A APLICAÇÃO DO IN DUBIO PRO SOCIETAT NO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA E A VIOLAÇÃO À PARIDADE DE ARMAS NO PROCESSO PENAL

07/02/2023

O presente artigo tem como escopo analisar a aplicação do famigerado princípio do in dubio pro societat no momento do recebimento da denúncia, no âmbito do processo penal e a sua relação com a paridade de armas, sobretudo no tocante ao princípio do contraditório. O momento do recebimento da denúncia é de suma importância para o processo penal, principalmente para o acusado, vez que é o momento em que o mesmo se torna réu no processo, carregando várias consequências, tanto na esfera jurídica quanto no meio social. Deste modo, o recebimento da denúncia deve ser dotado de fundamentação jurídica plausível, após constatação de elementos mínimos em relação à autoria e materialidade do crime imputado. Tal fundamentação decorre de norma constitucional, inclusive (artigo 93, IX,da Constituição Federal). Nesse contexto, o princípio do in dubio pro societat vem sendo aplicado, por vezes, na decisão de recebimento da denúncia, momento em que o juiz, na dúvida sobre a presença mínima de elementos de autoria e materialidade delitiva, recebe a denúncia e dá início ao processo. É preciso avaliar se essa decisão, na forma de ‘despacho automático’, viola a paridade de armas, sob o prisma do princípio do contraditório. 

O Processo Penal brasileiro vive uma crise sem precedentes, que parece estar longe do fim. A conjuntura processual aplicada ao caso concreto funciona como uma violação de direitos e garantias ao invés de servir como instrumento garantidor e protetor. Desde a instauração do inquérito policial, o suposto autor do fato já sofre com as acusações imputadas, principalmente quando os fatos ali investigados são ventilados pela mídia. Já começa o julgamento popular. É sabido que no âmbito do inquérito policial a defesa tem pouca liberdade para produzir e defender, notadamente porque ainda é fase de investigação e, portanto, não há uma acusação formal. Tal premissa, por si só, já é um defeito que, por vezes, traz ao suspeito, suposto autor do fato, consequências muitas vezes irreparáveis. Avanço significativo se deu com a possibilidade da chamada investigação defensiva, permitindo a defesa (também) conduzir investigações sobre determinado fato, e com isso tentar possibilitar ao suposto autor do fato condições mais dignas de defesa para o futuro processo penal que se iniciará (ou não). É sabido ainda que a polícia hoje, no Brasil, possui estrutura precária, tanto de pessoal quanto de mecanismos de investigação, o que por consequência acaba por fazer uma investigação mal feita ou incompleta, já que o intuito do inquérito é a busca por indícios de autoria e materialidade delitiva.

Mesmo com toda a precariedade, o inquérito vai servir de base para a futura denúncia, que será recebida ou não pelo magistrado. Esse é o ponto crucial, o recebimento da denúncia. Partindo da perspectiva de paridade de armas no processo penal, sob o prisma do contraditório (significativo), a decisão (sim, é uma decisão) que recebe (ou não) a denúncia deve(ria) ser fundamentada, deixando claro os requisitos mínimos para tal decisão. Isso porque o chamado recebimento automático da denúncia viola o dever de fundamentar as decisões, além de causar consequências gravíssimas ao réu, na medida em que a ele será imputada uma acusação sem muitas vezes preencher o mínimo de plausibilidade acusatória possível, faltando, inclusive a justa causa penal. Welton Roberto:

“Ora, não se pode simplesmente classificar a decisão que recebe ou que rejeita uma denúncia de mero despacho para burlar a aplicação do artigo 93, IX da CF, até porque à “decisão” que rejeita a denúncia é oponível recurso em sentido estrito ou agravo (caso das ações penais originárias), sendo também contestada mediante habeas corpus a “decisão” que recebe a denúncia nos termos do artigo 648, I, do CPP”. (ROBERTO, Welton. 2021, p. 151)

Dentro de um processo penal acusatório constitucional, quando os indícios de autoria e materialidade não estão confirmados por um juízo de certeza, não deve(ria) o delegado indiciar. Quando, além disso, não há uma certeza ministerial acerca da acusação, não deve(ria) o Ministério Público denunciar. E nesta mesma toada, quando o juiz não tem certeza da presença da justa causa penal e dos elementos mínimos para a deflagração do processo penal, não deve(ria) receber a denúncia.

Nesse contexto, quando presente a dúvida na fase de recebimento da denúncia, aplicando o famigerado princípio do “in dubio pro societat”, juízes têm recebido a denúncia, abrindo o processo penal para que o fato seja, dentro do processo, discutido, o fazendo em prol da sociedade. Um erro. Outrossim, ao acusado deve ser dado o direito de participar efetivamente de todos os atos processuais que tenham potencial de influenciar não só na decisão final, mas na própria vida social do indivíduo, haja vista que, via de regra, o fato de responder a um processo penal hoje em dia já traz numerosas consequências ao indivíduo, do ponto de vista social.

“Processo penal é o procedimento em contraditório significativo, em que é garantido às partes (acusação e defesa), a paridade simétrica de armas, a efetiva participação e influência, em todas as etapas de construção participativa do acertamento do Caso Penal (premissa normativa e fática), materializadas por decisão judicial motivada e limitada ao material submetido ao prévio contraditório (não surpresa)” (ROSA, Alexandre Morais da. 2021, p. 152)

O princípio do in dubio pro societat não possui previsão legal, tratando-se de uma construção da doutrina que, erroneamente, conduz algumas decisões brasil a fora. Discutir a aplicação de tal princípio quando do recebimento da denúncia é de extrema importância, evitando que a crise processual penal, nesse sentido, ganhe proporções maiores e que processos penais não sejam deflagrados sem a mínima análise possível, rechaçando os despachos automáticos de recebimento da denúncia.

“Também na mesma linha, o Min Lewandowski ressaltou a distinção feita pelo Min Celso de Mello de que a presunção de inocência tem assento constitucional enquanto o princípio do in dubio pro societat seria, no máximo, um adágio forense. Portanto, por qualquer ângulo que se olhe, o in dubio pro societat é de insustentável e de errônea (e desnecessária) invocação” (LOPES JR, Aury. 2021, p. 886)

Vale dizer que na fase de recebimento da denúncia, via de regra, o réu não fala antes do recebimento, salvo as exceções dos procedimentos especiais. Isso impede o exercício do contraditório, sobretudo na perspectiva do contraditório reflexo, sendo o arcabouço da paridade de armas

“A denúncia articulada em juízo deve propiciar ao acusado a plena capacidade de desenvolvimento de sua tese e estratégia defensiva, por corolário reflexo da acusação fática penal que lhe foi imputada, sob pena de já neste momento ter manchado a marcha processual no tocante ao princípio paritético" (ROBERTO, Welton. 2021, p. 150)

Ou seja, ao réu não é permitido rebater a acusação antes do pronunciamento jurisdicional. Isso viola a paridade de armas no âmbito processual, vez que o réu só falará após o recebimento da denúncia, oportunidade em que já terá se tornado réu, mesmo que a denúncia não esteja acompanhada de elementos mínimos aptos a ensejar o processo em si, ocasião de ocorrência dos despachos automáticos de recebimento. Possível solução para o caso é debatida pelo professor Aury Lopes JR:

“A mesóclise da discórdia contida no artigo 396 não constava no Projeto de Lei nº 4.207/2001 e gerou grande surpresa e decepção ao ser inserida às vésperas da promulgação da nova Lei. O projeto desenhava uma fase intermediária, há muito reclamada pelos processualistas, de modo que a admissão da acusação somente ocorreria após o oferecimento da defesa (o ideal seria uma audiência, regida pela oralidade). Era um juízo prévio de admissibilidade da acusação, para dar fim aos recebimentos automáticos de denúncias infundadas, inserindo um mínimo de contraditório nesse importante momento procedimental” (LOPES JR, Aury.2021, p. 809)

Vale ainda destacar que o Ministério Público, no processo penal, deve(ria) ser tratado como parte, assim como o acusado, possuindo as mesmas funções dentro do jogo processual. Invocar o papel ministerial de defensor da sociedade para justificar privilégios acusatórios é um erro e não cabe no atual modelo acusatório que se pensa (ou deveria pensar) o processo penal.

“A noção de contraditório precisa ser revisitada, já que não significa apenas ouvir as alegações das partes, mas a efetiva participação e influência, com paridade de armas, na construção participativa e dialética do provimento judicial. Rompe-se com a visão de que a simples participação dos sujeitos (juiz, Ministério Público, acusado e defensor) possa efetivar o status de contraditório. É preciso a efetiva participação daqueles que sofrerão os efeitos do provimento final (concernidos), apurando-se o melhor argumento em face do Direito e do Caso Penal, na via intersubjetiva, sem privilégios e surpresas decisórias” (ROSA, Alexandre Morais da. 2021, p. 154)

É preciso uma melhor análise acerca do tema, principalmente sobre a necessidade de fundamentação plausível no momento do recebimento da denúncia, além de construir a necessidade de participação do réu após a formalização da acusação e antes do recebimento da denúncia, em obediência ao contraditório reflexo, corolário da paridade de armas no âmbito do processo penal.

“Afinal, considerando que essa decisão representa o marco deflagrador da persecutio criminis in iudicio, além de ser causa de interrupção da prescrição e de possível fixação da competência por prevenção, elevando o status do agente de indiciado a acusado, não há como não negar que se trata de importante decisão judicial, e não de mero despacho, daí por que é indispensável a fundamentação por parte da autoridade judiciária competente, sob pena de violação ao art. 93, inciso IX da Constituição Federal” (LIMA, Renato Brasileiro de. 2020, p. 1407)

Nesta senda, os tribunais superiores por algumas vezes se manifestaram acerca da aceitação do in dubio pro societat quando do recebimento da denúncia (STJ: RHC 120.607/MG; HC 465.240/PR. STF: AO 2.275; AO 2.075), reforçando a necessidade e importância de maior discussão do tema, visando mudar tais entendimentos, sob pena de contribuir com o crescimento da crise do processo penal, que cada vez mais retira e viola direitos e garantias. “Mais do que um flagrante atentado contra a regra constitucional de se fundamentar todas as decisões, tal posicionamento resulta em franco desrespeito ao princípio da paridade de armas no processo penal.” (ROBERTO, Welton. 2021, p. 151)

 

Notas e referências

BRASIL, Constituição da República, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal, 1988.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 18º Edição. São Paulo. Saraiva, 2021.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Estratégico: De acordo com a teoria dos jogos e MCDA-C. 1º Ed. Florianópolis/SC. Emais, 2021.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume Único. 8º edição. Salvador. Juspodivm, 2020

ROBERTO, Welton. Paridade de armas no processo penal. 2º edição. Belo Horizonte. Fórum, 2021.

 

 

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