A advocacia pública como instrumento a serviço do interesse público primário e o direito subjetivo ao efetivo contraditório (CPC, art. 7º). Brevíssima reflexão – Por Augusto Barbosa Hackbarth

23/04/2017

O objetivo desse sucinto escrito, que não se confunde com um vislumbre acadêmico sobre o tema, consiste apenas em fornecer elementos para uma possível discussão acerca do mister constitucional da advocacia pública, do interesse público primário como pauta de agir do advogado público, e do efetivo contraditório que certamente deve reger o desenvolvimento de qualquer processo judicial.

A questão que formulo, para conduzir um possível debate, é a seguinte: haveria uma potencial tensão entre a promoção do interesse público primário, no âmbito do exercício típico da advocacia pública, e o princípio do efetivo contraditório a ser observado no processo civil (CPC, art. 7º) – este último também por imposição constitucional? Melhor expondo: o compromisso do advogado público com o interesse público primário pode, em certas condições, afetar o exercício do direito de defesa do interesse público dito secundário?

Inicio por uma brevíssima e simplista incursão no significado de interesse público primário e secundário:

“Interesse público ou primário é o pertinente à sociedade como um todo e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega à compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundário é aquele que atina tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada e que por isso mesmo pode lhe ser referido e nele encarna-se pelo simples fato de ser pessoa”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores: São Paulo, 2005) 

“O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário que seja parte da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas”. (BARROSO, Luís Roberto. Prefácio: O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a definição da supremacia do interesse público. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005)

Cláudio Granzotto, partindo de um critério de topologia constitucional, enxerga na advocacia pública algo maior que a mera atividade de consultoria e representação judicial da pessoa jurídica de direito público:

“A nossa Carta atual, não obstante tenha imposto funções distintas aos órgãos da Advocacia pública em sentido lato, os organizou em capítulo próprio. Nesse sentido, a busca da função específica de sua atuação deve estar atrelada à posição em que ocupa no cenário constitucional. Veja que se inserida em capítulo do Poder Executivo, a atividade de advogado estatal se limitaria simplesmente à consultoria e representação do ente vinculado, com todos os atributos que são inerentes ao referido poder, como por exemplo, a hierarquia. Contudo, a Magna Carta lhe reservou uma missão especial, inconfundível com qualquer outra função cometida aos órgãos dos tradicionais Poderes do Estado, na qual jamais fora aventada em Constituições passadas. Instituição essencial ao funcionamento da justiça. Mas no que consistiria essa finalidade específica? Inicialmente, esse sentido de justiça é amplo, não se referindo apenas à função típica exercida pelo Poder Judiciário, mas também “a justiça abrangente da equidade, da legitimidade, da moralidade". Assim, entendemos que a referida função consistiria num dever de sustentação e aperfeiçoamento da ordem jurídica, que se aplicando à advocacia de Estado consistiria na atividade de orientação, fiscalização, promoção e representação judicial. Isso significa que, ainda que o administrador, seja ele de qualquer instância hierárquica, se afaste da consecução dos ditames da ordem jurídica, deverá o advogado de Estado, no exercício de seu mister, restaurar o ato”. (GRANZOTTO, Cláudio. “Advogado de Estado: defesa do interesse público e independência funcional mitigada”, in <www.agu.gov.br/page/download/index/id/3431251>, acessado em 18/04/2017).

Não parece haver motivo para controvérsia. Advogado de Estado não é advogado de governo. Também por isso, o advogado público não tem compromisso com projetos de governo, mas como a promoção da justiça em seu mais elevado significado.

Ocorre que, em determinadas situações, pode surgir algum conflito - real ou aparente - entre os dois misteres típicos da advocacia pública: a promoção do interesse público primário e a defesa do erário em juízo.

A Lei do Juizado Especial da Fazenda Pública (Lei nº. 12.153/2009), que em seu art. 9º replicou comando já vigente na Lei nº. 10.259/2001, cria dever à fazenda pública demandada ao estatuir que “A entidade ré deverá fornecer ao Juizado a documentação de que disponha para o esclarecimento da causa, apresentando-a até a instalação da audiência de conciliação”.

O amplo espectro do comando normativo – “documentação de que disponha para o esclarecimento da causa” – não permite uma delimitação objetiva e segura do dever jurídico criado. Em alguns casos, porém, o conteúdo de determinado(s) documento(s) pode colidir obliquamente com a tese jurídica sustentada pela fazenda pública em sua manifestação processual. Nessa hipótese, surge questionamento aparentemente razoável acerca do papel primordial a ser desempenhado pelo advogado público.

Por certo, e é importante registrar de pronto, não se está a sustentar que o procurador fazendário possa/deva frustrar acesso a documento público relevante, de modo a impedir que se chegue à verdade processual. Essa não parece ser uma “opção”.

Leonardo Greco, abordando o dever de cooperação processual enfatizar:

“Expandindo o campo dessa influência, o Código, no artigo 6º[1], explicita um dos mais importantes deveres de todos os sujeitos do processo e especialmente do juiz, que é o dever de cooperação, para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. O dever de cooperação está associado à boa-fé (art. 5º) e implementa no processo a efetivação da solidariedade social, base ética de convivência pacífica dos cidadãos dentro do Estado de Direito (Constituição, art. 3º, inc. I), que exige de todos os agentes públicos, particularmente do juiz no processo, comportamento leal e previsível, que respeite as garantias fundamentais oferecidas às partes (contraditório, ampla defesa, paridade de armas etc.), assegurando-lhes em plenitude o exercício do direito de influir eficazmente na obtenção de uma decisão justa e prestando-lhes, nos limites impostos pela necessidade de preservar a sua imparcialidade, toda assistência e colaboração”. (GRECO, Leonardo. Contraditório efetivo. In: Revista Eletrônica de Direito Processual da UERJ – REDP. Volume 15. Janeiro a Junho de 2015 ISSN 1982-7636 PP 299-310) 

Além do que, não se pode perder de vista que “são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo (...) expor os fatos em juízo conforme a verdade” (CPC, art. 77, I); e não se olvide que a boa-fé será a baliza para todos aqueles que de alguma forma participam do processo (CPC, art. 5º; art. 489, §3º).

Nunca haverá, portanto, justificativa para fraudes ou manipulação de documentos, máxima que obviamente vale para qualquer litigante.

A escolha de uma linha de defesa específica, porém, implica refutar várias outras possíveis. A tese jurídica eleita reclama provas capazes de corroborá-la, e isso redunda necessariamente no descarte de documentos e/ou oitivas alheias à argumentação defensiva. Esses documentos, ditos alheios à linha de defesa, podem para alguns ser considerados relevantes para o esclarecimento da causa, porque vinculados a outras possíveis interpretações jurídicas dispensáveis ao caso.

No entanto, salvo melhor juízo, não há de se esperar que o advogado público atue em favor do adverso, ou como fiscal da lei. Para isso existe o advogado ou defensor do demandante, contratado ou designado para a causa; e o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica (CPC, art. 752, §1º). O atendimento do interesse público primário não pode se confundir com precarização da defesa do erário. Quase poético.

Assim, se o advogado público lança mão de uma tese jurídica “A” para resguardar a posição processual da Fazenda Pública, fá-lo-á mediante juntada de documentos que emprestem sustentação a essa linha de defesa. O documento “B”, que não serve à prova da tese jurídica “A”, possivelmente não integrará a defesa – ainda que, para alguns, tal documento tenha algum nível de relevância para o esclarecimento da causa. Não vislumbro aqui violação do dever de cooperação processual, mas a reafirmação de um contraditório substancial – no qual a parte litigante se defende oferecendo subsídios materiais que abonem as próprias razões jurídicas. Não nos parece exigível que algum advogado, público ou privado, milite deliberadamente contra a própria tese de defesa; ou que se preocupe em coletar documentos que, apesar de relacionados mediata ou imediatamente à causa, passem longe do que o litigante considerou suficiente para a procedência ou improcedência da ação.

Não se pode olvidar, ainda, que o reconhecimento da procedência do pedido (CPC, 487, III, “a”) não é uma alternativa posta à livre disposição do advogado público, o qual no mínimo se verá premido pela necessidade de recorrer a lei(s) local(is) e/ou normativas internas do órgão de representação judicial, a fim de validamente encerrar um litígio (reconhecendo a procedência de demanda intentada contra a fazenda pública representada em juízo). Ora, em havendo interpretação jurídica razoável que elida a pretensão particular, recomendando ou exigindo a produção de defesa em juízo, são as provas necessárias à confirmação dessa tese/interpretação que interessam ao advogado público.

É dizer: o dever de cooperação processual, exteriorizado no art. 9º da LJEFP e expressamente previsto no texto do novo CPC, não pode funcionar como instrumento de mitigação do efetivo contraditório. Máxime porque nenhum litigante está obrigado à produção de prova contrária à tese de defesa veiculada em juízo.

Muito diferente, pensamos, é a criação de óbices à juntada de documentos específicos, referidos pela parte adversa ou requisitados pelo juízo. Nesse caso, evidentemente, está-se diante de circunstância diversa, e outras regras e princípios atuam para obrigar a apresentação do(s) documento(s).

Ainda do ponto de vista processual, é de se ver que o ônus da prova incumbe “ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito” (CPC, art. 373, I). Quer parecer, salvo melhor juízo, que nem o art. 9º da LJEFP tampouco o apreço ao interesse público primário teriam o condão de, isolada ou conjuntamente, revogar ou de alguma outra forma melindrar a distribuição legal do ônus da prova.

Longe de pretender qualquer espécie de conclusão, cumpre ao menos registrar a percepção de que o nobilíssimo munus da advocacia pública (CR/88, art. 132), movido pelo resguardo do interesse público primário, não se vê afetado ou abalado pelo inegável dever de defesa do erário. Mais especificamente, os deveres de cooperação processual (CPC, art. 6º) e boa-fé (CPC, art. 5º) não debilitam o direito de defesa ou o efetivo contraditório, porque não parecem obrigar o advogado público a produzir provas alheias à tese jurídica veiculada em sua manifestação processual.


Notas e Referências:

[1] “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Raise your hands... // Foto de: Simone // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/belsim/4943227066

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura