A AÇÃO MODIFICATÓRIA EM TEMPOS DE CRISE – 6ª. Parte

28/04/2020

Retomando o debate sobre a ação modificatória, iremos tratar de um tema muito polêmico na atualidade: a necessidade de ingresso em juízo para reconhecimento da existência de alteração do estado de direito , isto é, a necessidade de um provimento judicial que ateste o fato modificativo[1].

A expressão “poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”, contida no art. 505, I, CPC, denota a necessidade de que o reconhecimento da modificação do estado de fato ou de direito ocorra dentro do processo, ou melhor, seja certificada por uma autoridade do Poder Judiciário.

 O vocábulo “parte” remete à denominação dada para sujeitos dentro de uma relação processual, o que afasta a possibilidade do fato modificativo ser reconhecida fora do processo. Já a expressão “pedir a revisão do que foi estatuído na sentença” revela a necessidade de uma autoridade certificadora, que dentro do processo somente pode ser o magistrado.

Pontes de Miranda ensina que a ação de modificação não possui o escopo de atacar a decisão proferida anteriormente, pois não se busca discutir a existência ou validade do comando judicial anterior, mas tão-somente “à interpretação, ou versão, da sua eficácia. Houve modificação essencial e imprevista das circunstâncias que formaram os pressupostos para a condenação quanto ao futuro, a determinação do importe no futuro e a duração da prestação no futuro.”[2]   

Com isso, a ação de modificação assume a feição mandamental contra a eficácia futura da sentença, não podendo ser confundida com a ação rescisória de caráter constitutivo (desconstituivo). Incorreto, igualmente, é a atribuição de caráter revisional à referida ação (tema já tratado em texto anterior).

Mais uma vez, buscamos analisar a questão a partir de exemplos extraídos de demandas tributárias. Naquele ramo, para o sujeito ativo exercer o seu direito de cobrar o cumprimento da obrigação tributária, se faz necessária a constituição do crédito tributário mediante lançamento tributário, nos termos do art. 142, CTN. Porém, a decisão judicial transitada em julgado, também possui o efeito de extinguir o crédito tributário, nos termos do inciso X do artigo 156, CTN motivo pelo qual, enquanto não afastada a eficácia da sentença, o Fisco estará impedido de promover a cobrança do crédito.

Entende-se que, desde a ocorrência fática ou jurídica da modificação, a eficácia futura da sentença é abalada, entretanto, apenas com a certificação judicial da ocorrência da modificação o Fisco estará autorizado a realizar a cobrança do crédito tributário. Destarte, enquanto a suspensão ou modificação da eficácia futura da sentença não for certificada pelo Poder Judiciário, o Fisco não poderá promover a cobrança do crédito.

A norma jurídica que estabeleceu a necessidade do ajuizamento de ação de modificação não possui o escopo formalista. Sua função é, justamente, garantir a segurança jurídica das relações, conciliando a imperatividade da coisa julgada com os seus efeitos futuros por meio de decisão judicial e a necessidade de certificação judicial dos fatos modificativos da sua eficácia.

A inserção de tal regra no sistema privilegia a necessidade de as normas gerais ou individuais permanecerem imperativas até que sejam retiradas do mundo jurídico ou sustadas pelo órgão competente que, no caso, é o Poder Judiciário. A justificativa para tal opção é que os fatos jurídicos, para serem aplicados, dependem da atividade cognitiva das autoridades competentes, eleitas dentro do sistema de direito positivo, o que demanda um conhecimento específico para o fato. 

Imagine-se a insegurança jurídica que existiria se cada parte pudesse livremente interpretar se houve ou não a modificação do estado de fato ou de direito e, a partir dessa interpretação, simplesmente passasse a desconsiderar ou descumprir o comando estatuído em uma decisão judicial transitada em julgado.

Aliás, recentemente, com a edição da Lei n. 13.300/2016, que regula o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo, o sistema processual mais uma vez demonstrou a imprescindibilidade da ação de modificação para sustar os efeitos futuros das decisões de trato sucessivo transitada em julgado[3].

Note-se que o fato de a legislação especial dispor sobre novas hipóteses de ação de modificação não conduz ao entendimento no sentido de que a regra geral é a desnecessidade de ajuizamento da ação e a regra especial veicula exceções ao regime geral. Ora, pela leitura dos incisos I e II do art. 505, CPC, verifica-se que eles são complementares e não excludentes[4].

Portanto, a exigência da ação de modificação, como elemento integrativo para o reconhecimento da mudança de estado de fato ou direito das decisões judiciais transitadas em julgado, é instrumento fundamental para preservar a autoridade da coisa julgada nas relações de trato continuado. Caso contrário, toda decisão judicial transitada em julgado poderia ser descumprida sob o pretexto de que houve uma modificação da situação de fato ou de direito.

Cabe aqui uma analogia com o problema da inconstitucionalidade das leis. Uma lei inconstitucional é viciada desde sua produção, ou seja, a invalidade deve ser reconhecida na origem por qualquer integrante do sistema. Mas, por questão de segurança jurídica e para preservar a imperatividade das normas, o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu a competência para análise da inconstitucionalidade a alguns órgãos.

O raciocínio empregado deve ser integralmente transportado para a questão da ação de modificação. Em tese, o sistema jurídico poderia atribuir a qualquer um a competência para o reconhecimento da modificação do estado de fato ou de direito da relação jurídica albergada por decisão transitada em julgado. No entanto, por questão de segurança jurídica e para preservar a imperatividade da coisa julgada, preferiu atribuir a competência exclusiva para o Poder Judiciário.

Desta feita, o ajuizamento da ação de modificação é imprescindível para que haja a suspensão da eficácia futura de uma sentença que trate de relação de continuada ou sucessiva.

No próximo texto, trataremos dos aspectos procedimentais da ação modificatória.

 

Notas e Referências

[1] Sobre o tema: Cf. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos F. de. QUEIROZ, Mary Elbe. Necessidade da ação de modificação para sustação da coisa julgada nas relações de trato sucessivo. Estudo em homenagem so Ministro Teori Zavascki. Estudos de direito processual e tributário em homenagem ao Ministro Teori Zavascki. MURICI, Gustavo Lanna, CARDOSO, Oscar Valente; RODRIGUES, Raphael Silva (coord.). Belo Horizonte: Editora D`Plácido, 2018. pp. 815-824.

[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil: Tomo V. São Paulo. Editora Forense. 1974. p.199.

[3] Art. 10. Sem prejuízo dos efeitos já produzidos, a decisão poderá ser revista, a pedido de qualquer interessado, quando sobrevierem relevantes modificações das circunstâncias de fato ou de direito. Parágrafo único. A ação de revisão observará, no que couber, o procedimento estabelecido nesta Lei.

[4] Em sentido contrário: Cf. ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. O trato das relações jurídicas continuadas no NCPC, uma oportunidade perdida. In: Novo CPC e o Processo Tributário. Antonio Carlos F. de Souza Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha (Coord). São Paulo: FocoFiscal, 2015. p.185-186. O autor, porém, disse – em conversa com os autores deste texto – que começa a admitir exceções à posição por ele adotada. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.80 e ss.

 

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