A água como bem de uso comum do povo

25/03/2018

Coluna: Natureza Jurídica/ Autor: Wagner Carmo

Introdução

A água é um recurso natural indispensável a Vida no Planeta Terra. Versa-se sobre um recurso disponível na natureza que é essencial ao Ser Humano e ao ecossistema. A água é um bem público de livre apropriação e fruição, com valor ambiental, econômico e social.

No dizer de Paulo de Bessa Antunes[1] a água é um elemento indispensável a toda e qualquer forma de vida. Diz que sem a água é impossível a vida e, ainda, que por mais que a afirmação seja absolutamente óbvia e elementar, é incapaz de sensibilizar as pessoas e as comunidades sobre a importância de proteger e preservar as águas.

Na obra Cuidando do Planeta Terra – uma estratégia para o futuro da vida[2], datada de 1991,há um importante alerta sobre o uso insustentável do recurso hídrico. O estudo destaca que a retirada da água no meio ambiente aumentou mais de 35 vezes durante os últimos três séculos e projetou duas hipóteses: a) que a retirada de água do meio natural tende a aumentar até 35% para o ano 2000 e, b) que os níveis atuais de uso de água doce não poderão ser mantidos se a população humana atingir 10 bilhões em 2050.  

A essencialidade da água para a vida no planeta terra e a multiplicidade de usos pela combinação entre o aumento da população mundial e a crescente demanda nos setores da agricultura e da indústria resultam em seis dilemas: a) crise de escassez; b) conflito de interesse; c) perturbação social; d) impedimento ao desenvolvimento econômico; e) impedimento à preservação ambiental e, f) competição institucional[3]

Os dilemas sobre o uso da água passaram a exigir o reconhecimento de que o recurso natural é finito, portanto esgotável. Revelou, inclusive, que os problemas que afetam a preservação, a conservação e o uso sustentável da água são de ordem internacional.

A Conferência Internacional sobre água e desenvolvimento[4], realizada em Dublim, Irlanda, ocorrida no ano de 1992, declarou que a escassez e o mau uso da água doce representam uma séria e crescente ameaça ao desenvolvimento sustentável e a proteção do Meio Ambiente; que a saúde e o bem-estar humano, a segurança alimentar, o desenvolvimento industrial e os ecossistemas estão em risco pela falta de gestão hídrica. Para tanto, a Conferência Internacional fixou os seguintes princípios relacionados com a água, como recomendação às nações:

  1. a água é um recurso finito e vulnerável, essencial para a manutenção da vida, do desenvolvimento e do meio ambiente.
  2. o desenvolvimento e a administração da água devem estar baseados em uma abordagem participativa, envolvendo os usuários, planejadores e elaboradores de políticas, em todos os níveis.
  3. a mulher desempenha um papel central na administração, na proteção e na provisão da água.
  4. a água tem valor econômico em todos os seus usos e deve ser reconhecida como um bem econômico.

A dominialidade da água

A Constituição Federal de 1988 adotou uma concepção moderna acerca da água. Inicialmente,compreendendo-a como um recurso natural, tratou de protege-la por meio dos princípios constitucionais relativos ao meio ambiente. Depois,caracterizando-a como um recurso econômico, elementar para o desenvolvimento socioambiental, implementou um sistema de gestão integrada dos recursos hídricos, de forma que se possa assegurar a proteção e o uso racional da água, passando da gestão de crise à gestão de risco.

Do ponto de vista infraconstitucional, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou a Política Nacional de Recursos Hídricos - Lei n.º 9.433/97. Pela citada norma, água foi reconhecida como um bem de domínio público.

A tônica da Lei n.º 9.433/97 subsome-se a regra de dominialidade dos recursos hídricos prevista na Constituição Federal[5], pois, o texto da Carta Magna estabelece que são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, a saber:

Art. 20. São bens da União:

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

Contudo, o Código Civil Brasileiro[6], ao classificar os bens, estabelece que os rios são bens públicos de uso comum, in verbis:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

Vê-se, pela literalidade, que há uma aparente contradição entre a Lei n.º 9.433/97 e o Código Civil, pois, na primeira norma a água é retratada como bem de domínio público e na segunda norma, a água e reconhecida como bem público, porém de uso comum do povo.

A exegese adequada e usualmente aplicada ao caso deve considerar a existência de dois valores distintos, pois, conforme leciona a Professora Lucia Valle Figueiredo, citada pelo Professor José Afonso Leme Machado[7], a água é um bem corpóreo e o meio ambiente é um bem incorpóreo.

A imbricação entre a água e o meio ambiente resulta na sentença de que a água não pertence ao Poder Público, e muito menos pode ser apropriada por pessoas naturais ou jurídicas. O fato de a água ser um bem de domínio público não representa ou significa que o Poder Público seja o proprietário da água. Para Jose Affonso Leme Machado, a dominialidade pública prevista na Lei n.º 9.433/97, não transforma o Poder Público Federal e estadual em proprietário da água, mas torna-o gestor desse bem, no interesse de todos.

A idéia de domínio público, contida na Lei n.º 9.433/97, não transmite para o Poder Público a propriedade da água, ao contrario, transforma-o em responsável pela gestão de um recurso pertencente ao povo. Por gestão, José Affonso Leme Machado explica tratar-se, dentre outras perspectivas, de dar acesso a água àqueles que não sejam proprietários dos terrenos em que as nascentes aflorem, àqueles que não estão em prédios à jusante das nascentes e àqueles que não são ribeirinhos ou lindeiros dos cursos d’água.

Pois bem, não sendo a água uma propriedade do Poder Público, a quem pertence à água? A resposta exige a compreensão de que a água é um bem ambiental, uma vez que é extraída do meio ambiente natural. Ultrapassada essa premissa, a titularidade da água deve ser discutida com base na ordem constitucional sobre meio ambiente contida no art. 225 da Constituição Federal e não pelo código civil ou pela Lei n.º 9.433/97.

Dissecando o art. 225, é possível concluir que o meio ambiente é um direito de todos e, sendo a água um bem ambiental, não pode simplesmente ser resumida como um bem de domínio público, já que, sendo extraída da natureza, revela um direito universal ao meio ambiente, devendo ser compreendida como um bem de uso comum do povo.

Conclusão

A conclusão de que a água é um direito ambiental e um bem de uso comum do povo possui como conseqüência a aplicação do conceito de cidadania ambiental, ou seja, o cidadão possui ao mesmo tempo o direito à água e o dever de conservá-la.   

De acordo com o art. 225 da Constituição Federal, a garantia ao meio ambiente sadio e equilibrado (leia-se a garantia de acesso e fruição à água potável) é um dever do Poder Público e da Coletividade. Logo, cabe ao Poder Público fomentar políticas públicas, democráticas e participativas para preservar e conservar a água. Já à Coletividade, o dever de participar e colaborar de forma profícua com a gestão, conservação, preservação e defesa dos recursos hídricos.

 

[1]ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 14ª ed. Atlas Editora: São Paulo, 2012.

[2]International Union for ConservationofNatureand Natural Resources, United NationsEnvironmentProgramme, World WideFund for Nature. Publicação conjunta de UICN--União Internacional para a Conservação da Natureza, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, WWW--Fundo Mundial para a Natureza, 1991

[3]Disponivel em http://www.gr.unicamp.br/penses/wp-content/uploads/2016/03/Escassez-de-%C3%A1gua-Aspectos-econ%C3%B4micos-sociais-e-ambientais.pdf. Acesso em 21 de mar. de 2018.

[4]Disponível em http://www.abcmac.org.br/files/downloads/declaracao_de_dublin_sobre_agua_e_desenvolvimento_sustentavel.pdf. Acesso em 21 de mar. De 2018.

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

[6]Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em 23 de mac. 2018

[7] MACHADO, José Affonso Leme. 21. ed. revisada, ampliada e atualizada. Malheiros Editores: São Paulo, 2013.

 

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