A AÇÃO MODIFICATÓRIA EM TEMPOS DE CRISE – 3ª. Parte

07/04/2020

Retomando a série, iremos tratar do fato modificativo, causa eficiente da ação em análise. Como adiantado no primeiro texto da série, para relações que se desenvolvem no tempo, a legislação processual possibilitou a formulação de pedidos ligados a prestações futuras (art. 323, CPC)[1], fazendo com que a eficácia decisional se projete para o futuro. Nesses casos, “a sentença contém, explicita ou implicitamente, a cláusula de modificabilidade”[2], ou seja, a decisão será albergada pela coisa julgada material, mas a indiscutibilidade da coisa julgada protege a força declaratória da sentença, enquanto não sobrevier o fato modificativo.

O inciso I do art. 505, CPC, esclarece que o fato modificativo pode surgir de superveniente alteração dos fatos deduzidos em juízo (estado de fato) ou alteração do contexto normativo no qual foi fundada a pretensão (estado de direito). Ocorrida tal alteração, forma-se o fato modificativo, que repercute na prospecção eficacial da decisão que fora proferida. 

A mudança do estado de fato consiste em uma alteração da base fática em que se deu a decisão. O exemplo mais comum é a modificação da situação financeira doo interessados na ação de alimentos, que pode ser causada pela perda salarial decorrente dos efeitos econômicos gerados pela COVID-19.

Por outro lado, a mudança do estado de direito é referente à alteração do texto normativo que serviu de suporte para a pretensão deduzida em juízo e, por isso, foi considerado como fundamento para edição do comando decisório ou superveniência de outro texto normativo reconfigurador da relação jurídica deduziada.

Os exemplos mais eloquentes podem ser extraídos do direito tributário. Se um contribuinte deduz uma demanda questionando a constitucionalidade de determinado tributo ou base de cálculo, argumentando violação ao princípio da legalidade em virtude de a base de cálculo cobrada está amparada em um decreto. A decisão judicial reconhece a inconstitucionalidade e transita em julgado. Posteriormente, o ente tributante edita uma lei tratando da base de cálculo do tributo questionado em juízo. No exemplo, a edição da lei, além de introduzir novo marco legal, alterou o contexto de direito, afastando o estado de violação do princípio da legalidade, considerado na decisão judicial transitada em julgado.

Advirta-se que, tratando de mudança de estado de direito, não qualquer alteração legislativa que irá ocasionar o fato modificativo previsto na norma processual. Recorremos a outro exemplo oriundo do direito tributário. Determinado contribuinte ajuizou ação questionando a constitucionalidade do tributo, com fundamento na impossibilidade da sua materialidade (critério material) servir de base para criação de determinado tributo. O pedido foi julgado procedente sob o mesmo fundamento e a decisão transitou em julgado. Posteriormente, foi editada uma lei com o condão de substituir apenas a alíquota do tributo discutido judicialmente. Aqui, diferentemente do exemplo anterior, a alteração legislativa não modificou o estado de direito, pois o estado de inconstitucionalidade reconhecido judicialmente não foi alterado pelo novo marco legislativo.

A questão fica mais complexa quando analisamos a possibilidade de outros atos modificar o estado de direito como, por exemplo, precedentes tidos por vinculantes, tais como julgamento de ações diretas pelo Supremo Tribunal Federal e edição súmulas vinculantes. A complexidade apontada justificará um texto específico ao final da série.

Portanto, constatado a existência de fato modificativo, caberá a ação modificatória, não porque, já como visto, a sentença se apresenta despida da autoridade da coisa julgada, mas, sim, porque sendo nova a questão em torno da alteração, de fato e de direito, a que se submeteu a relação deduzida, não se acha dita questão dentro daquelas decididas no julgado anterior. Pode a parte suscitá-la e, com isso, deve o juiz apreciá-la, até porque não há qualquer ofensa alguma à intangibilidade do que antes se estatuiu acerca da relação jurídica material nos termos em que se achava ao tempo da primeira decisão.

Seguindo os passos aqui tratados, dedicaremos a próxima postagem à análise da Súmula 239 do STF.

 

Notas e Referências

[1] “Na ação que tiver por objeto cumprimento de obrigação em prestações sucessivas, essas serão consideradas incluídas no pedido, independentemente de declaração expressa do autor, e serão incluídas na condenação, enquanto durar a obrigação, se o devedor, no curso do processo, deixar de pagá-las ou de consigná-las”.

[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil: Tomo V. São Paulo. Editora Forense. 1974. p. 192.

 

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