A AÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL E A NOVA LEI 13.718/18

27/09/2018

A recente Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, publicada no DOU em 25 de setembro de 2018, alterou o Código Penal para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornando, também, pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável. Além disso, estabeleceu causas de aumento de pena para esses crimes e definiu como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo, revogando, ainda, o art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais), que cuidava da importunação pública ao pudor.

Não trataremos, neste artigo, das novas figuras típicas inseridas no Código Penal pela nova lei, assunto que ficará para próxima oportunidade.

O que julgamos importante tratar, nestas linhas, é justamente a modificação da natureza da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual, que passou a ser pública incondicionada.

Os crimes contra a liberdade sexual, como se sabe, são estupro (art. 213, CP), violação sexual mediante fraude (art. 215, CP) e assédio sexual (art. 216-A, CP), tendo a nova lei inserido o crime de importunação sexual (art. 215-A, CP). Os crimes sexuais contra vulneráveis, por sua vez, são estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), corrupção de menores (art. 218, CP), satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A, CP) e favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, CP), tendo a nova lei inserido o crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (art. 218-C, CP).

Tanto os crimes contra a liberdade sexual (capítulo I), quanto os crimes sexuais contra vulneráveis (capítulo II) integram o título VI da Parte Especial, que cuida “dos crimes contra a dignidade sexual”.  

A denominação “crimes contra a dignidade sexual”, como já tivemos oportunidade de ressaltar em outro artigo anterior, é mais recente, sucedendo os chamados “crimes contra os costumes”, na redação originária do CP de 1940. O código anterior os definia sob a rubrica “dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. Na legislação vigente, o bem jurídico protegido é a dignidade sexual, que, no fundo, significa a moral pública sexual, no mesmo diapasão dos antigos “costumes”.

Nesse aspecto, a noção de moral pública sexual não pode ser analisada em apartamento da mentalidade vigente em determinada época, em determinada sociedade e em função de determinados aspectos dominantes e correspondentes ao interesse social em torno da sexualidade.

Com muita propriedade já ressaltava HELENO CLÁUDIO FRAGOSO que “as disposições de nosso CP nesta matéria são extremamente repressivas e representativas de uma mentalidade conservadora, incompatível com os tempos modernos. O critério que hoje domina a incriminação de tais fatos é o do efetivo dano social, sendo inteiramente injustificável a repressão penal de comportamentos considerados imorais pelos que têm o poder de fazer as leis. Vivemos num período de intensa revolução em matéria de moral pública sexual, com o desaparecimento de certos preconceitos, consequência de uma nova posição que a mulher vai adquirindo na sociedade. Passa a ser duvidosa a conveniência de proteger penalmente a moral pública sexual, numa sociedade pluralística, em que o interesse social em torno da sexualidade passa a se orientar por outros valores. Na aplicação da lei os juízes devem estar atentos ao envelhecimento e desatualização da lei, procurando interpretá-la em consonância com uma visão moderna, que corresponda às exigências dos novos tempos.”[1]

Nesse sentido, a ação penal nos “crimes contra os costumes”, tal como estabelecida na redação originária do art. 225 do CP/40, era privada, somente se procedendo mediante queixa. Neste caso, o Estado transferia à vítima o direito de acusar (“jus accusationis”), preservando para si o direito de punir (“jus puniendi”). O interesse do particular, ofendido pelo crime, sobrepunha-se ao interesse público, que também existia. Naquela época, excetuavam-se os crimes sexuais em que houvesse a presunção de violência (art. 224 – já revogado) e também aqueles em que a vítima ou seus pais não podiam prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, ou ainda se o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. Aí a ação penal era pública incondicionada.

Com a vigência da Lei nº 12.015/12, houve um avanço no trato da questão, passando a nova redação do art. 225 a prever que, nos crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI, procedia-se mediante ação penal pública condicionada à representação, à exceção do crime cometido contra vítima menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, em que a ação penal era pública incondicionada.

Agora, a partir da vigência da Lei nº 13.718/18, a ação penal, em todos os crimes contra a liberdade sexual (arts. 213 a 216-A, CP) e em todos os crimes sexuais contra vulnerável (arts. 217-A a 218-C, CP), passou a ser pública incondicionada.

Portanto, o processo e o julgamento de todos os crimes contra a dignidade sexual, aí incluídas as providências de natureza policial, independem da vontade da vítima, retirando-se de sua alçada o pesado fardo de ter que decidir se o predador sexual seria ou não alcançado pela lei penal e punido por seu crime.

A lei nova teve vigência imediata (art. 4º), a partir da data de sua publicação, que ocorreu em 25 de setembro de 2018, não sendo fixado pelo legislador período de “vacatio legis”.

Resta saber, entretanto, se a nova regra sobre a natureza da ação penal é de natureza penal ou processual penal. Se for de natureza penal, não retroagirá, a “contrario sensu” do disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, e no art. 1º do Código Penal. Se for de natureza processual penal, aplicar-se-á aos fatos já ocorridos, por imposição do art. 2º do Código de Processo Penal, que estabelece o princípio da imediatidade ou princípio da aplicação imediata da lei processual penal.

Vale lembrar que “ação penal” é tema previsto tanto no Código Penal (arts. 100 a 106), quanto no Código de Processo Penal (arts. 24 a 62).

Cuidando-se, entretanto, de matéria atinente à deflagração do “jus puniendi” do Estado e considerando-se a ação penal como o direito público subjetivo, determinado, autônomo, específico e abstrato de invocar do Estado-juiz a aplicação do direito objetivo ao caso concreto, em caso de violação da norma penal, temos que a nova regra (ação penal pública incondicionada) trazida pela Lei nº 13.718/18 não poderá retroagir, eis que gravosa ao criminoso, aplicando-se apenas aos crimes sexuais praticados a partir de sua vigência, ou seja, a partir do dia 25 de setembro de 2018.

 

 

Notas e Referências

[1] Lições de Direito Penal – Parte Especial vol.II . 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1984. p. 01.

 

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