A AÇÃO MODIFICATÓRIA EM TEMPOS DE CRISE – 1ª Parte

24/03/2020

Lançamos neste momento uma série aqui na Coluna acerca da chamada ação modificatória. A razão para tanto se dá porque, para além da complexidade teórica que envolve o tema (de resto, dos mais poucos estudados da processualística), estamos num momento de profunda crise causada pela pandemia do Coronavírus (causador da doença COVID-19), já implicando imensuráveis consequências de ordem socioeconômica. Contratos e negócios jurídicos em geral terão de ser revistos; decisões, especialmente judiciais, reanalisadas. É para este último caso que aparece a figura da ação modificatória, prevista no inciso I do art. 505, CPC.

Observe-se, de logo, que o termo acima utilizado para especificar as decisões: reanalisar. Não se trata de rever a decisão, no sentido de verificar se os fundamentos que a embasam estão corretos (isto é, calcados na juridicidade) ou se seu dispositivo está congruente com a causa que a possibilitou. Por maior que possa ser o erro, não se revisita a decisão, algo somente possível no direito brasileiro mediante ação rescisória e, conforme o caso, revisão criminal. Estas têm previsão constitucional, o que significa que, para decisões transitadas em julgado, a revisão somente se faz possível por intermédio dessas ações, conquanto seja o regramento infraconstitucional que defina a estrutura delas, incluindo – aquilo que lhes é mais básico –  a própria regulação do fato jurídico do trânsito em julgado. Essa característica aproxima tais ações dos recursos; diferenciam-se, substancialmente, pelo fato de eles possibilitarem a revisão sem a necessidade do desfazimento prévio da decisão recorrida, que é o ius rescindens da ação rescisória[1].

Mas, se assim o é, qual é a essência da modificação? Em que consiste a anunciada reanálise? Reanalisa-se porquanto, na aparência, a decisão continua a prevalecer, eis a resposta mais correta à segunda pergunta. Mas prevalecer diante do que? Da mudança no estado de fato e/ou de direito nos quais se baseou a decisão. Daí o termo modificação.

Perceba-se: o que modifica não é a decisão, mas sim o estado no qual ela se fundou. Não se trata, portanto, de uma ação para modificar a decisão; é a realidade que muda. A decisão – como fato que é – tem um aspecto punctual, ou seja, dá-se num determinado momento e, antes, refere-se à determinada realidade, que, no texto normativo, é denominada de estado de fato e de direito.

Claro, se a decisão não tem sua eficácia projetada ao futuro, tal como algo de consumação instantânea, não há como falar em modificabilidade, que é própria das decisões referentes àquilo que se desenvolve pelo tempo: seja espraiando-se, seja sucedendo-se. Ressalte-se que o futuro da eficácia não é o simples fato de a decisão poder ser efetivada depois; é-o porque refere-se a algo que se projeta para o depois, aquilo que se chama de relação jurídica continuativa[2]. Assim, se há um ano condenou-se alguém a pagar determinada quantia e somente um ano após veio-se a executar a decisão, não há falar em eficácia projetada ao futuro, uma vez que a condenação já produzira desde então seu efeito: o de permitir a execução.

Agora, se a modificação é referente ao depois da decisão, por que se faz necessário reanalisar? Isto se dá porque, muito embora a mudança da realidade, a decisão, como ato de autoridade, continua a prevalecer sobre os sujeitos atingidos por sua eficácia. Não cabe ao submetido por ela, arrogando-se na condição de senhor da realidade, impor ao beneficiário as consequências advindas da modificação, como a diminuição de um aluguel etc.; para tanto, é necessária uma espécie de contraordem. Esta somente se torna possível a partir da comparação da realidade em que se deu a decisão com a realidade que lhe adveio. Não se pode comparar sem reanalisar o que foi decidido. É nisto que reside a necessariedade da ação modificatória. Pelo mesmo motivo, reconhece-se – sem, por óbvio, negar a ocorrência de outras eficácias –  a força mandamental da ação[3] ou, mais propriamente, contramandamental.

Por fim, visto que se volta contra uma decisão, a ação modificatória é de tipo impugnativo, tal como a ação recursal[4]. Mais do que isso, a impugnatividade é presente porque no fundamento da ação encontra-se uma decisão. Diferem, porém, substancialmente porque a segunda refere-se a erro presente na decisão, enquanto a primeira, consoante demonstrado, à mudança da realidade.  

Eis uma breve introdução ao problema da ação modificatória.  

No próximo texto, traremos exemplos de ações do tipo, analisando os casos mais emblemáticos do direito brasileiro, especialmente as, impropriamente denominadas, ações revisionais de alugueis e de alimentos.

 

Notas e Referências

[1] Nesse sentido, GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Da Recorribilidade ao Recurso: um caso emblemático do movimento processual. Tese de Doutorado por ser defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

[2] Também dita de trato sucessivo. Ambos os termos são inadequados, pois que redutivos do âmbito da ação modificatória, que se refere a relações jurídicas que se projetam no tempo, sejam em fluxo contínuo (espraimento), como o dever de fornecer energia, sejam em solução de continuidade (trato sucessivo), como o dever de pagar alugueis. 

[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. 5, p. 199.

[4] Sobre o tema, GOUVEIA FILHO, op. cit.

 

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