A aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa em sede de Inquérito Policial

19/08/2017

Por João Vítor de Araújo Santos - 19/08/2017

1- INTRODUÇÃO

O presente artigo discorrerá sobre o inarredável direito de defesa e contraditório em sede de Inquérito Policial, sendo abordado suas nuances no que concerne à necessidade e aplicabilidade do mesmo durante a persecução criminal, sobretudo, nos elementos colhidos em fase preliminar como subsídios de prova, vez que, no Processo Penal, o caderno policialesco, acaba por ditar todo o norte da construção do processo, não sendo forçosa a afirmação de que, o “resultado da etapa inicial, acaba por determinar o deslinde de toda a persecução penal”. (CASTRO, 2016, p.1).

A relevância do aqui exposto, se justifica na medida em que há muito se discute na doutrina Processual Penal e Jurisprudência se, em sede de Inquérito Policial, existe previsibilidade legal, bem como necessidade de contraditar os elementos colhidos em investigação preliminar, oportunizando, ao investigado, o direito de exercer, positivamente, sua (auto)defesa, postular diligências, juntar documentos, etc..

Entrementes, apesar de ser de sabença comezinha que os princípios do Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa se fazem presente nos Processos Judiciais e Administrativos, sua vigência, segunda jurisprudência massiva em nossas Cortes Superiores, em sede de Inquérito Policial, é negada, afrontando todo o sistema de garantias insculpidos na Constituição da República de 1988, o que além de irrefragável ilegalidade, é constitucionalmente intolerável no sistema processual vigente.

Ao descaso da Constituição, tem se tornado comum à negativa a aplicação e vigência dos Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa em sede de Inquérito Policial, galgado na infelicidade argumentativa de que o mesmo seria tão somente um “mero procedimento administrativo” para se fomentar a ocorrência (ou não) de justa causa e da opinnio delicti, afirmando ser ou não possível, o exercício da persecução penal – o que não deve prosperar, conforme se discorrerá à frente.

Por oportuno, imperioso ressaltar que, escolheu-se pesquisar o tema, através do método analítico-indutivo, tendo como embasamento a pesquisa bibliográfica, adotando a hipótese de que a resolução da problemática suscitada, consiste em afirmar que o Inquérito Policial não é um procedimento “meramente informativo” – por vezes, visto por parcela da doutrina com menosprezo e sem relevância – e sim, um procedimento de suma importância para a construção e qualificação da prova que emerge no mesmo, sendo os atos de investigação, um mecanismo de suma importância para se salvaguardar as irias do Devido Processo Legal, ao passo que se demonstrará que sim, é imperiosa a existência e valoração da Ampla Defesa e do Contraditório nos atos produzidos no Inquérito Policial.

2 - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS À ABORDAGEM: CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA 

Neste trabalho, adota-se como premissa a noção de que o processo penal constitucional, dado de modo efetivo e em consonância com o texto constitucional, busca a positivação de um “garantismo”, igualdade e a tutela de direitos fundamentais. (FERRAJOLI, 2011, p. 494).

Neste estudo, se analisará os princípios fundamentais a esta abordagem processual, observando, especificamente, os princípios do contraditório e da ampla defesa, reafirmando sempre, os direitos basilares insculpidos na Constituição da República de 1988 e com nítidos reflexos no Processo Penal, garantindo a efetividade e a vigência do Estado Democrático de Direito.

Daí, emerge a necessidade de uma análise conjunta dos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, sempre ressaltando que, não é esta a finalidade unigênita do presente trabalho, apesar de harmônica à ideia que se correlaciona ao mesmo, conforme se discorrerá mais à frente.

Conforme ressaltado alhures, o princípio do Contraditório, em conglutinação com o da Ampla Defesa, possui previsão legal ao teor do art. 5º, LV da Constituição da República, dispondo que: “Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (BRASIL, 2015).

Num primeiro momento, partiremos da análise do princípio do Contraditório, no qual, em uma visão genérica, significaria a possibilidade dos sujeitos processuais influírem na decisão/convencimento do magistrado/delegado de polícia, sendo oportunizada às partes do processo a participação e manifestação sobre todos os trâmites da construção processual e probatória, o que a melhor doutrina denominou de binômio ciência e participação. (TAVORA; ALENCAR, 2013, p. 58).

Aury Lopes Jr. (2015, p. 94), dispõe que, as partes, ao “contradizerem” conduzem o processo a uma construção dialética, por meio de uma construção probatória e argumentativa mútua.

O supracitado autor, ainda dispõe que:

O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre as partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionais. É imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo. (LOPES, 2015, p. 94)

Imperioso ressaltar que, não só na Carta Magna, mas de mesmo modo na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto São José da Costa Rica e recepcionada pelo Decreto Lei nº 27 de 26 de Maio de 1992 (BRASIL, 2015), garante-se o Contraditório em seu artigo 8º, valendo, diante da preciosidade da norma insculpida, sua integral transcrição:

Art. 8º Garantias Judiciais

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (BRASIL, 1992).

O contraditório cuida do direito de defesa do acusado, uma vez que não há que se falar em um processo penal constitucional sem garantir ao acusado o direito de contradizer a acusação/investigação que lhe é endereçada. Ressalta-se que a bilateralidade da oitiva dos sujeitos processuais, é quesito também indispensável para a valoração de tal princípio. “Por isso que se diz que há no Contraditório informação e reação, pois é a ‘ciência bilateral dos atos e termos do processo e possibilidade de contrariá-los”. (ALMEIDA, 1973, p. 82).

Ainda neste sentido, insta consignar que a igualdade de partes no processo penal, analisando-se sobretudo a aplicabilidade plena do contraditório, deve se dar mediante a paridade de armas. (FERRAJOLI, 2011, p. 565).

Na visão do renomado autor Luigi Ferrajoli “[...] a defesa deve ser dotada com as mesmas capacidades e mesmos poderes da acusação [...]” (FERRAJOLI, 2011, p.565). O autor completa ainda dizendo que:

A defesa que por tendência não tem espaço no processo inquisitório, forma, portando, o mais importante instrumento de solicitação de controle do método de prova acusatório, consiste precisamente no contraditório entre hipótese de acusação e hipótese de defesa e entre as respectivas provas e contraprovas. A epistemologia da falsificação que está na base desse método não permite de fato juízos potestativos, mas exige, em tutela da presunção de inocência, um processo de investigação baseado no conflito, ainda que regulado e ritualizado entre partes contrapostas. (FERRAJOLI, 2011, p. 564).

Noutra vertente, no que tange a simples conceituação de que no Processo Penal o Contraditório, tratar-se-ia de uma oportunização das partes de se manifestarem sobre os trâmites do processo, bem como a participação e manifestação para uma efetiva construção probatória, outros autores como Lima (2014) e Badaró (2008) prelecionam um avanço no debatido princípio, dispondo, respectivamente, que:

[...] O contraditório, assim deixou de ser visto como uma mera possibilidade de participação de desiguais para se transformar em uma realidade. Enfim, há de se assegurar uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e plenitude do contraditório. É o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado. (LIMA, 2014, p. 55) 

[...] quando ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador. (BADARÓ, 2008, p. 36)

Feita esta análise, é perfeitamente possível afirmar que, a concepção do princípio do contraditório, experimentou consideráveis mudanças em sua acepção pela melhor doutrina, não limitando-se à mera informação e à possibilidade de reação para incorporar, ainda, à paridade de tratamento e participação, uma vez que de nada adiantaria a formalidade igualitária de se pronunciar sobres os fatos se os sujeitos processuais não detivessem as mermas armas que possibilitam condições reais e efetivas para a porfia argumentativa e probatória. (LIMA, 2014, p. 55).

Lopes (2015) citando o renomado processualista italiano Elio Fazzalari vai nos dizer que “[...] o processo é procedimento em contraditório [...]”, ressaltando, ainda, a importância que este princípio teve na democratização do processo penal, sobretudo, na efetivação da participação dos sujeitos do processo, garantindo, principalmente, a construção da sentença penal. (LOPES, 2015, p. 95).

Em linhas gerais, a decisão judicial galgada nos ditames do Contraditório, resulta em uma participação intensa dos interessados no processo, possibilitando, por óbvio, uma maior chance de verossimilhança entre os fatos trazidos à apreciação do magistrado e o direito aplicado ao caso, na medida em que se considera todo o arcabouço argumentativo e probatório trazido pelas partes ao processo, atendendo, ao fim, uma ou outra pretensão. (OLIVEIRA, 2014, p. 44).

A partir do postulado, passemos agora aos apontamentos do princípio da Ampla Defesa, abordando seus conceitos e aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio, ressaltando que tal princípio possuí previsão legal aglutinada com o princípio do Contraditório, qual seja, no artigo 5º, inciso LV da CRFB/88 (BRASIL, 2015).

Segundo Lima (2014, p.57), a Ampla defesa pode ser vista como um direito de defesa, bem como a busca de um processo justo, visando a garantia dos envolvidos em um processo penal.

Renato Brasileiro de Lima (2014), ainda milita no sentido de que a Ampla Defesa está estritamente ligada ao princípio do Contraditório, uma vez que a defesa é garantidora do contraditório, manifestando-se diretamente por meio deste. “[...] Afinal, o exercício da Ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos que compõe o contraditório – o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por intermédio de seu segundo elemento: a reação”. (LIMA, 2014, p.57).

Imperioso ressaltar que os princípios da Ampla Defesa e o do Contraditório, não se confundem, apesar de harmônicos. A ideia de que a Ampla defesa seja apenas o outro lado do Contraditório é completamente descabida, até mesmo pela base. (OLIVEIRA, 2014).

Eugênio Pacelli (2014) preleciona que:

[...] o contraditório não pode ir além da garantia da garantia de participação, isto é, a garantia de a parte poder impugnar – no processo penal, sobretudo pela defesa – toda e qualquer alegação contrária a seu interesse, sem, todavia, maiores indagações acerca da concreta efetividade com que se exerce aludida impugnação [...] e, exatamente por isso, não temos dúvidas em ver incluído, no princípio da ampla defesa, o direito à participação da defesa técnica – do advogado – de corréu durante o interrogatório de todos os acusados. Isso porque, em tese, é perfeitamente possível a colição de interesses entre os réus, o que, por si só, justificaria a participação do defensor daquele corréu quem recaiam acusações por parte de outro, por ocasião do interrogatório. A ampla defesa e o contraditório exigem, portanto, a participação dos defensores de corréus no interrogatório de todos os acusados. (OLIVEIRA, 2014, p. 44/45).

Isto posto, apesar da Ampla Defesa influir diretamente no Contraditório, estes não se confundem. Em se tratando do Devido Processo Legal, exige-se para haver a construção do processo, a bilateralidade de audiência, bem como a existência de sujeitos em posições antagônicas, uma em posição de defesa (ampla defesa) e a outra acusando, podendo ambas as partes se contradizerem simultaneamente (contraditório), sendo ligadas pelo processo, podendo afirmar ainda, que uma claramente, se deriva da outra. (LIMA, 2014, p. 57).

A melhor doutrina, ainda traz subdivisões ao nominado princípio, ressaltando sua subdivisão em defesa técnica e autodefesa. Tratando a primeira como defesa patrocinada por profissional habilitado, tais como advogados e defensores públicos, por exemplo – sendo esta indispensável –, e a segunda como uma faculdade do réu em ir a juízo desacompanhado de tais profissionais, podendo, inclusive, permanecer inerte, gozando do seu direito constitucional ao silêncio. (TAVORA; ALENCAR, 2013, p. 59).

A justificativa da defesa técnica, se faz indispensável ao passo que, o cidadão médio, inserido na condição de sujeito de um processo, não conseguiria ter, eventualmente, sua pretensão satisfeita sem os conhecimentos necessários e para contradizer a acusação, ou seja, sem o patrocínio de causa por defensor devidamente qualificado, não há que se falar em igualdade de condições técnicas com a acusação, ficando escancarado o prejuízo ao sujeito desacompanhado de defensor e/ou optante pelo instituto da autodefesa. (LOPES, 2015, p. 96).

O citado autor completa dizendo que, está clara hipossuficiência – quando o acusado pretere a pessoa do defensor –, leva o acusado de um processo penal a uma clara situação de inferioridade frente aos demais representantes dos órgãos do Estado, tais como promotor, delegado, juiz, etc., fazendo com que a investigação, a produção de provas, a instrução, reste por prejudicada pela desigualdade de armas, bem como o fato de que o acusado – leigo que é – tenha uma dificuldade de entender todo o trâmite processual (LOPES, 2015, p. 96).

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao discorrer sobre o direito constitucional à defesa técnica, atribuiu o seguinte enunciado a súmula nº 523, dizendo que no “processo penal a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. (BRASIL, 2015). Afirma, ainda, o enunciado da súmula nº 708: “é nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”. (BRASIL, 2015).

Apesar de antiquado e nitidamente inquisitório, – inclusive pelo período de sua promulgação (1941) – o ainda vigente Código de Processo Penal, acertou na redação do artigo 261, ao dispor que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor” (BRASIL, 1941).

Em linhas gerais, pode-se assim dizer que o instituto da Ampla Defesa, é indispensável ao processo penal constitucional, ao passo que, conforme dispõe o supramencionado artigo, ninguém poderá ser processado sem defensor. A defesa técnica, proporciona a paridade de armas entre os sujeitos do processo, residindo no fato de trazer argumentos jurídicos que permitam ao acusado se defender das imputações endereçadas e formuladas pela acusação (TAVORA; ALENCAR, 2013, p. 59).

Feita a análise dos princípios constitucionais do Contraditório e Ampla Defesa, princípios estes indispensáveis para os lineamentos do presente trabalho, passa-se, agora, à análise de suas existências e imprescindibilidade no que concerne o Inquérito Policial.

2.1 Ampla Defesa e Contraditório no Inquérito Policial: para além da ambição inquisitorial 

Conforme ressaltado alhures, é comum, tanto na doutrina, como na jurisprudência nos depararmos com a afirmação genérica e sem fundamento de que, em sede de inquérito policial, não existe direito de defesa e o contraditório.

Lopes (2015, p. 170), vai nos dizer que tão afirmação é errada e peca por reducionismo, ao passo que:

“Basta citar a possibilidade de o indiciado exercer no interrogatório policial sua autodefesa positiva (dando sua versão aos fatos); ou negativa (usando seu direito de silêncio). Também poderá fazer-se acompanhar de advogado (defesa técnica) que poderá agora intervir no final do interrogatório. Poderá, ainda, postular diligências e juntar documentos (art. 14 do CPP). Por fim, poderá exercer a defesa exógena, através de habeas corpus e do mandado de segurança”. (LOPES, 2015, p. 170).

Neste sentido, Lopes (2015), continua afirmando que o trunfo resolutivo da problemática, é permeado pelo art. 5º, LV da CRFB/88, onde não se deve admitir uma leitura restritiva do dispositivo. A postura do legislador, ao atribuir a redação ao aludido artigo, à época, foi estritamente protetora, não podendo servir a mesma de obstáculo para sua aplicação em sede de inquérito policial. “Tampouco pode ser alegado que o fato de mencionar acusados, e não indiciados, seja um impedimento para sua aplicação na investigação preliminar”. (LOPES, 2015, p. 170).

Acompanhando a linha argumentativa do supramencionado processualista, Castro (2016), citando Tourinho Filho (2010, p.76), dispõe não ser invulgar a afirmação de que no Inquérito Policial não se aplicam o Contraditório e a Ampla Defesa, vez ser tal premissa uma interpretação literal do art. 5º, LV da CRFB/88, que garante a aplicação dos aludidos princípios constitucionais aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral. Concluindo, pela interpretação restritiva do tipo que “[...] não estão inclusos os investigados em inquérito policial, por não serem litigantes ou acusado e por não constituir o procedimento policial um processo”. (CASTRO, 2016, p. 1).

Todavia, as terminologias literais do art. 5º, LV da CRFB/88, são meras confusões terminológicas, concordando, tanto Lopes (2015), como Castro (2016), que estas não tem o condão de aniquilar a norma protetora e sua consequente aplicação do contraditório e ampla defesa em sede de inquérito policial.

Ademais, buscando por termo à problemática das nomenclaturas, Castro (2016, p. 02) é categórico ao afirmar que:

Ademais, nada impede o etiquetamento do inquérito policial como processo administrativo sui generis. Apesar da resistência em utilizar o termo processo na seara não judicial, a verdade é que, nada obstante não haver na fase policial um litígio com acusação formal, existe sim controvérsia a ser dirimida (materialidade delitiva e autoria). Apesar de não existirem partes, vislumbram-se imputados em sentido amplo; e os atos sucessivos, tanto os intermediários como o final, afetam o exercício de direitos fundamentais, existindo inegavelmente uma atuação de caráter coercitivo que representa certa agressão ao estado de inocência e de liberdade. Não há como negar que, com a decretação de prisão em flagrante, indiciamento, apreensão de bens e requisição de dados no bojo do inquérito policial, ocorre interferência na esfera de garantias do cidadão. Ainda que não se possam catalogar tais restrições de direitos como sanções, a realidade é que do inquérito policial podem advir severas consequências para o imputado, seja por decisão do delegado de polícia ou do juiz. Mesmo que se insista em rotular o inquérito policial como procedimento, o fato é que esse método de exercício de poder deve ser modulado para garantir o respeito a direitos, numa verdadeira processualização do procedimento. (grifo nosso).

No mesmo sentido, Lopes (2015, p. 172), afirma que o texto constitucional é extremamente abrangente – por óbvio, é temerária a interpretação de direitos e garantias em caráter restritivo aos acusados em processo penal –, a fim de proteger os litigantes em processo judicial/administrativo. Assim, para evitar dúvidas, o legislador, ainda incluiu a expressão: “aos acusados em geral”, assegurando-lhes o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos inerentes, mesmo que em sede de investigação preliminar.

Ultrapassada a abordagem das nomenclaturas – conforme se viu, a interpretação ao dispositivo constitucional deverá ser feita em caráter abrangente e não restritivo – passemos à análise do conteúdo dos princípios em sede de investigação preliminar que, repisa-se sempre: são aplicáveis na fase pré-processual.

Para Castro (2016, p. 2), os princípios dispostos nestas lousas, consistem em:

“[...] Contraditório consiste no acesso do interessado à informação (conhecimento) do que foi praticado no procedimento, podendo então exercer a reação (resistência). É dizer, a partir da ciência do ato persecutório o sujeito pode se contrapor aos atos desfavoráveis, sendo possível influir no convencimento da autoridade. Já a ampla defesa abrange a possibilidade de manifestação, seja pessoalmente (autodefesa) — em seu favor (defesa positiva) ou se abstendo de produzir prova contra si (defesa negativa) — ou por meio de defensor (defesa técnica). Nota-se que a ampla defesa está umbilicalmente ligada ao contraditório. A primeira faceta do contraditório (direito à informação) permite que o sujeito saiba dos atos praticados, enquanto seu segundo elemento (possibilidade de reação) faculta ao indivíduo sua efetiva participação. Logo, a defesa garante o contraditório, e também por este se manifesta e é garantida”. (grifo nosso).

Pelo já exposto, na parte principiológica da abordagem, vemos que – sobretudo em caráter normativo – o princípio do contraditório e ampla defesa caminham juntos, bem como em, alguns atos do inquérito, poderíamos dizer que a inquisitoriedade e sigilo das informações também, sendo, ainda, tais princípios compatíveis com as citadas características do inquérito policial.

Assim, estamos diante da dicotomia entre o direito de arguição de defesa e contraditório X sigilosidade que alguns atos do inquérito exigem, o que, se não observado, estar-se-ia levando a uma indevida perturbação da investigação – o que também não se almeja. (CASTRO, 2016, p. 3).

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, editou a Súmula Vinculante 14, onde, o defensor do investigado poderá ter acesso aos elementos de prova já documentados nos autos do inquérito – como é de sabença elementar, terá acesso o advogado as diligências findadas, sendo defeso o acesso aos trâmites policialescos ainda em andamento, conforme art. 7º, § 11º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). A única hipótese – positivada – que poderá o defensor ter acesso, que ainda esteja em curso, será o interrogatório do investigado art. 7º, XXI do mesmo Estatuto. (CASTRO, 2016, p. 3).

Em situações como à acima mencionada, podemos dizer há a existência do contraditório, mesmo que de forma mitigada – conforme se esclareceu, somente com as diligências findadas, ressalvada a hipótese de interrogatório do investigado que poderá ser acompanhado por defensor –, o que se deve ao sigilo interno das investigações, sob pena de se turbar a produção dos elementos probatórios e informativos (CASTRO, 2016, p. 3).

Noutro giro, apensar do já exposto, sobretudo por fidelidade acadêmica, é de conhecimento geral, conforme ressaltado alhures, que as Cortes Superiores deste país são categóricas em afirmarem a não incidência do contraditório e da ampla defesa em sede de inquérito policial, tendo ambas afirmado ser o inquérito peça meramente informativa, dispondo neste sentido o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), respectivamente:

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal. Nessa linha: STF, 2ª Turma, HC 99.936/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 232 10/12/2009. Em sentido semelhante: STF, 2ª Turma, HC 83.233/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 19.03.2004. 

É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o inquérito policial é procedimento inquisitivo e não sujeito ao contraditório, razão pela qual a realização de interrogatório sem a presença de advogado não é causa de nulidade. (HC n. 139.412/SC, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 22/3/2010).

A doutrina, no mesmo norte da jurisprudência, crava a inexistência e aplicabilidade do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, mas, ao mesmo tempo, não deixa de reconhecer os direitos salvaguardados do investigado, como é o caso do processualista penal, Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 74/75), acompanha o entendimento das Cortes Superiores deste país:

Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a observância do contraditório só é obrigatória, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória. Isso porque o dispositivo do art. 5º, LV, da Carta Magna, faz menção à observância do contraditório em processo judicial ou administrativo. Logo, considerando-se que o inquérito policial é tido como um procedimento administrativo destinado à colheita de elementos de informação quanto à existência do crime e quanto à autoria ou participação, não há falar em observância do contraditório na fase preliminar de investigações. (grifo nosso).

Noutro giro, há processualistas penais que discorrem sobre o tema e que não encontram maiores percalços para afirmarem, ao menos, a participação da defesa no inquérito, bem como a existência de contraditório – mesmo que ainda mitigado.

Ao óbvio, não se quer dizer que a polícia judiciária é obrigada a notificar o investigado para cada ato, abrindo prazo para que o mesmo se manifeste (autodefesa) ou por meio de defensor constituído (defesa técnica), assim como os processos judiciais. (CASTRO, 2016, p. 4).

Entrementes, não há nenhum óbice a adoção de uma série de garantias que salvaguardam o direito de voz e defesa do acusado, como por exemplo, oportunizar-lhe à manifestação no inquérito, mudando, eventualmente, o entendimento acerca do fato pelo delegado de polícia, bem como indagações formuladas por seu procurador no momento derradeiro de sua oitiva (CASTRO, 2016, p. 4).

A propósito, Castro (2016, p.4), assim dispõe:

É consentâneo com uma persecução penal democrática que, desde a fase inicial, o sujeito passivo da investigação preliminar tenha a possibilidade de expor suas razões e influir sobre o convencimento do delegado de polícia, tendo em vista que bens jurídicos da envergadura da liberdade estão em jogo.

Ainda neste sentido, Tucci (2004, p. 257), assim dispõe:

A contrariedade da investigação consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que por ser um elemento decisivo no processo penal não pode ser transformado em nenhuma hipótese, em mero requisito formal

Eduardo Rodrigues Gonçalves, apud Castro, ainda é categórico ao afirmar que antes do início da persecução penal, é de suma importância que o acusado não só tome conhecimento da investigação em seu prejuízo, mas, de mesmo modo, possa o mesmo apresentar, ao acaso, os requisitos necessários que fundamental sua inocência do fato penal. Em caso isolados e excepcionalíssimos, é que se deve prosseguir com a imputação sem oportunizar ao acusado – conforme ressaltado noutra parte, bem como na hipótese de investigado foragido – a oportunização do contraditório e da ampla defesa.

Assim, inquestionável a necessidade da ocorrência da ampla defesa e do contraditório em sede de inquérito policial, não devendo tais princípios se assentarem em segundo plano durante a persecução investigatória, sob pena de macular o procedimento, bem como as mais célebres garantias que concatenam o acusado em processo penal.

3 - CONCLUSÃO

Pelo, exposto, é imperiosa a afirmação de que, a efetivação dos Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa, em sede de Inquérito Policial, é medida de rigor, sobretudo, porque, lamentavelmente, durante a persecução processual penal, ainda conservamos características inquisitoriais, sobretudo no procedimento investigatório.

Apesar da discordância das Cortes Superiores do país (STF e STJ) no reconhecimento e aplicação dos aludidos princípios, bem como de parte da doutrina em sede de Inquérito Policial, é inegável que, na realidade prática, a não observância de tais princípios, acarretam prejuízo processual a figura do investigado, vez que, no meio policial, ainda existem, insofismavelmente, tendências inquisitórias, oriundas, principalmente, do estabelecimento das instituições das policiais no Brasil.

Ainda neste sentido, a apuração do fato penal em sede de inquérito, deverá sempre ser galgada nas irias do melhor direito, sendo observado sempre a maximização das garantias frente às arbitrariedades dos procedimentos, buscando sempre a realização de um Processo Penal Democrático, que visa proteger a parte hipossuficiente nesta relação processual, qual seja, o investigado.

Assim, é latente a afirmação de que, logrando êxito a Polícia Judiciária em fornecer ao Órgão Judiciário um Inquérito Policial que apresente características de lisura e observância aos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa – mesmo que relativizados em alguns casos, conforme analisado nestas lousas –, estar-se-ia beneficiando não só os sujeitos processuais que concatenam o caso penal, mas, ao mesmo tom, a sociedade. Afinal, “mais vale arriscar-se a salvar um culpado do que condenar um inocente”. (Voltaire).

Por derradeiro, é inegável que, se os meios empregados durante a investigação, não observam todas as garantias constitucionais aplicáveis à espécie, o resultado da investigação conterá a mácula das arbitrariedades, tornando passível de questionamento vindouro, por parte da defesa, eventual responsabilização penal que o investigado possa experimentar. A punição a qualquer custo não é o caminho, definitivamente. Para a aplicação do Devido Processo, devemos, necessariamente, observar e aplicar os princípios que lhes são inerentes, a fim de trazer as instituições policiais, não mais a característica de inquisitória, mas de uma instituição que venera os procedimentos e garantias, no caso em exame, do Contraditório e da Ampla Defesa.


Notas e Referências:

ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008.

BRASIL, Consituição da República Federativa do Brasil – promungada em 5 de Outubro de 1988. 20º ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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BRASIL, Pacto de São José da Costa Rica – decreto de lei nº 678, de 9-11-1992, 20º ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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João Vítor de Araújo Santos. João Vítor de Araújo Santos é Advogado Criminalista; Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Pós-Graduando em Ciências Criminais com Contributos da Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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