Coordenador: Ricardo Calcini
1. O ART. 190 DO CPC/15 SE APLICA AO PROCESSO DO TRABALHO?
1.1 ENTENDIMENTO DO TST – ART. 2˚, II, DA IN 39
A Instrução Normativa (IN) n˚ 39, editada pelo Tribunal Superior do Trabalho em 15 de março de 2016, considerou o art. 190 do CPC, que consagra a cláusula geral de atipicidade dos negócios jurídicos processuais, inaplicável ao Processo do Trabalho (art. 2˚, II da IN).
Eis o teor do referido preceito legal (art. 190 do CPC/15):
Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
A Instrução Normativa não encerra, contudo, a discussão sobre a compatibilidade do instituto com o Processo do Trabalho, já que o entendimento do TST ali exarado não se afigura imutável e definitivo, além de não possuir caráter vinculante[1]. Serve apenas de diretriz para orientar o julgamento dos juízes trabalhistas e direcionar a conduta dos jurisdicionados.
Acredita-se que a análise do TST à época em que foi editada a IN n˚ 39 foi apressada e perfunctória. Provavelmente se pensou em proteger o hipossuficiente (reclamante-trabalhador), que estaria em situação de vulnerabilidade perante o seu empregador, e não se sentiu confortável em excluir o juiz do negócio jurídico processual atípico, que prescinde de homologação.
Será que esses supostos argumentos são suficientes para vedar a negociação processual no âmbito trabalhista? A hipossuficiência do reclamante e a não participação do juiz (na maioria dos casos) são, de fato, óbices intransponíveis para se firmar a convenção processual?
1.2 CONFLITOS SUBMETIDOS À JURISDIÇÃO TRABALHISTA E OS NEGÓCIOS PROCESSUAIS ATÍPICOS
Diversos são os conflitos que se submetem à jurisdição trabalhista, de acordo com a competência fixada no artigo 114 da Constituição Federal de 1988, modificado pela EC n˚ 45/2004.
Do que se conclui que as causas trabalhistas não se restringem às lides decorrentes da relação de emprego, em que o reclamante-empregado se encontra em situação de vulnerabilidade.
Logo, não haveria qualquer impedimento em se celebrar negócio processual atípico nas demandas que envolvem o sindicato, o Ministério Público do Trabalho ou a União, por exemplo.
Nessas situações, as partes são plenamente capazes, pois dispõem de capacidade processual e negocial - inexistindo desigualdades entre os sujeitos da relação jurídica processual - e os direitos admitem, em regra, autocomposição, mesmo se forem indisponíveis[2].
Note-se que, no caso do sindicato, há autorização para negociar condições de trabalho que irão reger toda uma categoria profissional e econômica, sendo obrigatória a sua participação na negociação coletiva[3], efetuada por meio de convenção ou acordo coletivo de trabalho.
Ora, se é permitido que os sindicatos negociem sem a participação do Judiciário questões relacionadas ao direito material de uma categoria de trabalhadores, não há razão para proibir a negociação processual a ser celebrada entre sindicatos (patronal e dos trabalhadores) ou entre o sindicato dos trabalhadores e o empregador (pessoa física ou jurídica).
A cláusula negocial pode ser, inclusive, prévia ao processo, estabelecida no instrumento que exterioriza a negociação coletiva (convenção ou acordo coletivo de trabalho).
Pode-se pactuar, por exemplo, a dispensa da prova testemunhal para resolver determinado conflito, elegendo a prova documental e até o tipo de documento hábil para provar a alegação das partes; dispensar assistente técnico se houver necessidade de perícia; celebrar acordo para limitar a recorribilidade ao Tribunal Regional do Trabalho, vedando o reexame da causa pelo Tribunal Superior do Trabalho, em nome da celeridade processual ou para evitar expedientes indevidos ou procrastinatórios (quando se tenta revolver fatos e provas); reduzir ou ampliar número de testemunhas; fixar termos e condições para descumprimento de obrigação (de fazer, não fazer, pagar ou entrega de coisa) estipulada entre as partes.
Enfim, inúmeras são as hipóteses viáveis e que podem ser objeto de convenção processual atípica, desde que observem os limites impostos no ordenamento (licitude do objeto, agente plenamente capaz, forma prescrita ou não defesa em lei, vontade livre - sem vício de consentimento -, equilíbrio entre os sujeitos, respeito às normas de ordem pública, etc.).
Com relação ao Ministério Público, não há óbice na realização de acordo processual, o que é recomendado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Res. 118/2014, arts. 15-17).
Assim, o Ministério Público do Trabalho pode negociar com o réu/investigado a alteração no procedimento para ajustá-lo às peculiaridades da causa ou convencionar sobre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes – cláusula negocial instituída no termo de ajustamento de conduta (TAC) – ou durante a litispendência, em qualquer fase do processo.
Eventuais vícios serão apurados pelo juiz no caso concreto ao realizar o controle de validade a posteriori (art. 190, parágrafo único do CPC/15), quando a demanda já estiver instaurada.
Também a União pode promover execuções fiscais, para cobrança das penalidades impostas aos empregadores pelo descumprimento das obrigações trabalhistas, e resolver entabular um negócio jurídico processual com o réu-empregador, nos termos do art. 190 do CPC/15.
Não há, portanto, como se proibir a negociação processual atípica aprioristicamente para essas demandas, em face da compatibilidade com os princípios, valores e singularidades trabalhistas.
1.3 RELAÇÕES DE EMPREGO E MANIFESTA SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE
O direito do trabalho se assenta sob uma égide de princípios que visam proteger o empregado, considerado como parte hipossuficiente em face da dependência econômica e subordinação que emana do seu empregador. Isso gera uma situação de desequilíbrio na relação jurídica que os une, demandando uma tutela diferenciada para garantir a isonomia material.
Daí porque os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e indisponíveis durante a vigência do vínculo de emprego, vedada a transação ou alteração contratual que acarrete prejuízos ao empregado (art. 468 da CLT). Reputam-se nulos os atos praticados com o intuito de desvirtuar, impedir ou fraudar os direitos trabalhistas, consoante preceitua o art. 9˚ da CLT.
No âmbito processual, porém, a desigualdade entre as partes não é tão evidente já que, na maioria dos casos, quando a ação é ajuizada o vínculo não mais subsiste, de modo que cessa a relação de dependência econômica e de subordinação que caracterizam o contrato de emprego.
Mas ainda se pode enxergar o desequilíbrio na relação jurídica, visto que o reclamante tem maior dificuldade na produção da prova, na contratação de um bom advogado para patrocinar seus interesses, além da dificuldade financeira para arcar com as despesas do processo.
Assim, a hipossuficiência do reclamante e a necessidade de proteção[4] pode ter lugar também na perspectiva processual, o que poderia justificar a inaplicabilidade do art. 190 do CPC/15.
Sucede que, como se extrai do próprio art. 190, a situação de vulnerabilidade de uma das partes deve ser manifesta, a ponto de desequilibrar efetivamente a relação processual. E isso só pode ser aferido no caso concreto[5] e não de forma abstrata, como fez o TST na IN n˚ 39.
É esse o sentido que se extrai do parágrafo único do art. 190 do CPC:
De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
O fato de o reclamante ser ex-empregado não afasta, por si só, a possibilidade de firmar um acordo processual, ainda que seja considerado vulnerável. Cabe ao juiz examinar o objeto convencionado e verificar se a cláusula é desarrazoada e onera excessivamente uma das partes. É preciso vislumbrar a abusividade do negócio firmado em detrimento de um sujeito.
Nada impede que as partes pactuem cláusula mais favorável ao hipossuficiente ou que contenha benefícios recíprocos[6], a exemplo de: a) rateio dos honorários periciais provisionais, se o reclamante requereu a perícia; b) aumento de prazo para manifestação de documentos, em se tratando de causa complexa; c) acordo para fixar o valor do depósito recursal acima do teto estabelecido pelo TST e que corresponda, v.g., ao valor da causa arbitrado na sentença, ou a um percentual dele; d) dispensa de assistente técnico, pois geralmente apenas o reclamado tem condições de arcar com o custo e contratar especialistas de referência; e) divisão de tempo para sustentação oral; f) aumento/redução no número de testemunhas; g) aumento/redução de prazos de acordo com as peculiaridades da causa; e) delimitação das matérias que serão objeto de prova, com a distribuição prévia do ônus ou a criação de fase específica para realizar o saneamento e a organização compartilhada do processo.
Logo, se as partes estiverem assistidas pelos seus respectivos advogados (e não sob o manto do jus postulandi) e respeitarem os limites legais, além de lhes ser assegurada a igualdade real no processo (art. 7˚ do CPC/15), não se vislumbra óbice para celebrarem negócio processual atípico, mesmo que a demanda envolva relação de trabalho, inclusive a de emprego.
Contudo, o juiz precisará ser mais criterioso no exame de validade do negócio no caso concreto, em face da presunção de vulnerabilidade/hipossuficiência do trabalhador. Mas isso não significa que o negócio jurídico processual atípico não possa ser celebrado entre os litigantes.
Não se pode olvidar ainda que existem empregados que possuem alta qualificação, discernimento, capacidade de negociação das condições de trabalho (sobretudo do salário) e da rescisão contratual, além de elevado poder aquisitivo – o que permite a contratação de excelentes advogados - e que não podem ser considerados meros hipossuficientes ou vulneráveis.
Imagine-se a situação de um renomado professor de Direito e Processo do Trabalho de uma faculdade privada, contratado sob o regime celetista, portanto, empregado. Se houver conflito no rompimento do vínculo, poder-se-ia negar a aplicação do art. 190 do CPC, sob o argumento de que o reclamante está em manifesta situação de vulnerabilidade e desequilíbrio com relação ao seu ex-empregador, não possuindo capacidade de negociar em iguais condições? Seria correto alegar que o reclamante, professor de Direito e Processo do Trabalho, não tem discernimento para convencionar questões processuais aplicáveis à futura lide?
Não há, na hipótese narrada, pelo menos a priori, desigualdade material entre as partes que impeça o acordo processual previsto no art. 190 ou a sua validação perante o Judiciário.
Seria o caso até mesmo de validar cláusula processual previamente estipulada no contrato de trabalho, desde que ausente vicio no consentimento ou no objeto negociado. Note-se que o empregado não estará renunciando ao direito material, protegido pelo princípio da indisponibilidade, mas questões relacionadas ao âmbito processual, em caso de eventual conflito.
Até um contrato de adesão pode conter cláusula negocial processual, pois o CPC apenas nega validade quando a cláusula é abusiva, como evidencia o art. 190, parágrafo único.
Não existe razão, portanto, para considerar inaplicável o art. 190 do CPC/15 ao Processo do Trabalho em qualquer causa que se submete à sua jurisdição[7]. Cabe ao juiz analisar, no caso concreto, inclusive de ofício, se o negócio processual é válido[8], negando-lhe eficácia apenas se houver manifesta situação de vulnerabilidade, abusividade da cláusula negocial, vício de consentimento na manifestação da vontade e desrespeito às normas de ordem pública.
A apreciação do juiz não pode ser particular e subjetiva. Deve observar objetivamente se a convenção é lícita, proporcional e razoável, ainda que “eventualmente inconveniente ou inoportuna sob a ótica do julgador”[9]. Isso não corrompe, por si só, a validade do negócio se ele apresentou conteúdo adequado, necessário e proporcional/ razoável.
Se todos os requisitos forem atendidos, o juiz não deve intervir e se vinculará ao que foi acordado, observando as alterações de procedimento ou das regras sobre ônus, poderes, faculdades e deveres promovidas pelas partes com o propósito de adequar às peculiaridades da lide.
Assim, se concretizam os princípios da cooperação, da adequação e do respeito ao autorregramento da vontade no processo, que se torna mais efetivo e apto para tutelar o direito material discutido e entregar, de forma qualificada, a devida prestação jurisdicional às partes.
Notas e Referências:
[1] Essa foi a conclusão do Ministro Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho em resposta à consulta formulada pela ANAMATRA com relação a IN n˚ 39 do TST.Publicado em 1.9.2016, na Seção 3, do Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho (Caderno Judiciário do TST).
[2] Conferir o enunciado n˚ 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração do negócio jurídico processual”.
[3] Art. 8˚, VI, da CF: “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”.
[4] Aqui a necessidade de proteção é no sentido de promover a paridade de armas entre as partes, ou seja, a igualdade processual substancial, consubstanciada no art. 7˚ do CPC/15: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”.
[5] “Regra geral, a vulnerabilidade é fato a ser constatado de forma concreta, daí porque o parágrafo único do art. 190 alude à ‘manifesta situação de vulnerabilidade’. Assim, o fato de alguém ser trabalhador ou consumidor não presume, por si só a vulnerabilidade. Rememore-se que, pelo art. 4.˚, I, do CDC, o ‘reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo’ consiste em um princípio, e não uma regra, a depender, portanto, das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto. Tal situação pode ser aferida de ofício pelo juiz”. TAVARES, João Paulo Lordelo Guimarães. Da admissibilidade dos negócios jurídicos processuais no Novo Código de Processo Civil: aspectos teóricos e práticos. In: Revista de Processo, ano 41, vol. 254, abrl/2016, p. 106.
[6] “Quando se diz, portanto, que a igualdade substancial é decisiva para a validade do negócio processual, está-se na premissa de que eventual preponderância de um dos sujeitos não deve resultar em regras a ele favoráveis e desfavoráveis ao adversário. Mas, se apesar da desigualdade no plano substancial, o negócio processual contiver regras que asseguram não apenas o contraditório, mas a igualdade real, então a validade do ato estará preservada. Em suma: pode haver negócio processual válido entre pessoas desiguais, desde que o processo assegure a igualdade real”. YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: Negócios processuais. Antônio do Passo Cabral e Pedro Henrique Nogueira (cords.). 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 81.
[7] Enunciado n˚ 31 do Fórum Permanente de Processualistas do Trabalho (FPPT): “A previsão da atipicidade das convenções processuais é aplicável ao processo do trabalho”. O Enunciado n˚ 7 também consagra a aplicação do art. 190 no Processo do Trabalho: “A celebração de negócio jurídico processual no curso do processo já é prática na esfera trabalhista, cabendo ao juiz verificar a sua validade, e, se for o caso, justificar a decisão de não reconhecer o acordo feito em uma das hipóteses estabelecidas no parágrafo único do art. 190 do CPC, observado o contraditório”. Disponível em www.fppt.com.br.
[8] “Assim, nada impede, em tese, a celebração de negócios processuais no contexto do processo consumerista ou trabalhista. Caberá ao órgão jurisdicional, em tais situações, verificar se a negociação foi feita em condições de igualdade; se não, recusará eficácia ao negócio. Note que o parágrafo único do art. 190 do CPC/2015 concretiza as disposições dos arts. 7.˚ e 139, I, do CPC/2015, que impõem o juiz o dever de zelar pela igualdade das partes”. DIDIER JR., Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. In: Revista Brasileira de Advocacia, vol. 1, ano 1. Flávio Luiz Yarshell (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun/2016, p. 73.
[9] REDONDO, Bruno Garcia. Negócios jurídicos processuais: existência, validade e eficácia. In: Panorama atual do Novo CPC. Paulo Henrique de Santos Lucon e Pedro Miranda de Oliveira (cords.), 1 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 31.
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