esse tipo de arbitrariedade.

Vale lembrar que os procedimentos do ECA são, por vezes, completamente ausentes de garantias fundamentais, tal qual ocorre na chamada “fase administrativa”, em que a presença do advogado não é obrigatória, contrariando o disposto no art. 133 e inciso IV do art. 227,§ 3º, ambos da Carta Magna[3], mesmo se tratando de procedimentos que podem ter consequências como a aplicação de medidas socioeducativas que eventualmente podem ter duração de até 3 anos, o que por si só revela a necessidade de maior cautela em procedimentos desse nível, o que por óbvio não ocorre.

Por certo o tema gera polêmica, até mesmo porque o menor em estado de vulnerabilidade nunca foi interesse por parte do Estado, especialmente no que se refere à implementação de políticas públicas que efetivamente atendam às demandas socais, ocasionando assim uma ingerência estatal na operacionalização do problema com a consequente marginalização e estigma desses adolescentes. Em decorrência disso, os menores de idade à margem da sociedade possuem muito mais tendência a se envolverem com a criminalidade do que com um emprego lícito e formal, levando-se em conta como principal fator para isso a falta de fomento de programas sociais para a faixa e perfil dos jovens infratores.

A partir dos fatos decorrentes dos (inconstitucionais) procedimentos realizados pela PMERJ, como a inspeção dos ônibus que iam em sentido às praias da Zona Sul aos sábados e domingos com apreensão de adolescentes em situação que não a do art. 106, caput do ECA fizeram com que a Defensoria Pública do RJ impetrasse um habeas corpus preventivo[4] para que esses jovens não fossem mais apreendidos sem flagrante ou ordem judicial de autoridade competente, celebrando-se portanto o constante no Estatuto da Criança e do Adolescente, além do Constitucional direito de ir e vir, de modo a impedir a ocorrência de mais constrangimento ilegal por parte da Polícia Militar no âmbito das apreensões  ilegais

No entanto, surpreendente declaração do Governador do RJ Luiz Fernando ‘Pezão’[5] já legitimava a ação arbitrária, sendo a conduta enquadrada como “legal” e defendendo a atuação policial. Numa perspectiva dialética, percebe-se a convalescência do poder executivo com as práticas executadas em prol da mera criminalização de sujeitos e não de condutas, o que por si só já exprime déficit civilizatório da parte de quem aufere tais atos, na medida em que se legitima a intervenção estatal (Polícia) em detrimento dos sujeitos pelo o que eles são e não pelo o que fazem, numa total afronta às liberdades individuais, dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Presunção de Inocência.

É inaceitável que o Estado aceite, colabore ou coadune com práticas tão medievais que remontam aos tempos de obscuridade política e civilizatória, como os tempos ditatoriais, sob pena de efetivo retrocesso em termos de racionalidade e democracia duramente conquistados pós-promulgação da Carta de 88. Sob esse prisma, espera-se um Estado que possua conduta pautada no Sistema de Garantias e liberdades individuais, sem qualquer tipo de abusos, desvios, excessos ou arbitrariedades cometidos pelo mesmo na operacionalização e gestão da persecutio criminis.

O poder de polícia exercido pelo Estado jamais poderá ir de encontro ou afrontar às prerrogativas constitucionais que conferem ao cidadão o direito de ir e vir, sem obstacularizações de qualquer ordem, como é o caso em concreto.  Ocorre que, enquanto o Estado continuar a dar as costas para esses jovens, deixando de agir no núcleo central que é o meio em que esses adolescentes se encontram inseridos, além da evidente carência de oportunidades, a tendência é de que fatos desse nível se repitam mais e mais vezes, sendo  a ingerência estatal o principal propagador do caos e da miséria que serve de propulsão para toda essa inquisitorialidade irracional.


Notas e Referências:

[1] G1 – Disponível em<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/zona-sul-do-rio-tem-tumulto-em-onibus-e-relato-de-assaltos-em-praia.html> Acesso em 26/09/15

[2] BRASIL. Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente

[3] _____. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil

[4] G1 - Disponível em < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/pm-e-proibida-de-apreender-jovens-caminho-da-praia-do-rio-sem-flagrante.html>Acesso em 28/09/15

[5] __. – Disponível em <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/pezao-defende-pm-apos-apreensao-de--caminho-de-praia-no-rj.html>Acesso em 28/09/15


Felipe Monteiro Minotto

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Felipe Monteiro Minotto é Advogado Proprietário na empresa Minotto Advocacia Criminal. Pós-Graduando em Ciências Penais/PUCRS. Membro da Comissão dos advogados criminalistas da OAB subseção Gravataí/RS. Membro da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul/ACRIERGS. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Articulista semanal no veículo Estado de Direito.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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