A aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nas execuções fiscais no âmbito do estado de São Paulo

24/08/2018

 Coluna O Novo Processo Civil / Coordenador Gilberto Bruschi

1. O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica

Com o advento do novo CPC, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica passou a ser regulamentado nos artigos 133 a 137, no capítulo das intervenções de terceiro, pois, nas palavras de Fredie Didier[1]: “se provoca o ingresso de terceiro em juízo – para o qual se busca dirigir a responsabilidade patrimonial”, afastando as incertezas acerca do momento processual adequado para a sua requisição, bem como qual seria a natureza do ato processual.

O incidente só pode ser instaurado mediante atuação provocada pela parte interessada ou pelo Ministério Público, conforme se depreende da leitura do artigo 133 do CPC, que deverá preencher os requisitos estabelecidos em lei, ou seja, em total consonância com o artigo 50 do Código Civil[2].

O artigo 134 do CPC, por sua vez, estabelece as hipóteses de cabimento, quais sejam: na petição inicial; em forma de incidente processual; no cumprimento de sentença; ou em execução fundada em título executivo extrajudicial[3].

2. A aplicação (ou não) da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário nas execuções fiscais no estado de São Paulo.

Dispõe o artigo 15 do CPC que: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.

Neste ponto vale dizer que no artigo supra transcrito há uma contradição, vez que o Novo CPC trata os termos “supletiva” e “subsidiariamente” como sinônimos. Contudo, devemos estabelecer uma distinção entre eles, de tal feita que se aplica o CPC de forma supletiva quando houver alguma lacuna da lei, não podendo utilizar supletivamente quando a lei especial vedar a sua aplicabilidade, e subsidiariamente de forma a auxiliar e estabelecer diretrizes ao operador do direito, logo não são termos equivalentes.

Portanto, nas palavras de Grupenmacher[4], 2016, p.18:

Embora haja expressa referência no texto normativo à “ausência de norma” regulatória, o legislador não se referiu apenas à aplicação supletiva do NCPC aos processos administrativos, no preciso sentido de colmatação de lacunas, mas autorizou também a sua aplicação subsidiária, o que, conquanto antinômico com a alusão à “ausência de norma” – já que nessa hipótese a aplicação seria apenas supletiva –, guarda coerência com a intenção do legislador de atribuir ao NCPC a condição de veículo introdutor de uma nova Teoria Geral do Processo.

(...)

Aplicam-se à execução fiscal subsidiariamente as disposições do Código de Processo Civil. Assim como o disposto no artigo 795, do novo CPC, também o artigo 4º, § 3º, da citada Lei de Execuções Fiscais, prevê que bens do sócio responsável só responderão pelo débito se os da empresa não forem suficientes para tanto.

Ato contínuo, cabe destacar o posicionamento de Moreira e McNaughton[5]:

É importante frisar que em âmbito federal existe regramento específico para o processo tributário por meio da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80), aplicável também aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Nesse caso, a execução judicial para a cobrança da dívida ativa desses entes será regida por essa Lei e, de forma auxiliar, pelo Código de Processo Civil.

Dito isto, insta salientar que o tema é controverso e não está pacificado na doutrina e nem na jurisprudência, existindo sólidos argumentos a favor e contra a instauração do referido incidente ao redirecionar a execução fiscal para os sócios controladores da empresa executada.

Contra a sua aplicação, os principais argumentos exarados são[6]: a) a não previsão expressa de sua aplicação, como ocorreu em relação aos Juizados Especiais, mais especificamente no artigo 1.062 do CPC; b) a utilização da súmula 435 do STJ como justificativa para diferimento do contraditório, tendo em vista a presunção da dissolução irregular da sociedade; c) o artigo 135 do Código Tributário Nacional estabelece a responsabilidade pessoal dos sócios, de forma subjetiva e direta, de forma que há o redirecionamento da execução, em vez da desconsideração da personalidade jurídica, não tendo que se falar em instauração do incidente; d) o artigo 134 do CPC estabelece a suspensão do processo, enquanto que na execução fiscal só há a suspensão após a garantia do juízo pelo executado, nos termos do artigo 16, §1° da lei 6.830/80.

Ademais, outro argumento contrário trazido à baila é[7] o fato de o referido incidente não ser hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, não ocorrendo, portanto, a suspensão da prescrição tributária e, conforme preconiza o artigo 146, III, “b” da Constituição Federal, somente cabe à lei complementar tratar de hipóteses de suspensão da prescrição tributária.

Ainda, há o consenso de que se o CPC for aplicado de forma ampla ao processo tributário, pode comprometer a sua autonomia, de forma que a sua aplicação ao processo tributário, em especial às execuções fiscais, se dá de forma subsidiária ou supletiva.

Neste sentido, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), aprovou o enunciado 53 com a seguinte redação[8]: “O redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015.” (ENFAM, 2015).

O II Fórum Nacional de Execução Fiscal (FONEF)[9] firmou o entendimento no sentido de que: “A importância da aplicação do novo código de processo civil à execução, notadamente quanto ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que não se aplica na hipótese do art 135 do CTN.” (FONEF, 2016).

Por fim, no Fórum de Execuções Fiscais da Segunda Região (FOREXEC)[10], aprovou-se o enunciado 6 nos seguintes termos: “A responsabilidade tributária regulada no art. 135 do CTN não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no art. 133 do CPC/2015”.

Por outro lado, os argumentos favoráveis[11] à aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das execuções fiscais, consistem, principalmente: a) o incidente se aplica na fase de execução de título executivo extrajudicial, e sendo a Certidão de Dívida Ativa, que é objeto da execução fiscal, um título executivo extrajudicial, logo poderia ser aplicado às execuções fiscais; b) com a aplicação do incidente, seriam resguardados os princípios do contraditório e da ampla defesa, garantidos nos artigos 5º, LV, da CF e artigo 7º do CPC/15, inclusive nos casos do artigo 135 do CTN, mormente se o sócio não constar na CDA, a fim de garantir os princípios já descritos; c) o artigo 795, §4º do CPC determina a obrigatoriedade do incidente; d) a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica não frustra a efetividade da execução, uma vez que o sócio objeto do incidente, nos termos do artigo 137 do CPC, não poderá se desfazer de seus bens, haja vista a ineficácia da alienação ou oneração de bens em relação ao requerente.

Em relação aos entendimentos jurisprudenciais, tomar-se-á como base os Julgados proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desde a entrada em vigor do novo CPC, tratando-se a sua maioria de acórdãos proferidos em julgamentos de agravos de instrumento.

Analisando jurisprudência proferida por este tribunal, verificamos que as 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 8ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª, 15ª e a 18ª Câmaras de Direito Público[12] vêm se posicionando pela não instauração do incidente, principalmente sob o argumento de que:

A desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com o pedido de inclusão dos sócios que respondem pessoalmente pelas obrigações tributárias (art. 135, do CTN) e que o mero redirecionamento ou inclusão no polo passivo que decorre daquelas hipóteses, portanto, não justifica o procedimento incidental previsto no art. 133, do CPC. (Agravo de Instrumento nº 2057736-15.2018.8.26.0000, 15ª Câmara de Direito Público, Relator: Rezende Silveira, Data do Julgamento: 22/05/2018, TJSP).

Infere-se, portanto, que o tema não é pacificado na jurisprudência, principalmente em relação à primeira instância, tendo em vista a existência de um expressivo número de acórdãos que reformaram sentenças que entenderam cabíveis a aplicação do incidente no âmbito das execuções fiscais em São Paulo.

Além disso, vale ressaltar que os requisitos previstos no artigo 135 do CTN tem que ser provados, pois a mera inclusão dos sócios na CDA, sem que tenha sido apurada a sua participação dolosa e fraudulenta, sob o argumento de que caso contrário operar-se-á sua nulidade, é , nas palavras de Grupenmacher[13] “insuficiente para garantir o contraditório e o devido processo legal”.

3. Conclusão

Diante de todo o exposto, restou demonstrada toda a controvérsia em volta do assunto, elencando argumentos contrários e favoráveis à aplicação do incidente em questão nas execuções fiscais em âmbito estadual, bem como este tema vem sendo decidido no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Neste ínterim, verificou-se que as decisões predominantes proferidas por este tribunal foram no sentido da não aplicação do referido incidente regulamentado pelo CPC/15 às execuções fiscais.

Destarte, entende o autor que o redirecionamento aos sócios pela Fisco estadual deve ocorrer somente nas hipóteses de atos praticados com excesso de poderes, ou quando houver infração à lei, ao contrato social ou estatuto da empresa, nos termos do artigo 135 do CTN, pois se trata de responsabilidade pessoal do sócio, sendo ônus do Fisco a prova de que o sócio agiu com dolo e com o intuito de cometer fraude, não sendo admitida a possibilidade de redirecionamento aos sócios sem que haja prova incontroversa nos autos, caso contrário estar-se-á diante de clara e manifesta violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Entretanto, acredita o autor que, se ao realizar a subsunção dos fatos à norma, não houver enquadramento nas hipóteses previstas no artigo 135 do CTN, não seria caso de redirecionamento da execução, aplicando-se, subsidiariamente, o CPC, instaurando-se, portando, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Notas e Referências

[1] JUNIOR, Fredie Didier, “Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento”, 19ª Edição, Salvador: Editora Juspodvm, 2017. P. 514

[2] JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil – Volume I. 58ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, 1257 p.

[3] DONIZETI, Elpídio. Novo Código de Processo Civil Comentado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, 1461 p.

[4] GRUPENMACHER, Betina Treiger. A Aplicação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, previsto no novo Código de Processo Civil aos processos judiciais e administrativos em matéria tributária. IBET, 2016, 22 p. Disponível em http://www.ibet.com.br/ibet-antigo/wp-content/uploads/2016/03/Betina-Treiger-Grupenmacher.pdf.

[5] MOREIRA, Maristela Justen; MCNAUGHTON, Charles William. O novo código de processo civil, princípios e mediação em âmbito tributário. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol. 9. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais.

[6] PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Fazenda Pública e Execução. 2018, 205 p.; e SILVEIRA, Arthur Barbosa da. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário: reflexos decorrentes do novo CPC. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol 4. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais. E BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.236.916/RS. Recorrente: TECNOVIDRO INDÚSTRIA DE VIDROS LTDA. Recorrida: LEONOR MASSOLINI SCHULKE. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=31412528&num_registro=201100311609&data=20131028&tipo=5&formato=PDF

[7] QUEIROZ, Ricardo de Lima Souza. Incidente de desconsideração da PJ deve ser afastado em execução fiscal. 2016. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-fev-08/ricardo-queiroz-desconsideracao-pj-nao-cabe-execucao-fiscal.

[8] BRASIL. Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Enunciados aprovados em 26 a 28 de agosto de 2015. Disponível em < https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf>

[9] BRASIL. Fórum Nacional de Execução Fiscal (FONEF). Enunciados aprovados em 17 de março de 2016. Disponível em < https://www.ajufe.org.br/fonef/9735-ii-fonef>.

[10] BRASIL. Fórum de Execuções Fiscais da Segunda Região (FOREXEC). Enunciados aprovados em 01 de outubro de 2015. Disponível em http://emarf.trf2.jus.br/site/documentos/enunciadosforexec2015.pdf.

[11] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 411 a 416.

[12] Foram consultadas as decisões sobre o tema desde a entrada em vigor do novo CPC, assim verificou-se que as 6ª, 7ª, 16ª e 17ª Câmaras de Direito Público não proferiram julgados sobre o tema até a data de 25/05/2018.

[13] GRUPENMACHER, Betina Treiger. Op cit. p. 19.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/8035396680/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura