A aplicação do microssistema de litigiosidade repetitiva ao Processo do Trabalho – Por Juliane Facó

25/04/2017

Coordenador: Ricardo Calcini

O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os recursos repetitivos (extraordinário, especial e de revista) estão inseridos no âmbito da jurisdição de massa, já que envolve uma litigiosidade repetitiva[1], ou seja, não é voltada nem à tutela do direito exclusivamente individual nem à tutela do direito coletivo. Em verdade, reúne elementos das duas categoriais, o que exige um devido processo legal adequado e específico que lhe serve de alicerce.

A jurisdição de massa é, assim, baseada na existência de processos repetitivos que se ligam por uma questão fática ou jurídica comum e se identificam, em regra, no plano abstrato e não em cada situação concreta. Tratam-se de “demandas-tipo, decorrentes de uma relação-modelo, que ensejam soluções-padrão. Os processos que versam sobre os conflitos massificados trazem elementos objetivos (causa de pedir e pedido) que se assemelham, mas não chegam a se identificar”[2], apesar de exigirem a padronização da solução conferida pelo Judiciário.

A medida se impõe em face da imperiosa observância do princípio da igualdade no ordenamento jurídico, que não é observada quando se admite desfechos opostos para casos semelhantes. A coerência e a harmonia do sistema também são afetadas ao se permitirem decisões antagônicas sobre processos que se encontram sobre a mesma moldura, corrompendo a previsibilidade das decisões judiciais, a segurança jurídica e a confiança dos jurisdicionados.

Dessa forma, com o objetivo de construir uma arquitetura adequada a tutelar a litigiosidade de massa, o Código de Processo Civil de 2015 instituiu o microssistema de julgamento dos casos repetitivos (demandas-tipo), composto pelo incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976/987) e pelos recursos repetitivos, conclusão que aflora do art. 928 do CPC[3]. Busca-se, através de mecanismos eficientes, equacionar os problemas das macrolides.

Não há dúvida de que os institutos de resolução da litigiosidade de massa se complementam e exigem um "regime processual próprio, com dogmática específica, que se destine a lhes dar solução prioritária, racional e uniforme"[4] para obter resultados efetivos e isonômicos.

A técnica dos recursos repetitivos, por si só, não é suficiente para atender aos anseios da sociedade de massa. Observe-se que a medida não permite, por exemplo, a coletivização ou a generalização do tema comum em primeiro grau ou no âmbito dos tribunais locais. O tratamento molecular das causas isomórficas nos recursos repetitivos depende da afetação do recurso paradigma, de modo que, até que isto ocorra, milhares de demandas terão sido ajuizadas pelo país, "assoberbando os órgãos jurisdicionais das instâncias ordinárias e recebendo respostas judiciárias antagônicas, consoante o entendimento pessoal dos magistrados"[5].

Sem contar que muitas decisões transitarão em julgado antes de conseguir acessar as instâncias extraordinárias, seja pela preclusão temporal dos recursos cabíveis, seja pela falta de algum pressuposto de admissibilidade dos recursos interpostos, tendo que enfrentar a difícil tarefa de ultrapassar os inúmeros óbices dispostos no ordenamento e que recrudescem o filtro recursal.

A questão se volta agora para a aplicação do microssistema da litigiosidade repetitiva ao Processo do Trabalho. Há alguma incompatibilidade com o ordenamento jurídico trabalhista?

Em verdade, a eventual controvérsia a esse questionamento restringe-se apenas ao cabimento, na Justiça Especializada, do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) estabelecido pelo Novo CPC, uma vez que o recurso de revista repetitivo, que se processa à semelhança dos recursos extraordinário e especial repetitivos (arts. 1.036/1.041, CPC/2015), já foi incorporado à sistemática trabalhista, pela Lei n˚ 13.015/2014, no art. 896-C da CLT.

Para responder à pergunta acima formulada, deve-se indagar se há demandas repetitivas, processadas em primeiro e em segundo grau na Justiça do Trabalho, que justifiquem o tratamento macromolecular dos litígios. Em outras palavras, a litigiosidade repetitiva, que caracteriza a jurisdição de massa, está presente nos conflitos sob a égide da seara laboral?

Imagine-se a situação em que se encontram múltiplos processos propostos por empregados contra a Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Petrobrás ou Correios (EBCT). As discussões são variadas, mas a maioria contém o mesmo pano de fundo, isto é, estão assentadas sob a mesma controvérsia jurídica e gravitam em torno de um núcleo fático comum. Podem ser relacionadas a benefícios previstos no Plano de Cargos e Salários, mas que deixaram de ser concedidos pelo empregador; qualificação da sétima e oitava hora bancária como extra para analistas; não realização das condições previstas no PCCS para promover empregados, observando critérios de antiguidade e merecimento, dentre outras hipóteses.

Observe-se que essas demandas são conectadas por questões fáticas comuns, ou seja, os autores se enquadram na mesma situação, foram atingidos pelo mesmo instrumento (PCCS, por exemplo), vítimas do mesmo comportamento (ou omissão), operado em larga escala, pelos seus empregadores, e clamam a reparação de igual direito. As petições iniciais e demais pronunciamentos narram o mesmo fato e os elementos objetivos (causa de pedir e pedido) se equiparam.

Demandas como essas devem ser classificadas como repetitivas e merecem um julgamento à luz do sistema de precedentes, pois retratam um mesmo contexto fático-jurídico, sem peculiaridades relevantes que as distingam das demais (ou seja, não se aplica o distinguishing).

Nesses casos, deve imperar a aplicação do princípio da igualdade no ato de julgar. Não há como justificar para o jurisdicionado, perante um ordenamento que prega a segurança jurídica, que o caso dele será julgado de forma diferente da do seu colega, que trabalha no mesmo setor e, muitas vezes, na mesa ao lado. Um pode ser sucumbente e o outro vitorioso, apesar da identidade entre os seus processos, movidos contra o mesmo empregador e sob as mesmas bases?

É esse tipo de problema (além de muitos outros), responsável pelo déficit de confiança no Poder Judiciário, que o sistema de precedentes visa solucionar, de acordo com a arquitetura desenhada pelo CPC/2015 e Lei nº 13.015/2014. Propõe-se a mudança de paradigma e da argumentação jurídica como forma de materializar princípios presentes na Constituição.

Diante desse quadro, não há como negar que a litigiosidade repetitiva permeia a Justiça do Trabalho e exige uma tutela adequada e eficiente, dotada de mecanismos próprios para resolver os conflitos. A própria Instrução Normativa n˚ 39 do TST já reconheceu a aplicabilidade do IRDR no Processo do Trabalho, consoante se infere do seu artigo 8˚, assim vazado:

Art. 8° Aplicam-se ao Processo do Trabalho as normas dos arts. 976 a 986 do CPC que regem o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).

Poderia se dizer até que o incidente de uniformização de jurisprudência (art. 896, § 3o /6˚ da CLT), redimensionado à luz dos precedentes e dos novos paradigmas, já cumpre esse papel, mas ele não é suficiente para compor a estrutura adequada à tutela da jurisdição de massa.

Além disso, há diferenças entre os institutos, embora sejam semelhantes. O objetivo do incidente de uniformização de jurisprudência (IUJ) é eliminar a divergência interna dos tribunais com vistas a cumprir o dever de uniformizar a jurisprudência (art. 926, caput do NCPC), o que se relaciona com a obrigação de observar os seus próprios precedentes de modo horizontal e vertical. As questões são apreciadas de modo mais abstrato e geral, sempre que, internamente (no âmbito dos órgãos fracionários), houver interpretação antagônica sobre a mesma questão jurídica, exigindo que a controvérsia fática seja praticamente nula ou reduzida.

O IUJ é uma tentativa de facilitar o trabalho dos tribunais superiores e deixá-lo mais efetivo, pois de nada adianta o TST decidir a mesma divergência jurisprudencial incessantemente, representada por acórdãos de um mesmo tribunal, mas que expressam entendimentos diferentes. É como se o papel do TST fosse, ao invés de fixar (e pacificar) o entendimento sobre a questão de forma nacional, eliminar a divergência interna dos tribunais de recurso em recurso, o que acaba tornando inócua a sua função constitucionalmente atribuída. Nesse caso, pouco importa a espécie de litigiosidade (individual, coletiva ou repetitiva).

Já o IRDR está voltado ao caso concreto, às particularidades de causas repetitivas, amparadas por um núcleo fático comum e que merecem um mesmo tratamento por parte do Estado-juiz, em nome da isonomia. É como se o IUJ fosse voltado mais ao tribunal e o IRDR às partes.

Assim, diante da omissão da CLT (art. 769) no que toca ao IRDR e da ausência de incompatibilidade, entende-se que o incidente de resolução de demandas repetitivas é aplicável ao Processo do Trabalho. Logo, existindo efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre questão de direito, que possa implicar risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, incide o mecanismo de padronização coletiva previsto no CPC/2015[6].

Outra não pode ser a conclusão extraída do ordenamento trabalhista, considerando a instituição do recurso de revista repetitivo pela Lei nº 13.015/2014; uma vez admitido, no âmbito do TST, o julgamento por amostragem de uma multiplicidade de recursos fundados em idêntica questão de direito, inexiste fundamento para negar o incidente que visa conter a litigiosidade de massa em primeiro e segundo graus, pois são elementos de um mesmo microssistema.

Corroborando esse entendimento, cumpre transcrever os enunciados editados em Belo Horizonte, no IV Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), sobre o tema em análise:

  1. A Lei nº 13.015, de 21 de julho de 2014, compõe o microssistema de solução de casos repetitivos. 
  1. Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de resolução de demandas repetitivas, devendo ser instaurado quando houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito. 

Parece que não há como entender de modo diverso. Se cabem os recursos repetitivos, admitindo-se a necessidade de um regime processual diferenciado para os dissídios de massa, não há como afastar a incidência do instituto de resolução de demandas repetitivas na esfera trabalhista.

Aplicam-se as mesmas regras delineadas nos arts. 976/987 do CPC/2015, com os devidos ajustes apenas relacionados aos órgãos e especificidades da Justiça laboral. A competência para julgamento será dos Tribunais Regionais do Trabalho, exercida pelo órgão determinado no seu regimento interno, e o recurso cabível para impugnar a decisão será o recurso de revista (art. 8˚, §2˚ da IN n˚ 39), que poderá conferir abrangência nacional à tese jurídica firmada no incidente, repercutindo para todos os processos individuais ou coletivos, pendentes ou futuros, submetidos à sua jurisdição, consoante se extrai do §3˚, art. 8˚, da IN 39 do TST.

As demais disposições relativas à suspensão dos processos, ao prazo para julgamento do incidente, intervenção do amicus curiae, Ministério Público (do Trabalho) e interessados, publicidade e registro no cadastro nacional, superação da tese e distinguishing se amoldam perfeitamente à seara trabalhista, havendo, portanto, compatibilidade com os princípios e regras que informam o processo do trabalho, sobretudo a celeridade que edifica os seus alicerces.

Em síntese, o microssistema processual das demandas repetitivas almeja: a) a rápida fixação da tese jurídica a ser replicada nas causas semelhantes; b) maior previsibilidade na aplicação do direito por meio da estabilização da jurisprudência e a consolidação de entendimentos uniformes; c) julgamento isonômico para casos similares e diferentes para casos que não podem ser padronizados; d) maior credibilidade ao Judiciário; e) legitimidade das suas decisões produzidas com a observância do contraditório efetivo (das partes e interessados) e institucional, considerando a participação do amicus curiae e a sua contribuição para o debate; f) uma cultura de respeito aos precedentes judiciais no ordenamento brasileiro[7].

Permite-se, assim, padronizar a solução sobre a questão jurídica decidida pelo juízo, preservando o precedente firmado, em consonância com o princípio da igualdade e a celeridade (duração razoável do processo) que devem orientar os julgamentos das demandas massificadas.


Notas e Referências:

[1] Sobre o tema, conferir artigo “Litigiosidade repetitiva no CPC/2015 e sua aplicação ao Processo do Trabalho”. FACÓ, Juliane Dias. In: Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia, Ano V, n˚ 7, mar./2016, p. 189-199.

[2] BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. In: Revista de Processo, ano 35, nº 186. São Paulo: Revista dos Tribunais, ago./2010, p. 97.

[3] Art. 928. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:

I – incidente de resolução de demandas repetitivas;

II – recursos especial e extraordinário repetitivos.

Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.

[4] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. In: Revista de Processo, ano. 36, vol. 193. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 258.

[5] MATTOS, Luiz Norton Baptista de. O projeto do Novo CPC e o incidente de resolução de demandas repetitivas. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Direito Jurisprudencial, vol. II, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 817.

[6] Edilton Meireles partilha da opinião de que o IRDR é aplicável ao Processo do Trabalho: “[…] entendemos que é plenamente compatível com o Processo do Trabalho a incidência das regras que tratam do incidente de resolução de demandas repetitivas. É compatível, já que através desse incidente se busca não só assegurar o tratamento isonômico que deve ser dispensado aos trabalhadores e empregadores, assim como em face da segurança jurídica visada, bem como por ser um procedimento que procura tornar concreta a cláusula da duração razoável do processo, além da eficiência da administração pública jurisdicional”. MEIRELES, Edilton. Do incidente de resolução de demandas repetitivas no Processo Civil Brasileiro e suas repercussões no Processo do Trabalho. In: Novo CPC: repercussões no Processo do Trabalho. Carlos Henrique Bezerra Leite (org.) São Paulo: Saraiva, 2015, p. 235.

[7] ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. As demandas de massa e o projeto de Novo Código de Processo Civil. In: Novas tendências do processo civil, vol. 3. Salvador: Jus podivm, 2014, p. 50-51.


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