A AÇÃO MODIFICATÓRIA EM TEMPOS DE CRISE – 5ª. Parte

21/04/2020

Destacamos, no terceiro texto da série, que o fato modificativo pode decorrer de alteração do contexto normativo no qual foi fundada a pretensão (estado de direito). Agora pretendemos tratar os efeitos da edição de precedentes, considerados pelo CPC como de observância obrigatória pelos juízes e tribunais[1], para identificação da alteração do estado de direito.

Antes da vigência do atual CPC, o debate ficava circunscrito se os julgados oriundos do plenário do STF poderiam ser considerados um fato modificativo por mudança do estado de direito. Há muito, um dos autores do presente texto, tem defendido que os julgados oriundos de tal órgão judicante possuem aptidão para inovar no contexto normativo em que foi baseada a decisão resolutiva das relação de trato continuado e, por isso, deve ser considerado como elemento passível de alteração do estado de direito[2].

Para resolução da pergunta de partida do texto, vamos estabelecer uma análise comparativa com outros dispositivos do CPC. Os primeiros dispositivos examinados são respectivamente os art. 525, §§ 12° a 15°[3], e art. 535, §§ 5° a 8°[4], que tratam do cumprimento de sentença que reconhece a existência de obrigação de pagar quantia certa em geral e pela Fazenda Pública. Geralmente, as obrigações reconhecidas nas sentenças decorrem de relações estáticas ou elementos retrospectivos de relações de trato continuado reconhecidos pela decisão judicial.

Nos aludidos dispositivos, o diploma processual atribui aos julgados do plenário do STF (em controle difuso ou concentrado), a constituição de fato que, se ocorrido antes do trânsito em julgado da sentença, possui o condão de atingir a exigibilidade do título executivo judicial. Caso proferido após a constituição do título executivo, o julgado possibilita o ajuizamento de ação rescisória. Ou seja, nas duas hipóteses, o julgado oriundo do STF é traduzido como elemento inovador do sistema jurídico, capaz de atingir a exigibilidade de obrigações definitivamente constituídas ou até mesmo permitir a sua desconstituição.     

O segundo consiste no art. 966, §6°[5], CPC, autorizativo do ajuizamento de ação rescisória com fundamento em violação manifesta da norma jurídica, quando a decisão invocar enunciado elencado pelo código como de observância obrigatória (art. 927, CPC), sem considerar a distinção entre o contexto apresentado no julgado paradigma e o caso objeto da ação rescisória. O dispositivo acaba enquadrando o enunciado de súmula ou julgado proferido em casos repetitivos como elemento importante do contexto normativo adotado para produção da decisão judicial albergada pela coisa julgada, de tal modo que a sua indevida utilização enseja o manejo da ação rescisória. Em outros termos, o CPC equiparou a equivocada utilização de um julgado vinculante à uma violação manifesta de uma norma jurídica.

O quadro comparativo apresentado instiga o debate se, por meio de uma interpretação sistemática, seria possível considerar que os precedentes oriundos do plenário do STF são possíveis elementos indicativos de uma mudança de estado de direito (art. 505, I, CPC). Adicionalmente, o questionamento pode ser ampliado a outras formas de vinculação tratadas no art. 927, CPC e poderá justificar o ajuizamento de ação rescisória.  

Saindo do plano da interpretação dos dispositivos do CPC, miramos para o tratamento dado pelos tribunais superiores aos efeitos da edição de julgados vinculantes nas relações definitivamente constituídas. Em primeiro lugar, identificamos uma tendência jurisprudencial pela constitucionalidade dos dispositivos atinentes ao cumprimento de sentença, conforme pode ser observado no julgamento da ADI n. 2.418/DF[6] e no Recurso Extraordinário n. 611.503.

Pois bem, no campo das relações estáticas, o STF tem se debruçado sobre o alcance do enunciado 343 de sua Súmula. No julgamento do RE n. 590.809 (tema: 136), entendeu-se que, quando a decisão estiver em harmonia com entendimento do STF vigente à época, não cabe ação rescisória em caso de posterior mudança de entendimento. Conclusão semelhante pode ser obtida do julgamento do Recurso Especial n. 1.001.779 (tema 239[7]).

Ademais, devemos salientar que o STJ, no julgamento da Ação Rescisória n. 5.954, considerou passível de rescisão a decisão que à época da sua produção adotou solução jurídica contrária ao contemporâneo entendimento majoritário do Tribunal Superior, firmado em julgamento de recursos repetitivos. Tudo a confirmar que, no campo jurisprudencial, a alteração ou edição de julgados de teses repetitivas têm influenciado o contexto jurídico das decisões judiciais, isto é, os julgados estão sendo tomados como novos elementos jurídicos.   

Retomando a questão central do texto verificamos que, no campo do direito tributário, a discussão sobre os efeitos da decisão do STF nas relações de trato continuado tem fomentado diversas discussões nos âmbitos administrativo e judicial. No Parecer PGFN n. 492/2011, aprovado pelo Ministro da Fazenda, a Fazenda Nacional demonstrou a seu posicionamento no sentido de que qualquer decisão oriunda do plenário do STF constitui um fato modificativo.

Por outro lado, a Primeira Seção do STJ, no julgamento do RESP n. 1.118.893 (tema 340[8]) seguiu entendimento diametralmente oposto ao defendido pela Fazenda Nacional. No entanto, o próprio Tribunal, em recentes decisões (ex: Recurso Especial n. 1.652.295/MG[9]), vem reconhecendo o precedente do STF como fato modificativo.

A questão já chegou ao STF e foi objeto de reconhecimento de repercussão geral. No RE n. 949.297 (tema: 881), será analisado o impacto da decisão oriunda do controle concentrado nas relações de trato continuado. Já no RE n. 955.227 (tema 885), discute-se o impacto da decisão proferida em controle difuso (editada pelo plenário do STF). É importante destacar que o primeiro recurso foi incluído na pauta de julgamento do plenário do STF do dia 30 de abril de 2020[10].      

Diante do contexto apresentado, é possível concluir que, independentemente das possíveis críticas ao CPC e a alguns julgados dos tribunais superiores, há um padrão no sentido de considerar os julgados do STF com elemento de possível alteração do estado de direito. Ademais, esse padrão poderá expandir para outros tipos de julgados como, por exemplo, os casos repetitivos em matéria infraconstitucional julgados pelo STJ e enunciados (súmula vinculante e outras dos tribunais superiores).

No próximo texto, abordaremos o problema da necessidade da ação modificatória.    

  

Notas e Referências

[1] Em função da limitação do campo de análise do presente texto, não pretendemos penetrar na discussão sobre a constitucionalidade da vinculação de precedentes, mediante lei ordinária, isto é, em sentido maior daqueles contidos na Constituição Federal

[2] SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos F. de. Coisa julgada nas relações tributárias sucessivas e a mudança de estado de direito decorrente do precedente do STF. Novo CPC doutrina selecionada, v.2: procedimento comum. Fredie Didier Jr (coord.). Salvador: Juspodivm, 2016. pp. 707-722.

[3] § 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal , em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. § 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.  § 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.

§15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[4] § 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal , em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. § 6º No caso do § 5º, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, de modo a favorecer a segurança jurídica.

§7º A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 5º deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão exequenda. § 8º Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[5] Art. 966. § 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

[6] Destacamos apenas o seguinte trecho da ementa: 3. São constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC, do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional – seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda.

[7] Tese firmada: A Súmula 343, do Supremo Tribunal Federal, cristalizou o entendimento de que não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais. A ação rescisória resta cabível, se, à época do julgamento cessara a divergência, hipótese em que o julgado divergente, ao revés de afrontar a jurisprudência, viola a lei que confere fundamento jurídico ao pedido.

[8] Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade.

[9] Trecho da ementa: IV – No mérito, considerando que a relação jurídico-tributária é continuada, alteradas as circunstâncias no estado de direito da matéria pela decisão do STF na ADI n. 3.089/DF, é válida a cobrança de ISS sobre os serviços notariais após a declaração de constitucionalidade da exação.

[10] http://www.stf.jus.br/portal/pauta/listarCalendario.asp?data=30/04/2020

 

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