A aplicação da Justiça Restaurativa Sistêmica como meio de regaste da lei do pertencimento nos crimes sexuais intergeracionais

02/02/2020

A violência doméstica bem como os crimes sexuais são realidades vividas em muitas famílias. Muitas vezes vivenciadas gerações após gerações, sem receber a devida atenção e consequentemente sem a quebra do ciclo da violência dentro do seio familiar. O conceito de família na atualidade, é um conceito relativamente novo em seu aspecto histórico. A infância que tanto dedica-se na modernidade em proteger nem sempre foi tratada dessa maneira. Os crimes sexuais intrafamiliares, em sua maioria seguem o padrão de pai-filha, irmão-irmã e tio-sobrinha. As vítimas em sua maioria são meninas (crianças) e mulheres, que têm uma convivência considerável com seus abusadores devido a relação familiar, tornado mais complexo a abordagem do crime no quesito psicológico, mas também factual. 

O presente artigo visa propor a adoção da justiça restaurativa sistêmica como meio alternativo de resolução dos crimes sexuais, e neste caso específico, intrafamiliar que muitas vezes se caracteriza como intergeracional a fim de acabar com a perpetuação da violência no sistema familiar. Para tanto, busca-se a integração da vítima e o agressor no processo, a fim de respeitar a lei do pertencimento de Bert Hellinger, bem como alcançar a resolução do conflito de forma satisfatória para a vítima e sem excluir de forma brusca, na medida do possível, o agressor do sistema familiar e social. Adota-se também, a visão de vítima e perpetradores através da exposição de Franz Ruppert a respeito do Movimento Simbiótico entre ambos a fim de compreender mais a fundo o comportamento psíquico das duas posições. Ademais, não é pretensão do presente trabalho romper e negar as penas já destinadas aos crimes sexuais no ordenamento jurídico pátrio. Visa somente uma proposta complementar, para que se integre a vítima e o agressor no processo penal com o objetivo de encontrar uma resolução favorável para ambas as partes.

 

OS CRIMES SEXUAIS E SUA RELAÇÃO COM A FAMÍLIA

A família é o primeiro meio social do indivíduo, representa a sociedade de forma micro. Nos primeiros anos de vida de qualquer indivíduo é base fundamental e, é a partir dela que se aprende a se relacionar com o mundo externo.

Em seu aspecto histórico foi somente no entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII, que a criança conquista um lugar junto dos seus pais, lugar que não poderia ter aspirado no tempo em que o costume mandava que fosse confinada a estranhos. Essa volta das crianças ao lar foi um grande acontecimento: ela deu a família no século XVII sua principal característica, que a distinguiu das famílias medievais.[1]

Ademais, a família moderna caracteriza-se por toda a energia do grupo familiar ser consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambição coletiva: as crianças, mais do que a família.[2] Observa-se que a relação familiar tendeu sempre a mudanças na medida em que a mesma mudou sua relação com a criança. A proteção reservada para as crianças, garantidas via constituição na atualidade, nem sempre foram realidades.

De acordo com a teoria do Inconsciente Coletivo, todas as pessoas já nascem com uma bagagem de conhecimento resultante de todas as experiências vivenciadas pela espécie humana ao longo de sua história. As pessoas teriam acesso a este acervo da Humanidade - o próprio inconsciente coletivo.[3] Portanto, inconscientemente estamos fadados a repetição guiados pelo inconsciente coletivo social. Mas também de nossos sistemas familiares, já que a mesmas são formadoras da sociedade.

há séculos vimos sendo condicionados pela nacionalidade, a casta, a classe, a tradição, a religião, a língua, a educação, a literatura, a arte, o costume, a convenção, a propaganda de todo gênero, a pressão econômica, a alimentação que tomamos, o clima em que vivemos, nossa família, nossos amigos, nossas experiências — todas as influências possíveis e imagináveis — e, por conseguinte, nossas reações a cada problema são condicionadas[4]

A visão sistêmica de Hellinger nos apresenta não mais o indivíduo visto de forma isolada, mas como parte de um todo, no caso, a família. Como membro de um sistema, os indivíduos que o compõe exercem influência nos demais. Para que haja harmonia no sistema familiar Hellinger apresenta as chamadas Ordens do Amor que são respectivamente: pertencimento, equilíbrio e ordem.

O Direito Sistêmico é entendido como a aplicação das ordens do amor de Bert Hellinger ao direito, a fim de proporcionar uma nova forma de perceber os vínculos entre os indivíduos e grupos tutelados pelo direito.[5] A aplicação das Constelações Familiares dentro do Judiciário é o que ficou conhecido como Direito Sistêmico, expressão criada pelo juiz brasileiro Sami Storch, pioneiro no uso dessa filosofia no Tribunal de Justiça da Bahia.[6]

Storch, deu início a aplicação das constelações familiares como uma dinâmica a fim de auxiliar nas resoluções dos conflitos e realizações de acordos. Dessa maneira, o direito sistêmico se apresenta como um estudo que humaniza a prática do judiciário, o qual, empodera as partes, para que resolvam seus próprios problemas ou ainda sentirem-se plenos em relação a sentença promulgada.[7]

 

RESPEITO A LEI DO PERTENCIMENTO NO PROCESSO PENAL REFERENTE AOS CRIMES SEXUAIS

O pertencimento nas relações que estabelecemos, de acordo com Bert Hellinger é de fundamental importância. O todo tem prioridade em relação às partes e a desordem é causada a partir da exclusão de algo ou alguém. A ordem espiritual superior que concede a todos os que pertencem o mesmo direito de pertencimento não tolera exclusões. Se, mesmo assim, isso ocorrer, ela coloca um movimento em ação que resgata o excluído utilizando outro membro da família como representante. [8]

No que tange ao direito penal e especificamente ao processo penal nos crimes de ação penal pública, uma vez cometido o crime, o Estado assume a função de processar por meio do ministério público, e o judiciário a função de conduzir esse processo até sentença, onde a vítima, nesse caso não é parte processual.[9] A vítima mesmo sendo a parte mais interessada pela punição ou não do agressor, acaba por não pertencer ao processo.

A vingança privada perpetuou nosso sistema por muitos anos, o Código de Hammurabi é referência histórica neste aspecto. O código na parte alusiva aos delitos e às penas, consagra princípios de autotutela e retaliação e penas ligadas à mutilação e aos castigos físicos.[10] Com a ascensão dos Estados democráticos de Direito em que sua organização se sustenta em uma Constituição[11], o Estado atua como representante da sociedade e passa a deter o Jus puniendi, o direito de punir. O Estado passar a ser o representante da vontade social, que os Estados Contemporâneos a partir da Constituição Mexicana de 1917 passam a dedicar-se na realização do bem comum e dessa forma, o Estado passa a ser encarado como instrumento de toda a sociedade e busca representar o desejo da coletividade.[12]

o sentimento, portanto, é o motivador da criação legislativa, sentimento visto como uma expressão coletiva do querer, mas que tem início no indivíduo. Neste ponto, os valores tomam importância fundamental, pois é a partir deles que o Direito se exterioriza. Por isso é importante a observação e o questionamento de toda a produção legal, mesmo as já existentes, especialmente no momento de sua aplicação, buscando identificar a quem elas protegem e interessam, com qual objetivo foram elaboradas e se, em última análise, são exteriorizações do sentimento social (valor) ou do ressentimento de grupos e classes (desvalor).[13]

É necessário, portanto, a reflexão e análise de que desejo social está sendo exteriorizado a partir das penas dispostas através do direito, e se tal exteriorização é condizente com a sociedade em que esse mesmo direito opera. Na modernidade, como uma alternativa da pena privativa de liberdade, surge a Justiça Restaurativa, que possui o interesse de restaurar e reparar as pessoas envolvidas no caso concreto. No Brasil o marco na concretização de um modelo da justiça restaurativa é a lei 9.099/95 (Juizados Especiais) que foi possível através da Resolução 225/2016 do CNJ[14].

É fundamental a observação de que a vítima e o agressor nos crimes sexuais intrafamiliares são ligados sistemicamente uns aos outros, ou seja, são parte de um mesmo sistema familiar. De acordo com Hellinger

quando essa conexão fica clara, compreendemos o que precisa acontecer para que o sistema volte ao equilíbrio. Se trabalho com um agressor, confronto-o com a sua culpa. Nem é preciso dizer isso. No entanto, as pessoas supõem que algo vá mudar para a vítima se o agressor aceitar a culpa e o castigo. Na prática concreta, nada muda. Uma vez fora da situação, as vítimas de incesto devem agir por conta própria para libertar-se do emaranhamento, independentemente dos atos do agressor; mas precisam renunciar à ideia de vingança.[15]

Hellinger em alguns casos, admite a necessidade de ir até a justiça para tentar solucionar o conflito, mas de acordo com o autor, o sofrimento das crianças se agrava quando têm de testemunhar contra os pais, nos casos de incesto. [16] O autor ressalta a importância de a criança devolver a culpa aos pais do ocorrido, a fim de se libertar.

tenho percebido que não é adequado, nem possível para uma criança, perdoar os pais por incesto. Mas ela poderá dizer: ―O que vocês fizeram foi péssimo para mim e deixo para vocês as consequências [...]. Dessa forma, a criança devolve a culpa aos pais, a quem ela pertence, e desliga-se da responsabilidade deles. Não é preciso que a criança acumule acusações contra os pais: para que ela se liberte, basta que tudo fique claro.[17]

Nos crimes sexuais intrafamiliares, em consonância com Hellinger, o castigo destinado ao agressor não basta a vítima. Ao ser visto através do sistema familiar, uma vez que o castigo implica na exclusão do indivíduo do sistema familiar a totalidade do sistema é prejudicada.

é preciso compreender que a violência não é uma causa, mas um efeito, um alerta de que alguma coisa não está bem. Importante saber identificar qual a mensagem do ato violento, pois, a partir de um olhar sistêmico, a violência é sempre um pedido de ajuda. O que está oculto, o motivador do desvio, é que precisa ser decifrado, não por terceiros, mas pelo próprio sujeito e isso, certamente não se consegue por meio do aprisionamento.[18]

O sistema, como organismo vivo voltará a atuar a fim de estabelecer o equilíbrio da lei do pertencimento e dessa forma lembrar da parte excluída, que deseja ser lembrada e integrada.

quando o incesto é um problema familiar, a solução só é possível se a complexidade da situação de toda a família for claramente analisada. Nesses casos, os filhos devem ter a coragem de responsabilizar ambos os pais. Em sua forma mais comum, o incesto representa a tentativa de reequilibrar o dar e o receber na família — geralmente, mas nem sempre, entre os pais. Se assim for, o agressor foi privado de alguma coisa: por exemplo, o que ele faz pela família não merece o devido reconhecimento. Sob essa forma, o incesto procura corrigir o desequilíbrio entre o dar e o receber.[19]

É de fundamental importância, que se observe o problema desde sua causa, pois a violência em si, é apenas o resultado. Ao prosseguir com a ação penal, excluindo a vítima e o agressor que no caso específico, possuem laços familiares deixa-se a causa de lado e observa-se somente o resultado. Dessa forma adia-se o olhar devido ao sistema em que ambos estão inseridos e ao negar a causa nega-se a probabilidade reparação e equilíbrio de todo um sistema familiar.

 

 O Movimento Simbiótico entre perpetradores e vítimas

De acordo com Franz Ruppert, somos todos perpetradores e vítimas na medida em que impomos nossas vontades, consumimos de forma exagerada, esgotamos recursos. Por sua vez, assumimos a posição da vítima quando adoecemos ou exercemos alguma atividade desgostosa que necessite de nosso tempo e dedicação, ambos os papéis seja o de vítima ou perpetrador, fazem parte de nossa condição como seres humanos. A dinâmica entre perpetradores e vítimas tende a ser mais unilateral quando envolve experiências traumáticas na medida em que cada indivíduo se vê apenas como vítima e julga que os outros são agressores.[20]

A estrutura psíquica dos perpetradores resulta de traumatizações, ou seja, desenvolvem-se como um meio para garantir a sobrevivência de quem vivenciou o trauma. Às estruturas de perpetradores são correspondentes com as estruturas psíquicas da vítima. Neste sentido, explica Ruppert

perpetradores negam os próprios delitos, porque outras pessoas negaram sua condição de vítimas. Perpetradores agem sem consideração, porque outras pessoas não tiveram consideração com eles. Perpetradores acham normal a violência, porque outras pessoas julgaram normal a violência contra eles. Se antes eram os mais fracos, agora buscam outras pessoas ainda mais fracas que possam dominar. Porque estão cheio de medo, expõem outras pessoas a medos mortais. [21]

Dessa maneira, observamos que perpetradores, muitas vezes já estiveram anteriormente na posição de vítima. Alguém se torna vítima quando seus limites físicos, psíquicos e sociais são invadidos por força da natureza ou perpetradores.[22] A vítima entra em um estado de rigidez visto que, suas funções vitais foram severamente limitadas e ameaçadas. Para garantir sua sobrevivência usa do mecanismo da repressão e bloqueia, portanto, seus impulsos saudáveis de vida.

O movimento simbiótico se apresenta de uma forma mais dolorida quando vivenciado entre pais e filhos (crianças) na medida em que deveriam ser protegidos pelos mesmos. Os filhos são dependentes dos pais e por sua vez a vítima ama seu agressor. A fragmentação psíquica da vítima é inevitável: tende a negar a própria condição de vítima a fim de permanecer na relação com o agressor, que permanece infringindo-lhe danos.

nesses casos os filhos desenvolvem a “introjeção do perpetrador”, identificando-se com ele. A introjeção do perpetrador torna-se uma parte inimiga dentro de outra parte. Ela fica adormecida no interior da criança agressiva, com um ‘destruidor interior’, e apenas mais tarde e manifesta numa variada gama de comportamentos destrutivos. Por meio de sua adesão à agressão destrutiva do perpetrador (a ‘parte inimiga’), a criança rebelde transforma-se numa sabotadora interior, e passa a atuar como um fiel assistente do perpetrador, que então pode permanecer num segundo plano. O sabotador interior dirige seus impulsos agressivos principalmente contra o próprio ‘eu’, dominado por medos e preso ao papel de vítima.”[23]

O Resultado dessa dinâmica é devastadora pois, através das introjeções mencionada acima as vítimas tornam-se agressivas de si mesmas que por sua vez podem transformar-se em perpetradores contra pessoas incapazes de se defender. Alimenta-se assim, o ciclo da violência intrafamiliar ou mesmo de maneira externa.

As sanções destinadas aos crimes sexuais apresentam uma “solução” em seu aspecto social, mas os enredamentos que tais condutas propiciam tanto para às vítimas como perpetradores, é demasiado intenso para não ser visto, e até negado em alguns casos. É mais que necessário o desenvolvimento e fortalecimento de programas públicos como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)[24], que destinam seu tratamento a diversas faixas etárias para tratar de transtornos mentais graves ou gravíssimos ou até mesmo pelo uso de substâncias psicoativas de forma gratuita, destinada e capacitada especialmente para lidar com os casos em questão.

 

Justiça Restaurativa sistêmica e sua aplicação nos crimes sexuais

A justiça restaurativa representa uma técnica adotada pelo judiciário que possibilita a aproximação da vítima e o agressor e através dela, visa a resolução de conflitos de forma pacífica. O CNJ, considerando as recomendações das Nações Unidas de implementação de uma Justiça Restaurativa em seus países membros institui a Justiça restaurativa no Brasil através da Resolução 225/2016. De acordo com o art. 1º Da resolução que trata da Justiça Restaurativa A Justiça Restaurativa constitui-se um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência [...].”[25]

A justiça Restaurativa é aplicável através dos Juizados Especiais, o Juizado Especial Criminal (JECRIM), abrange apenas condutas de menor potencial ofensivo, não abarcando dessa forma, crimes sexuais.  A resolução 2002/12 da ONU apresenta princípios básicos para a utilização do recurso da justiça restaurativa na seara criminal. De acordo com tal resolução os programas de Justiça restaurativa podem ser usados em qualquer estágio do sistema de justiça criminal, de acordo com a legislação nacional.[26] O modelo Restaurativo adotado no Brasil, encontra várias limitações, uma delas se apresenta na judicialização, tendo em vista a necessidade de homologação de um acordo, em juízo. A obrigatoriedade de ambas as partes, vítima e ofensor comparecem no processo restaurativo,[27] também se apresenta como uma dificuldade.

nos parece que esse modelo está centrado demais na reparação do dano causado à vítima, esquecendo-se do infrator, que traz consigo questões que precisam ser vistas e não poderão, por não haver a possibilidade do encontro. Pensamos ser possível aplicar a Justiça Restaurativa sem a presença da vítima, tendo como exemplo, o campo da execução penal. [28]

Como o Juizado Especial Criminal, abarca somente as infrações de menor potencial ofensivo, exclui-se a possibilidade de abranger os crimes sexuais. Propõe-se a adoção do procedimento restaurativo na execução penal, com vistas a ampliar o processo restaurativo e a atender o recluso e seus familiares, a Constelação Familiar se apresenta como recurso na adoção de medidas restaurativas.

no caso em questão, tanto “vítima” quanto “ofensor”, poderão olhar, pelas lentes da Constelação Familiar, as dinâmicas ocultas por trás de um conflito. Esse “novo olhar” poderá permitir que as partes ressignifiquem o mesmo e abandonem as posturas de vítima-agressor-salvador, que estão adotando.[29]

Ao visualizar o conflito através da Constelação Familiar, há a possibilidade de ressignificação do conflito, uma vez nos crimes sexuais intrafamiliares ambos os lados, tanto “vítima” quanto o “agressor” fazem parte de um mesmo sistema e ambos estão a serviço do mesmo a fim de restabelecer o equilíbrio.

É primordial destacar a dificuldade, tanto no poder judiciário como a própria família em lidar com tais conflitos. Uma vez que é extremamente delicado e difícil para a vítima denunciar o próprio familiar, os casos de violência sexual que chegam até o conhecimento do Estado são irrisórios quando comparados com a estimativa real realizadas por pesquisas.

de acordo com a pesquisa do IPEA realizada com base nos dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Os registros do Sinan demonstram que 89% das vítimas são do sexo feminino. Esses números mostram que 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima.[30] 

Ao adotar medidas restaurativas durante a ação penal integrando a vítima e ofensor, e, por conseguinte na execução da pena nos crimes sexuais. Ao dar voz a ambas as partes na ação penal, e mesmo com a execução da pena privativa de liberdade realizar medidas restaurativas, há a possibilidade de ressignificação do conflito. Uma vez que, o ofensor nos casos intrafamiliares, sendo excluído do sistema familiar ou não, não deixará de ter laços com a vítima e os demais familiares. Como já exposto, se a exclusão ocorre o sistema voltará a trabalhar para a integração e equilíbrio do mesmo. Não é exigível, muito menos sensato que a vítima e o ofensor retomem laços, da mesma forma que não é necessário excluí-lo totalmente do sistema familiar. 

traumas não resolvidos e escamoteados continuam atuando nos sistemas. Com frequência eles reaparecem, de um modo súbito e paradoxal, sob a forma de sintomas nos próprios envolvidos ou em seus descendentes. Eles pressionam para vir à luz. Depois de novamente vistos e mencionados, podem ser dissolvidos através da compreensão, de uma reverência diante do destino, do acolhimento cordial das pessoas traumatizadas e de uma atitude consciente de relegá-los ao passado[31].

É necessário, portanto, que se olhe para a situação e por intermédio da Constelação para o sistema familiar, mas também se volte olhares para o sistema social. A proteção dada às crianças no seio familiar é algo novo se analisado historicamente. Por muito tempo, a infância não obteve tratamento diferente da fase adulta, sendo consideradas mini adultos. Tais aspectos são perpetuados ainda na atualidade Hellinger define a consciência coletiva original como arcaica, tal movimento é inconsciente, geralmente ligado aos instintos mais primitivos de grupo:

dentre os dois tipos de consciência, a consciência coletiva inconsciente é, evidentemente, a original, a arcaica. Por assim dizer, ela se originou antes que o indivíduo pudesse se diferenciar e seguir uma consciência pessoal. É a consciência de um grupo. Esse grupo é mantido unido através de uma instância em comum, que zela para que nessa coletividade sejam mantidas certas ordens, para que a violação dessas ordens seja expiada e assim tenta anular a violação ou, pelo menos, que sejam trazidos à memória aqueles que sofreram injustiça, fazendo com que seu destino seja repetido por outros.[32]

A repetição, guiada pelo campo da consciência coletiva que pertence aquele sistema familiar atua com a finalidade de gerar pertencimento a todos, dessa forma, estabelece uma nova chance de integração. Ademais, quando o Estado estende as possibilidades de atuação da justiça restaurativa e a possibilidade de pertencimento das partes na ação penal, atua junto com o sistema familiar a fim solucionar o conflito e estabelecer o equilíbrio, não somente no presente, mas de maneira intergeracional. 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os crimes sexuais intrafamiliares de acordo com a visão de Bert Hellinger atuam com o objetivo de restabelecer o equilíbrio entre o dar e receber, bem como o restabelecimento do pertencimento nos sistemas familiares. Dessa forma, oferece uma segunda chance de olhar novamente para o que foi excluído no passado. Com a advento da Justiça Restaurativa a mesma, possibilita a adoção de outras medidas além das penas que constam no ordenamento jurídico pátrio. Conforme a resolução 2002/12 da ONU às medidas restaurativas podem ser usadas em qualquer estágio do sistema de justiça criminal de acordo com a legislação nacional. O marco da institucionalização da justiça restaurativa foi a criação dos juizados especiais. Na seara criminal os juizados só abrangem condutas de menor potencial ofensivo, excluindo os crimes sexuais bem como os demais.

É necessário, portanto, a adoção de medidas restaurativas nos crimes sexuais que possibilitem a integração das partes na ação penal, que na atualidade são destinadas somente ao Estado, bem como a continuidade dessas medidas na execução penal. Os crimes sexuais em sua grande maioria acontecem no seio familiar, e o cumprimento ou não da pena não faz com que tais laços sejam rompidos. Os movimentos simbióticos que permeiam as famílias, tanto vítimas quanto perpetradores são intensos e um tanto quanto destruidores se não olhados de forma sistêmica e terapêutica. É sensato uma maior sensibilidade do poder judiciário ao lidar com tais situações, para que ao final do cumprimento da pena o convívio seja pacífico. Não é exigível a retomada de laços familiares de forma afetiva, mas é necessário a adoção do olhar sistêmico, através do pertencimento das partes no processo e a adoção do recurso da Constelação Familiar na execução penal a fim de que todo o sistema familiar seja visto juntamente com a situação para que a mesma não volte a se repetir nas gerações futuras.

 

Notas e Referências

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[1] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. p. 189.

[2] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. p. 189

[3] ANDRADE, Lêda de Alencar Araripe e. A família e suas heranças ocultas. Fotaleza: Edição da    Autora, 2008

[4]KRISHNAMURTI, Jiddu. Liberte-se do passado. São Paulo: Editora Cultrix, 1989. p.13

[5]OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; GIRARDI, Maria Fernanda Gugelmin. Direito Sistêmico: Aplicação das Leis Sistêmicas de Bert Hellinger ao Direito de Família e ao Direito Penal. 2. ed. Joinville, Sc: Manuscritos Editora, 2018. p 43.

[6] MESSIAS, Jefferson. Direito sistêmico e as constelações familiares. Justiça em Revista, São Paulo, p.1-16, out. 2018. Bimestral. Disponível em: <http://www.jfsp.jus.br/documentos/administrativo/NUCS/revista/2018/JR0067.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2019.

[7] O INÍCIO DA APLICAÇÃO DO DIREITO SISTÊMICO. Congresso catarinense de direito civil e processual civil.

[8] HELLINGER, Bert. A cura: Tornar-se saudável, permanecer saudável. Belo Horizonte, Mg: Editora Atman, 2014. p.24

[9] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; GIRARDI, Maria Fernanda Gugelmin. Direito Sistêmico: Aplicação das Leis Sistêmicas de Bert Hellinger ao Direito de Família e ao Direito Penal. 2. ed. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018. p. 123

[10] WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história do direito. 8. ed. 2ª tir. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. p. 34.

[11]PASOLD, Cesar Luiz. A função social do Estado contemporâneo. 4 ed. rev. e ampl. Itajaí, SC: Ed. da Univali, 2013. p. 32.

[12] PASOLD, Cesar Luiz. A função social do Estado contemporâneo. 4 ed. rev. e ampl. Itajaí, SC: Ed. da Univali, 2013. p. 35-36.

[13] OLDONI, Fabiano. Propriedade ilícita: jus puniendi e a prescrição aquisitiva. 2010. 98 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciência Jurídica, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2010. Acesso em 19 de mai. http://siaibib01.univali.br/pdf/Fabiano%20Oldoni.pdf

[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.p. 365

[15] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. A simetria oculta do amor: Por Que o Amor Faz os Relacionamentos Darem Certo. São Paulo: Editora Cultrix, 2008. p. 86

[16] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. A simetria oculta do amor: Por Que o Amor Faz os Relacionamentos Darem Certo. São Paulo: Editora Cultrix, 2008. p. 87

[17] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. A simetria oculta do amor: Por Que o Amor Faz os Relacionamentos Darem Certo. São Paulo: Editora Cultrix, 2008. p. 86

[18] OLDONI, Everaldo Luiz; OLDONI, Fabiano; LIPMANN, Márcia Sarubbi. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018. p. 18

[19] HELLINGER, Bert; WEBER, Gunthard; BEAUMONT, Hunter. A simetria oculta do amor: Por Que o Amor Faz os Relacionamentos Darem Certo. São Paulo: Editora Cultrix, 2008. p. 84

[20] RUPPERT, Franz. Simbiose e autonomia nos relacionamentos: o trauma da dependência e a busca da integração pessoal. São Paulo: Cultrix, 2012. p. 148

[21] RUPPERT, Franz. Simbiose e autonomia nos relacionamentos: o trauma da dependência e a busca da integração pessoal. São Paulo: Cultrix, 2012. p.150

[22] RUPPERT, Franz. Simbiose e autonomia nos relacionamentos: o trauma da dependência e a busca da integração pessoal. São Paulo: Cultrix, 2012. p. 150.

[23]RUPPERT, Franz. Simbiose e autonomia nos relacionamentos: o trauma da dependência e a busca da integração pessoal. São Paulo: Cultrix, 2012 p.154-155.

[24] CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS). Disponível em: <http://www.saude.gov.br/noticias/693-acoes-e-programas/41146-centro-de-atencao-psicossocial-caps>. Acesso em: 21 jun. 2019.

[25] BRASIL. Resolução nº 225 de maio de 2016. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf>. Acesso em:22 jun. 2019.

[26] OLDONI, Everaldo Luiz; OLDONI, Fabiano; LIPMANN, Márcia Sarubbi. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018. p. 32

[27] OLDONI, Everaldo Luiz; OLDONI, Fabiano; LIPMANN, Márcia Sarubbi. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018.p. 34

[28] OLDONI, Everaldo Luiz; OLDONI, Fabiano; LIPMANN, Márcia Sarubbi. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018. p 35.

[29] OLDONI, Everaldo Luiz; OLDONI, Fabiano; LIPMANN, Márcia Sarubbi. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville, SC: Manuscritos Editora, 2018. p 132.

[30]70% DAS VÍTIMAS SÃO CRIANÇAS E ADOLESCENTES: oito dados sobre estupro no Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054>. Acesso em: 24 jul. 2019

[31] SCHNEIDER, Jakob Robert. A prática das constelações familiares. Patos de Minas: Editora Atman, 2007.p. 49.

[32] HELLINGER, Bert. A fonte não precisa perguntar pelo caminho. Patos de Minas: Atman, 2005. p. 243.

 

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