#89 - CABIMENTO DE AÇÃO RESCISÓRIA POR SUSPEIÇÃO: HIPÓTESE ESCONDIDA, MAS PRESENTE NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

23/11/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

A doutrina reconhece tranquilamente que a garantia da imparcialidade é tutelada pelas hipóteses de impedimento e suspeição. Objetivamente, juiz impedido ou suspeito é parcial[1]. Nada obstante, prevalece o entendimento de que há diferenças entre impedimento e suspeição. Fala-se que o impedimento é objetivo, tutela o interesse público, gera presunção absoluta de parcialidade (o reconhecimento do impedimento exige apenas a demonstração da hipótese legal), não se submete a preclusão e constitui vício rescisório, ao passo em que a suspeição é subjetiva, tutela o interesse privado, gera presunção relativa de parcialidade (o reconhecimento da suspeição exige, além da demonstração da hipótese legal, a efetiva prática de atos de beneficiamento ou perseguição pelo juiz), submete-se a preclusão e não constitui vício rescisório[2].

Discordo desse entendimento. Estou com os que defendem – frise-se: de lege lata – a existência de um regime jurídico unitário para a tutela da imparcialidade. Ora, não há distinção «ontológica» (entenda-se por ontológica, aqui, aquela «essência» particular que diferencia um ente de todos os demais) entre impedimento e suspeição[3]. Se se pode falar de alguma «essência» é do que é próprio à imparcialidade, não ao impedimento ou a suspeição. Nada há de ínsito e passível de apreensão no impedimento e na suspeição. Impedimento e suspeição são apenas expressões metonímicas da parcialidade.

Já tratei desse assunto noutra ocasião, não retomarei a discussão[4]. Sei que esse posicionamento é francamente minoritário e a estratégia argumentativa pouquíssimo convincente para os que aceitam as distinções entre impedimento e suspeição e, a fortiori, o regime jurídico binário para tais violações da garantia da imparcialidade.

Insistirei na tese de que cabe ação rescisória contra sentença proferida por juiz suspeito, mas por outro caminho. Defenderei que o juiz suspeito pelas hipóteses do art. 145, II, primeira parte, do CPC, necessariamente comete crime de concussão; que o juiz suspeito pelas hipóteses do art. 145, II, primeira parte, comete crime de corrupção passiva; e que o juiz suspeito pelas hipóteses do art. 145, I, II, segunda e terceira partes, III e IV, comete crime de prevaricação – ainda que com temperamentos.

Se meu argumento estiver correto, mesmo quem reconhece a validade do regime binário de vícios de parcialidade terá de reconhecer que o art. 966, I do CPC consagra – ainda que indiretamente – o cabimento de ação rescisória contra juiz suspeito.

Apenas atinei para isso lendo a obra de Leonardo Greco. Tenho concordâncias e discordâncias com ele, tentarei demonstrá-las ao longo do texto, que, por isso mesmo, acaba sendo um diálogo e uma homenagem ao professor.

 

1. O posicionamento de Leonardo Greco: suspeição do art. 145, I do CPC e hipótese de rescindibilidade do art. 966, I do CPC

Leonardo Greco coarcta os arts. 145, I do CPC e 966 do CPC para sustentar que quem argui a suspeição deve demonstrar, além da hipótese prevista em lei, que o vínculo subjetivo de amizade íntima ou inimizade do juiz com a parte ou o respectivo advogado foi determinante para o julgamento, através da prática de algum dos crimes vertidos nos arts. 316, 317 e 319 do CPC.

Diz ele: “nos casos de suspeição, como a amizade íntima, o interessado, além de provar a existência concreta do motivo indicado na lei, deve demonstrar que essa amizade com a parte adversa foi determinante ou influenciou decisivamente o juiz no julgamento da causa em seu desfavor, através da prática de algum dos crimes mencionados no inciso I dos artigos 485 do Código de 1973 e 966 do Código de 2015, e definidos nos artigos 316, 317 e 319 do Código Penal. Assim, embora os artigos 966 do Código de 2015 não tenham enumerado a suspeição como causa de rescisão da sentença, o inciso I dos dois artigos indica que a sentença pode ser rescindida nos casos de prevaricação, concussão ou corrupção”[5].

Considero a leitura prenhe de generalizações apressadas e equívocos, mas também de acertos. Vejamos.

 

2. Requisitos para o reconhecimento da suspeição: alegação e comprovação de uma hipótese legal de suspeição, nada mais

À luz da estrutura normativa imputacional “se, então”, minha leitura do art. 145, I do CPC pode ser assim exposta: “se (i) é juiz (ii) amigo íntimo ou inimigo da parte ou do advogado, então deve ser considerado suspeito”.

A leitura de Greco, por sua vez, é a seguinte: “se (i) é juiz (ii) amigo íntimo ou inimigo da parte ou do advogado e (iii) proferiu decisão (iv) prejudicial ao arguente (v) mediante o cometimento dos crimes de prevaricação, concussão ou corrupção passiva, então deve ser considerado suspeito”.

Nota-se que nossos antecedentes da norma de suspeição são distintos: a minha, menos exigente; a dele, mais.

A passagem acima transcrita parece explicar o porquê de Greco chegar àquela conclusão: partindo das corretas premissas de que (a) o direito positivo admite a rescisão da sentença proferida por juiz que comete prevaricação, concussão e corrupção passiva (premissa explícita), os quais (b) só se consumam quando presente o elemento subjetivo do dolo (premissa implícita), e que (c) o juiz pode cometer aqueles crimes em razão do vínculo subjetivo de amizade íntima ou inimizade, hipótese em que é suspeito, concluiu que só há suspeição quando o juiz comete um daqueles crimes.

Se isso estiver correto, então parece que ele incorre na falácia da composição: tomando o todo pela parte, identifica uma hipótese em que se pode falar (indiretamente) em suspeição e reduz todo o fenômeno a ela.

Greco tem um insight correto: pode haver relação de implicação normativa entre os crimes indicados no art. 966, I do CPC e as hipóteses de suspeição do art. 145 do CPC. Muitas vezes os antecedentes de tais hipóteses de suspeição são idênticos aos dos referidos crimes, de modo que não há como haver um sem o outro. Mas nem sempre é assim. Retomarei esse ponto adiante.

O que cabe evidenciar desde já é que notadamente – mas não exclusivamente – em relação ao art. 145, I do CPC, não é defensável afirmar que o antecedente da norma jurídica de suspeição exige os pressupostos (iii), (iv) e (v).

A prévia prolação de decisão pelo juiz recusado – (iii) – não é pressuposto da arguição de suspeição. Além de a lei não formular tal exigência é perfeitamente possível que todas as hipóteses de suspeição sejam preexistentes ao procedimento.

Nenhum esforço é necessário para imaginar que podem ser anteriores ao ajuizamento da demanda  a relação de amizade íntima ou inimizade com qualquer das partes ou de seus advogados (art. 145, I), o recebimento de presentes de pessoas que tiverem interesse na causa (art. 145, II, primeira parte) e a condição de credor ou devedor, dele, seu cônjuge ou companheiro ou seus parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive (art. 145, III).

Embora menos evidente, também pode ser precedente o interesse no julgamento do processo em favor de qualquer das partes (art. 145, IV). Imagine-se que o juiz adota comportamento expansivo nas redes sociais e ali manifesta, em postagens reiteradas, posicionamento intransigente sobre a interpretação de uma específica questão de direito do consumidor em sentido contrário àquele consolidado na doutrina e na jurisprudência, afirmando que todas as demandas daquele tipo que lhe sejam distribuídas serão rechaçadas. Se essa mesma conduta for adotada pelo juiz em relação a uma pessoa específica, v. g., ao cidadão que se encontra no setor de atermação dos JECíveis para propor demanda daquele tipo, estará caracterizado o aconselhamento a alguma das partes acerca do objeto do processo (art. 145, II, segunda parte).

Ademais, um juiz pode ser abordado por alguém que relata dificuldades financeiras para conduzir uma demanda e, comovido, oferecer-lhe o quanto necessário ao pagamento das custas processuais, vindo, posteriormente e por coincidência, a petição inicial a ser distribuída justamente para a Vara da qual ele é titular (art. 145, II, terceira parte). Portanto, o juiz pode ser suspeito sem ter proferido decisão nem saber da existência do procedimento.

E se a causa da suspeição pode ser anterior ao processo, a arguição pode ser aviada antes mesmo de o juiz saber da existência do procedimento, o que ocorrerá quando dela a parte tiver conhecimento e prova desde a distribuição (se for o caso). Por exemplo: se desde a distribuição o autor sabe e tem provas de que o titular da Vara sorteada é seu inimigo ou de seu advogado ou amigo íntimo do réu, pode recusá-lo imediatamente, sem que os autos nem sequer tenham sido remetidos à serventia do juízo, e nem deste ao juiz para fins de exame da admissibilidade da petição inicial.

A suspeição pode se manifestar no curso do procedimento sem decisão prejudicial ao arguente. Por exemplo: autor que teve admitida a petição inicial e deferido o pleito de tutela liminar de urgência pode recusar o juiz que aconselhou o réu sobre o objeto do processo durante a audiência de saneamento e organização.

A suspeição pode se manifestar no curso do procedimento com decisão prejudicial ao arguente, embora sem configurar um dos crimes indicados no art. 966, I do CPC – os exemplos são intuitivos e batidos, desnecessário decliná-los. Aqui há apenas ilícito procedimental, incidindo os §§ 5º a 7º do art. 146 do CPC.

E claro, a suspeição pode se manifestar no curso do procedimento com decisão prejudicial ao arguente e configuração de um dos crimes indicados no art. 966, I do CPC. Aqui há ilícito procedimental para fins de incidência das consequências dos §§ 5º a 7º do art. 146 do CPC, sem prejuízo das sanções administrativo-disciplinares e penais.

Com tudo isso quero demonstrar que, para os estritos fins de arguição da suspeição e aplicação dos §§ 5º a 7º do art. 146 do CPC, basta alegar e comprovar uma das hipóteses do art. 145 do CPC, sendo apenas acidental que o juiz recusado conheça o procedimento e tenha proferido decisão contrária aos interesses do arguente mediante o cometimento dos crimes de prevaricação, concussão ou corrupção passiva.

Enfim, não há que se falar nos pressupostos (iii), (iv) e (v) arrolados por Leonardo Greco.

Tudo é diferente no caso da ação rescisória pelo simples motivo de que o direito positivo é expresso. Só se concebe o cabimento e a procedência de ação rescisória fundada no art. 966, I do CPC tirada da hipótese de suspeição do art. 145, I do CPC quando o juiz já tiver proferido decisão (e que ela tenha passado em julgado) contrária aos interesses do autor (da ação rescisória) e mediante o cometimento de crime – que, como veremos adiante, se houve nesse caso será o de prevaricação.

Mas as razões encimadas demonstram como é equivocado pretender transplantar os requisitos da ação rescisória do art. 966, I do CPC para o reconhecimento das hipóteses de suspeição do art. 145, I do CPC, como quer Leonardo Greco.

Por outro lado, a intuição do nosso autor estava correta: há pontos de contato normativo entre as hipóteses de suspeição – não apenas a do art. 145, I – e os crimes indicados no art. 966, I do CPC. No próximo capítulo tentarei evidenciá-los.

 

3. Análise dogmática das possíveis e impossíveis relações normativas entre as hipóteses de suspeição do art. 145 do CPC e a hipótese de ação rescisória do art. 966, I do CPC

Tentarei verificar se e em que medida uma mesma conduta é valorada pelo sistema do direito positivo como antecedente tanto de uma hipótese de crime – e, a fortiori, de cabimento da ação rescisória – quanto de uma hipótese de suspeição.

 

3.1. Concussão e Suspeição

Nos termos do art. 316 do CP, concussão é exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.

Grosso modo, o juiz comete concussão quando se vale do cargo para exigir de outrem vantagem indevida. Basta que exija a vantagem indevida. Não são elementares do tipo nem o motivo nem o resultado da investida. É irrelevante para a configuração do crime de concussão que o juiz formule tal exigência movido por qualquer espécie de sentimento e que em razão dele obtenha a vantagem indevida.

O elemento normativo especial da ilicitude – «vantagem indevida» –, “é aquela que é ilícita, ilegal, injusta, contra lege, enfim, que não é amparada pelo ordenamento jurídico. Normalmente, a ilegalidade da vantagem é determinada por norma extra penal. Ademais, a vantagem pode ser presente ou futura”. Diverge-se quanto à necessidade de a vantagem ter natureza econômico-patrimonial ou possuir também natureza imaterial[6].

Nem sempre é fácil definir se aquilo que o juiz recebe é «vantagem indevida» ou simples recordação, regalo ou mimo – lícito aqui; ilícito ali. Não farei essa investigação. Partindo da premissa de que o juiz é suspeito quando recebe «presentes» de quem tem interesse na causa (art. 145, II, primeira parte, do CPC) e que «presentes» são reconduzíveis à noção de «vantagem indevida», do art. 316 do CP, a questão que se coloca é: há graus de intensidade da reprovabilidade que variam do juridicamente irrelevante, avançam para o juridicamente relevante apenas para fins de suspeição e, finalmente, alcançam o juridicamente relevante também para fins de concussão?

Penso que a resposta é negativa. Sem mediação legislativa, a construção de standards dogmáticos pela doutrina e pela jurisprudência esbarraria em dois problemas: de um lado, afrontaria a separação dos poderes e o princípio democrático, e, de outro, não conseguiria mais do que disfarçar e blindar critérios subjetivos com pretensa capa de racionalidade por maiores e mais honestos que sejam os esforços envidados. De modo que só se pode aceitar uma variação: ou a vantagem é devida – e, portanto, lícita – ou é indevida – e, portanto, ilícita. O esforço deve ser reduzido a discernir o que é juridicamente relevante ou não, tanto para fins de suspeição quanto de concussão.

Um ponto deve ser aclarado para estabelecer nexo normativo entre o crime do art. 316 do CP e a hipótese de suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC: este fala do juiz que recebe presente/vantagem indevida; aquele, do juiz que exige presente/vantagem indevida. Se é certo que receber é diferente de exigir, não é menos correto que se se recusa o juiz que recebe vantagem indevida, com muito maior razão há de se recusar o juiz que exige presente/vantagem indevida. Em rigorosamente nada o juiz que é corrompido por iniciativa de outrem é menos hostil ao direito do que o juiz que, corrompendo a si mesmo e a terceiros, sai à cata de vantagens indevidas.

Essa hipótese escancara os insolúveis paradoxos produzidos pelos que defendem que os róis de impedimento e suspeição são taxativos e de interpretação restritiva. Adotando esse posicionamento, o juiz que exige presente/vantagem indevida de uma parte não é suspeito e não pode ser recusado, mas suas decisões passadas em julgado podem ser desconstituídas pela via extrema da ação rescisória, dada a concussão. A recusa por suspeição, que é minus, torna-se mais difícil que a desconstituição da coisa julgada, que é majus. Tanto como na análise via microscópio, quanto mais de perto se analisa esse posicionamento mais nítidas se mostram as suas irregularidades.

Nem se diga que o juiz que exige vantagem indevida poderia ser recusado por incurso na hipótese do art. 145, IV, do CPC, pois tal proposta extrapola os limites semânticos do texto legal. O juiz interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes satisfaz seu desiderato sem formular qualquer exigência de vantagem indevida daquele a quem pretende beneficiar – basta que decida tendenciosamente. Objetivamente falando, juiz que exige vantagem indevida de uma das partes não tem interesse altruísta no resultado do processo em favor de uma das partes, mas interesse egoístico nos resultados que da sua investida criminosa podem advir. Penso que a solução adequada para considerar suspeito o juiz que exige vantagem indevida é aplicar, por interpretação extensiva, o art. 145, II, primeira parte, do CPC.

Retomando o diálogo com Leonardo Greco, se o juiz exigir «vantagem indevida» de seu inimigo ou de seu amigo íntimo haverá suspeição e concussão, mas não se estabelecerá nexo normativo entre o crime do art. 316 do CP à hipótese de suspeição do art. 145, I do CPC. Aquele específico vínculo subjetivo será necessário e suficiente à consumação da suspeição do art. 145, I do CPC, mas meramente acidental à consumação da concussão. Suspeição do art. 145, I do CPC já há apenas em razão da existência da relação de amizade íntima ou inimizade, independentemente de qualquer exigência de vantagem indevida pelo juiz. Concussão só há porque exigiu vantagem indevida, independentemente de haver ou não relação de amizade íntima ou inimizade. Em casos assim, pode-se até dizer que há suspeição dobrada: o juiz é suspeito porque exigiu vantagem indevida (hipótese do art. 145, II, primeira parte, do CPC) e porque é amigo íntimo ou inimigo da parte e/ou do advogado (hipótese do art. 145, I do CPC). E é tão verdade que as figuras são distintas e autônomas entre si que se o juiz formular a exigência e não possuir o referido vínculo subjetivo, haverá crime de concussão e a hipótese de suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC, e, por outro lado, se ele possuir o referido vínculo subjetivo e não exigir vantagem indevida, haverá apenas a suspeição do art. 145, I do CPC – e poderá haver, como se verá, crime de prevaricação. Portanto, relação de amizade íntima ou inimizade e solicitação ou recebimento de vantagem indevida são hipóteses distintas de suspeição e se relacionam (necessária ou episodicamente) com crimes igualmente distintos. De modo que é certa a inexistência de nexo normativo entre a hipótese de suspeição do art. 145, I do CPC e o crime de concussão.

Conclusão: há nexo normativo insolúvel entre o art. 316 do CP e o art. 145, II, primeira parte, do CPC. O juiz que exige vantagem indevida necessariamente comete crime de concussão e é suspeito. A mesma conduta constitui ilícito penal e procedimental. Inexiste o cometimento daquele crime sem incorrer em tal hipótese de suspeição – e vice-versa. Pela via do crime de concussão o art. 966, I do CPC consagra hipótese de ação rescisória contra decisão proferida por juiz suspeito. A causa é simultaneamente de concussão e suspeição.

 

3.2. Corrupção Passiva e Suspeição

Nos termos do art. 317 do CP, corrupção passiva é solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.

Grosso modo, o juiz comete corrupção passiva quando se vale do cargo para solicitar, receber ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem indevida. Não é elementar do tipo o motivo por que pratica tais condutas. É irrelevante para a configuração do crime de corrupção passiva que o juiz solicite ou receba vantagem ou promessa de vantagem indevida impulsionado por essa ou aquela espécie de sentimento.

O elemento normativo especial da ilicitude – «vantagem indevida» – é aquela “ilícita, ilegal, injusta ou contra lege, isto é, não amparada pelo ordenamento jurídico”, podendo ser determinada por norma extrapenal; de gozo presente ou futuro e ter qualquer natureza, ou seja, “patrimonial, quando a vantagem exigida referir-se a bens ou valores materiais; não patrimonial, de valor imaterial, simplesmente para satisfazer sentimento pessoal, buscar uma forma de reconhecimento, por pura vaidade, como, por exemplo, a concessão de um título honorífico, a conferência de um título de graduação, enfim,, a vantagem indevida pode não ter necessariamente valor econômico”[7].

Fala-se que “não é qualquer oferta, qualquer regalo ou qualquer mimo que terá idoneidade material ou, se preferirem, relevância social de forma a lesar o bem jurídico tutelado materializando a tipicidade do crime de corrupção”. Sem prejuízo das inescapáveis particularidades do caso concreto, argumenta-se que não constituem crime, exemplificativamente, as gratificações usuais, de pequena monta, por serviços extraordinários, as tradicionais “boas festas” de Natal ou Ano Novo, as dádivas de galardão de um mérito excepcionais etc.[8]

Nem sempre é fácil definir se aquilo que o juiz recebe é «vantagem indevida» ou simples recordação, regalo ou mimo – lícito aqui; ilícito ali. Não farei essa investigação. Partindo da premissa de que o juiz é suspeito quando recebe «presentes» de quem tem interesse na causa (art. 145, II, primeira parte, do CPC) e que «presentes» são reconduzíveis à noção de «vantagem indevida», do art. 316 do CP, a questão que se coloca é: há graus de intensidade da reprovabilidade que variam do juridicamente irrelevante, avançam para o juridicamente relevante apenas para fins de suspeição e, finalmente, alcançam o juridicamente relevante também para fins de caracterização de corrupção passiva?

Penso que a resposta é negativa. Sem mediação legislativa, a construção de standards dogmáticos pela doutrina e pela jurisprudência esbarraria em dois problemas: de um lado, afrontaria a separação dos poderes e o princípio democrático, e, de outro, não conseguiria mais do que disfarçar e blindar critérios subjetivos com pretensa capa de racionalidade por maiores e mais honestos que sejam os esforços envidados. De modo que só se pode aceitar uma variação: ou a vantagem é devida – e, portanto, lícita – ou é indevida – e, portanto, ilícita. O esforço deve ser reduzido a discernir o que é ou não juridicamente relevante, tanto para fins de suspeição quanto de corrupção passiva.

Tudo considerado, há claro nexo normativo entre o art. 317 do CP e o art. 145, II, primeira parte, do CPC, segundo o qual é suspeito o juiz que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa. Não é nada forçado defender que os “presentes” que configuram suspeição podem ser facilmente reconduzidos a pelo menos uma das hipóteses de “vantagem indevida” que configura crime de corrupção passiva.

Considero inevitável estender essa hipótese de suspeição à outra conduta do juiz, a de solicitar vantagem indevida. A hipótese não é contemplada textual e expressamente nos incisos do art. 145 do CPC, mas se é recusável o juiz que recebe presente/vantagem indevida com muito maior deve ser aquele que a solicita, caso em que a corrupção é praticada por iniciativa dele. Em nada o juiz que é corrompido por iniciativa de outrem é menos hostil ao direito do que o juiz que corrompe a si mesmo e a terceiros – como, aliás, deixa claro, para fins criminais, o art. 317 do CP. Inexiste razão para não incidir o mesmo raciocínio à suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC.

Se assim não for, reaparecerão os insolúveis paradoxos produzidos por aqueles que defendem que os róis de impedimento e suspeição são taxativos e de interpretação restritiva. Teremos que o juiz que solicita presente/vantagem indevida de uma parte não é suspeito e não pode ser recusado, mas suas decisões passadas em julgado podem ser desconstituídas pela via extrema da ação rescisória, dada a corrupção passiva. E assim, a recusa por suspeição, que é minus, torna-se mais difícil que a desconstituição da coisa julgada, que é majus. De novo avultam as irregularidades desde uma mirada no detalhe.

Nem se diga que o juiz que solicita vantagem indevida poderia ser recusado por incurso na hipótese do art. 145, IV, do CPC. A proposta extrapola claramente os limites semânticos dos enunciados em liça. Ora, o juiz interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes satisfaz seu desiderato sem formular qualquer solicitação de vantagem indevida daquele a quem pretende beneficiar. Para tanto, basta que decida tendenciosamente. O juiz que solicita vantagem indevida de uma das partes não tem interesse altruísta no resultado do processo em favor de uma das partes, mas interesse egoístico nos resultados que da sua investida criminosa podem advir. Daí por que a solução para considerar suspeito o juiz que solicita vantagem indevida é aplicar, por interpretação extensiva, o art. 145, II, primeira parte, do CPC.

Resgatando o diálogo com Leonardo Greco, se o juiz solicitar ou receber «vantagem indevida» ou promessa de «vantagem indevida» de um inimigo ou sentir-se encorajado a formulá-la a seu amigo íntimo, haverá suspeição e corrupção passiva, mas não se estabelecerá nexo normativo entre o art. 145, I do CPC e o art. 317 do CP. Aquele específico vínculo subjetivo será necessário e suficiente à consumação da suspeição do art. 145, I do CPC, mas meramente acidental à consumação da corrupção passiva. Suspeição do art. 145, I do CPC já há apenas em razão da existência da relação de amizade íntima ou inimizade, independentemente de qualquer solicitação ou recebimento de vantagem indevida pelo juiz. Corrupção passiva só há porque solicitou ou recebeu vantagem indevida, independentemente de haver ou não relação de amizade íntima ou inimizade. em casos assim, pode-se até dizer que há suspeição dobrada: o juiz é suspeito porque solicitou ou recebeu vantagem indevida (hipótese do art. 145, II, primeira parte, do CPC) e porque é amigo íntimo ou inimigo da parte e/ou do advogado (hipótese do art. 145, I do CPC). Tanto as figuras são distintas e autônomas entre si que se o juiz solicitar ou receber efetiva ou promessa vantagem indevida haverá crime de corrupção passiva e a hipótese de suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC, mas se ele possuir o referido vínculo subjetivo e não solicitar nem receber vantagem indevida, haverá apenas a suspeição do art. 145, I do CPC – e poderá haver, como se verá, crime de prevaricação. Portanto, a relação de amizade íntima ou inimizade e solicitação ou recebimento de vantagem indevida são hipóteses distintas de suspeição e que se relacionam (necessária ou episodicamente) com o cometimento de crimes igualmente distintos. De modo que é certa a inexistência de nexo normativo entre a hipótese de suspeição do art. 145, I do CPC e o crime de corrupção passiva.

Conclusão: há nexo normativo insolúvel entre o art. 317 do CP e o art. 145, II, primeira parte, do CPC. O juiz que solicita vantagem indevida necessariamente comete crime de corrupção passiva e é suspeito. A mesma conduta constitui ilícito penal e procedimental. Não há um sem o outro. Inexiste o cometimento daquele crime sem incorrer em tal hipótese de suspeição – e vice-versa. Assim, pela via do crime de corrupção passiva o art. 966, I do CPC consagra hipótese de ação rescisória contra decisão proferida por juiz suspeito.

 

3.3. Prevaricação e Suspeição

Nos termos do art. 319 do CP, prevaricação é retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319).

Grosso modo, o juiz comete prevaricação quando retarda ou deixa de praticar ato de ofício, ou pratica-o contra disposição expressa de lei, com a finalidade de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Ao correlacionar o retardar, o omitir e o praticar ato de ofício contra disposição expressa de lei à «satisfação de interesse ou sentimento pessoal», o dispositivo arrola a finalidade da conduta do agente como elemento do tipo. Aqui, o «interesse ou sentimento pessoal do juiz», que pode ser material ou moral e deve ser doloso – esse tipo penal não admite a modalidade culposa[9] – é elemento subjetivo do tipo, imprescindível à consumação do crime. A prevaricação suplica a demonstração da conduta (retardar, omitir ou praticar ato de ofício contra disposição expressa de lei) e do “especial fim de agir”, que é “satisfazer interesse ou sentimento pessoal” – do juiz[10].

A elementar subjetiva do «satisfazer interesse ou sentimento pessoal» pode decorrer de piedade, paixão, emoção, afeição, simpatia, dedicação, benevolência, caridade, ódio, parcialidade, despeito, desejo de vingança, paixão política, prazer da prepotência ou do mandonismo, subserviência, receio de molestar os poderosos etc.[11]

Claramente, o juiz pratique atos de beneficiamento para «satisfazer interesse ou sentimento pessoal» de amizade íntima ou inimizade. Como visto acima, a doutrina arrola a parcialidade como um dos sentimentos pessoais que podem configurar prevaricação, e o juiz é suspeito quando é amigo íntimo ou inimigo da parte e/ou do advogado, ex vi do art. 145, I do CPC. Não por acaso, a doutrina aponta como exemplo de prevaricação cometida por juiz a sua permanência no procedimento, praticando atos em geral, quando está sabidamente impedido de nele atuar[12].

Por identidade de razões, o mesmo vale para os casos de suspeição. Ainda que, como já se viu, seja possível – e necessário – fazer uma abordagem mais abrangente da garantia da imparcialidade[13], é certo que as hipóteses de impedimento e suspeição atuam no interior do sistema de direito positivo como imputações normativas de parcialidade. À luz do art. 319 do CP c/c o art. 145, I do CPC, comete crime de prevaricação o juiz que, sabendo-se suspeito, permanece no procedimento, praticando atos em geral, inclusive decisórios, para «satisfazer interesse ou sentimento pessoal» de amizade íntima ou inimizade com a parte e/ou o respectivo advogado.

Portanto, entre os interesses ou sentimentos pessoais que levam o juiz a prevaricar inserem-se os de amizade íntima ou inimiza do juiz com os litigantes ou seus respectivos patronos. Destarte, estabelece-se um inequívoco nexo normativo entre o art. 319 do CP e o art. 145, I do CPC. O juiz que prevarica motivo por interesse ou sentimento pessoal de amizade íntima com as partes ou seus advogados é suspeito.

Mas ainda é necessário esclarecer um ponto: para fins criminais, isto é, de caracterização do crime de prevaricação, o elemento subjetivo estará satisfeito com a mera ciência da causa de suspeição do art. 145, I do CPC e permanência do juiz no processo ou, além disso, também é necessária a efetiva prática de atos de beneficiamento ou perseguição da parte e/ou do respectivo advogado?

Pedro Ferreira Leite Neto enfrentou a questão. Destaco as seguintes conclusões: “a) A garantia fundamental do devido processo legal não prescinde em hipótese alguma do rigoroso respeito, pelo juiz de direito, às regras de processo civil e de processo penal disciplinadoras do impedimento e da suspeição”; “b) A previsão criminal da prevaricação constitui importante e necessário mecanismo de controle social a bem da proteção do devido processo legal”; “c) A prevaricação pode se configurar como desdobramento de uma hipótese de impedimento ou de suspeição do juiz, embora nem toda causa destas espécies conduza, automaticamente, àquela figura penal.”; “d) Haverá claro indicador de prevaricação no comportamento do juiz que traduzir doloso e inaceitável desrespeito a alguma hipótese legal processual indicativa de parcialidade (de impedimento ou de suspeição), e que permita ser associado ao propósito do mesmo magistrado de satisfazer um interesse ou um sentimento pessoal que lhe seja próprio, assim se aperfeiçoando o elemento subjetivo do tipo penal”; “e) Tal elemento subjetivo do tipo de prevaricação não precisa ser necessariamente distinto daquele que revista a própria causa configuradora do dever (não respeitado) de afastamento do processo”; “f) A contrariedade à expressa disposição legal, prevista no artigo 319 do CP, não precisa sempre envolver preceito normativo substantivo. Daí porque não é impossível a incursão na prevaricação mesmo quando o magistrado aplique sem qualquer mácula o direito material ao caso que lhe é submetido”.[14]

Quanto às conclusões a), b) e f), só posso manifestar minha concordância. Quanto à última, nada mais acertado: se a imparcialidade é uma garantia contrapoder do cidadão – e a parcialidade constitui abuso de poder por desvio de finalidade[15] –, a decisão proferida por juiz impedido ou suspeito é inválida per se, ainda que seu conteúdo seja irretocável.

Parece-me, porém, que a conclusão c), notadamente por sua ressalva final – “embora nem toda causa destas espécies conduza, automaticamente, àquela figura penal” – é algo incompatível com a conclusão d), segundo a qual a permanência de juiz que se enquadra em hipótese de impedimento e suspeição é “claro indicador” do “propósito do mesmo magistrado de satisfazer um interesse ou sentimento pessoal que lhe seja próprio”, e também com a conclusão e), notadamente quando diz que o elemento subjetivo do tipo de prevaricação “não precisa ser necessariamente distinto daquele que revista a própria causa configuradora do dever (não respeitado) de afastamento do processo”.

A interpretação dessas conclusões deve levar em consideração os argumentos lançados no corpo do texto. E de lá, destaco duas: “a mera configuração de suspeição ou impedimento não leva, invariavelmente, a uma prevaricação. É preciso na maioria dos casos que venha associada a outros elementos concretos evidenciando que o julgador esteja ‘torcendo a ordem natural do feito’, praticando atos manifestamente desarrazoados”; e “O controle social que é reclamado em defesa da igualdade e da justiça quando a parcialidade manifesta do juiz resulta em prejuízo ao devido processo legal nos parece justificar plenamente a intervenção do direito penal, colocando seu oneroso instrumental em combate desta forma de agressão mais significativa de interesses humanos fundamentais.”[16].

Tudo considerado, não parece haver outra conclusão possível: para o autor, a caracterização do impedimento ou da suspeição, por si só, isto é, sem o reconhecimento da prática de efetivos atos de beneficiamento ou perseguição, configura parcialidade para fins procedimentais de suspeição, mas não para fins criminais de prevaricação. É como devem ser interpretadas as conclusões c), d) e e). Adotarei o mesmo posicionamento – e se não é o do referido autor, fica sendo o meu.

Conclusão: (i) demonstrado que o juiz é amigo íntimo e/ou inimigo das partes ou dos respectivos advogados, isso, por si só, configura parcialidade para fins procedimentais de suspeição; (ii) demonstrado que o juiz é amigo íntimo ou inimigo das partes ou dos respectivos advogados e que praticou efetivos atos de beneficiamento ou de perseguição, há parcialidade tanto para fins procedimentais de suspeição e, se for o caso, de acolhimento de ação rescisória e para fins criminais de condenação por crime de prevaricação.

À guisa de sistematização, pode-se dizer: é suspeito e prevaricador o juiz que atua com a intenção deliberada de afagar o sentimento pessoal de amizade íntima ou inimizade com a parte e/ou o respectivo advogado, praticando efetivos atos de beneficiamento ou de perseguição, atando-se indissoluvelmente os arts. 145, I do CPC e 319 do CP; é apenas suspeito o juiz que, embora seja amigo íntimo ou inimigo de uma das partes e/ou dos respectivos advogados, não pratica nenhum efetivo ato de beneficiamento ou de perseguição, incicindo apenas o art. 145, I do CPC.

O sistema do direito positivo estrutura racionalmente a intensidade das sanções aplicáveis em tais casos. Como a procedência da ação rescisória produz efeitos jurídicos mais drásticos (rescisão de decisão passada em julgado – sem prejuízo da responsabilização criminal e administrativo-disciplinar do juiz), é racional exigir um standard de prova mais elevado: o cometimento do crime de prevaricação. Diversamente, como a procedência da arguição de suspeição produz, ao menos em princípio, efeitos menos drásticos (de ordinário, aqueles vertidos nos §§ 5º a 7º do art. 146 do CPC, sem punições penais e administrativo-disciplinares, que exigem o elemento subjetivo do dolo), é racional exigir um standard de prova menos elevado: basta comprovar que o juiz é amigo íntimo ou inimigo da parte ou do advogado ou que atua para satisfazer interesse ou sentimento pessoal de qualquer outra natureza, independentemente da prova de qualquer ato concreto de beneficiamento ou perseguição.

Eventual demonstração da hipótese de suspeição acompanhada de provas de que o juiz efetivamente atuou para acudir seu interesse ou sentimento pessoal de amizade íntima, inimizade ou de qualquer outra natureza é acidental e desnecessária para fins de reconhecimento da suspeição, mas imprescindível para o acolhimento da ação rescisória. Por isso, se se descobrir depois do trânsito em julgado que o juiz sentenciante era amigo íntimo ou inimigo das partes e/ou dos advogados, mas que não praticou nenhum ato de efetivo beneficiamento ou perseguição, não haverá crime de prevaricação e não se poderá falar em ação rescisória fincada no art. 966, I do CPC.

Retomando o diálogo com Leonardo Greco, percebe-se que há uma nítida relação possível entre a hipótese de suspeição do art. 145, I do CPC e o crime do art. 319 do CP. Sem dúvida, a relação de amizade íntima ou inimizade é um dos tipos de «interesse ou sentimento pessoal» cuja realização podem inquinar de prevaricador o juiz. Mas mesmo aqui é impossível concordar com o autor no que concerne ao reconhecimento da suspeição. Para esses estritos fins, é suficiente demonstrar que o juiz possui aquele vínculo subjetivo com a parte e/ou seu advogado, ou seja, não é necessário demonstrar que foram praticados efetivos atos de beneficiamento ou de perseguição, com decisões frutos de prevaricação.

 

3.4. Nexos normativos entre o crime de prevaricação e outras hipóteses de suspeição

Parece-me possível identificar nexo normativo entre o art. 319 do CP e outras hipóteses de suspeição do art. 145 do CPC.

Com efeito, o juiz é suspeito quando aconselha uma das partes acerca do objeto da causa (art. 145, II, segunda parte, do CPC). Reforça essa reprimenda a vedação ao magistrado de manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem (art. 36, III, primeira parte, da LOMAN). Comprovado que o juiz praticou essas condutas atender “interesse ou sentimento pessoal” diferente da relação de amizade íntima ou inimizade com as partes ou seus advogados, com efetivo beneficiamento ou perseguição de qualquer deles, haverá prevaricação e suspeição. Mutatis mutandis, aplicam-se ao art. 145, II, segunda parte, do CPC as mesmas considerações que identificam o nexo normativo entre o art. 319 do CP e o art. 145, I do CPC.

O juiz também é suspeito quando subministra meios para atender às despesas do litígio (art. 145, II, terceira parte, do CPC). Comprovado que o juiz praticou essas condutas para atender “interesse ou sentimento pessoal” diferente da relação de amizade íntima ou inimizade com as partes e/ou seus advogados, com efetivo beneficiamento ou perseguição de qualquer deles, haverá prevaricação e suspeição. Mutatis mutandis, aplicam-se ao art. 145, II, terceira parte, do CPC as mesmas considerações que identificam o nexo normativo entre o art. 319 do CP e o art. 145, I do CPC.

O juiz também é suspeito quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive (art. 145, III do CPC). Comprovado que o juiz permaneceu no processo e praticou efetivos atos de beneficiamento ou perseguição, conforme o caso, para atender “interesse ou sentimento pessoal” diferente da relação de amizade íntima ou inimizade com as partes e/ou seus advogados, haverá prevaricação e suspeição. Mutatis mutandis, aplicam-se ao art. 145, III do CPC as mesmas considerações que identificam o nexo normativo entre o art. 319 do CP e o art. 145, I do CPC.

Finalmente, o juiz é suspeito quando interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes (art. 145, IV do CPC). Comprovado que o juiz praticou efetivos atos de beneficiamento ou de perseguição das partes para atender “interesse ou sentimento pessoal” diferente da relação de amizade íntima ou inimizade com as partes e/ou seus advogados, haverá prevaricação e suspeição. Mutatis mutandis, aplicam-se ao art. 145, IV do CPC as mesmas considerações que identificam o nexo normativo entre o art. 319 do CP e o art. 145, I do CPC.

Em suma, é possível entrever nexo normativo entre o art. 319 do CP e os incisos I, II, segunda e terceira partes, III e IV do art. 145 do CPC. Mas não se pode perder de vista que, para fins procedimentais de suspeição, basta demonstrar a hipótese legal (suporte fático menos complexo), ao passo em que para fins criminais de prevaricação deve se somar a demonstração da prática de efetivos atos de beneficiamento (suporte fático mais complexo).

 

4. Conclusão

Em face de tudo o que disse acima e tentando sistematizar o diálogo com Leonardo Greco, posso concluir que com ele concordâncias e discordâncias em relação à sua coarctação do art. 966, I do CPC e do art. 145, I do CPC.

Concordo com ele quando diz que a procedência da ação rescisória baseada no art. 966, I do CPC, especificamente por crime de prevaricação, exige a demonstração da relação de amizade íntima ou inimizade com as partes ou seus advogados mais a efetiva prática de atos de beneficiamento ou de perseguição. Pode-se dizer que os standards argumentativos e probatórios dessa ação autônoma de impugnação de decisão judicial são rigorosamente os mesmos exigidos na respectiva ação penal.

Discordo dele quando diz que o acolhimento da arguição da suspeição exige os mesmos requisitos, pois penso que nesse caso basta demonstrar a existência daquele específico vínculo subjetivo. Como tantas vezes já referido, para esses fins basta a comprovação da hipótese descrita nos róis legais de suspeição, independentemente de o juiz já ter proferido decisão contrária aos interesses do arguente e fruto de prevaricação.

Considero um erro, ainda, defender que a hipótese de suspeição do art. 145, I, CPC, implica nos crimes de prevaricação, concussão e corrupção passiva – o que, como se viu, é totalmente insustentável em relação aos dois últimos tipos penais.

Mesmo quem aceita o sistema binário de impedimento e suspeição tem de reconhecer que, pelo menos em alguns casos, cabe ação rescisória contra decisão proferida por juiz suspeito, isso pela via do art. 966, I do CPC, dada a imbricação normativa entre os tipos penais ali referidos e as hipóteses de suspeição do art. 145 do CPC.

Não é possível afirmar categoricamente que o antecedente da norma de rescindibilidade do art. 966, I do CPC é/não é o mesmo da norma de suspeição. Há casos em que eles coincidem integralmente, mas outros em que eles coincidem eventual e parcialmente. É possível sistematizar assim:

a) Há nexo normativo entre o art. 966, I do CPC, pelo crime de concussão (art. 316 do CP), com a hipótese de suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC, por interpretação extensiva (quanto à conduta de exigir presente/vantagem indevida), caso em que há coincidência integral entre os elementos do suporte fático das hipóteses de suspeição e de rescindibilidade. Quando o juiz é suspeito (por interpretação extensiva) porque exige presente/vantagem indevida ele também comete crime de concussão. Não há um sem o outro.

b) Há nexo normativo entre o art. 966, I do CPC, pelo crime de corrupção passiva (art. 317 do CP), com a hipótese de suspeição do art. 145, II, primeira parte, do CPC, por interpretação literal (quando à conduta de receber presente/vantagem indevida) e extensiva (quanto à conduta de solicitar presente/vantagem indevida), caso em que há coincidência integral entre os elementos do suporte fático das hipóteses de suspeição e de rescindibilidade. Quando o juiz é suspeito porque recebe e (por interpretação extensiva) solicita presente/vantagem indevida ele também comete crime de corrupção passiva. Não há um sem o outro.

c) Há nexo normativo entre o art. 966, I do CPC, pelo crime de prevaricação (art. 319 do CP) com as hipóteses de suspeição do art. 145, I, II, segunda e terceira partes, III e IV, mas há coincidência parcial entre os elementos do suporte fático das hipóteses de suspeição e de rescindibilidade. Quando o juiz é suspeito porque é amigo íntimo ou inimigo das partes ou dos respectivos advogados, aconselha alguma das partes acerca do objeto da causa, subministra meios para atender às despesas do litígio, é credor ou devedor de qualquer das partes ele, seu cônjuge ou companheiro ou parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive, e é interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes ele não necessariamente comete crime de prevaricação. Para tanto, é necessário demonstrar que ele praticou efetivos atos de beneficiamento ou perseguição. Sem estes, haverá apenas suspeição; com eles, também crime de prevaricação.

É incorreto dizer que o juiz só é suspeito quando tiver cometido os crimes indicados no art. 966, I do CPC. Há casos em que sim, mas há casos em que não.

É correto dizer que em todas as hipóteses de cabimento da ação rescisória previstas no art. 966, I do CPC a sentença foi proferida por juiz suspeito.

Nem toda decisão proferida por juiz suspeito configura crime nem dá ensejo a ação rescisória, mas todo juiz que comete os crimes de concussão, corrupção passiva e prevaricação é suspeito. O juiz pode ser suspeito sem cometer tais crimes, mas ele não pode cometer tais crimes sem ser suspeito.

Com esses cuidados, é correto dizer que o art. 966, I do CPC consagra o cabimento de ação rescisória contra decisão proferida por juiz suspeito.

 

Notas e Referências

[1] Por todos: ROCHA, Márcio Oliveira. Por uma Nova Dogmática da Ordem Pública no Direito Processual Civil Contemporâneo. Tese (doutorado em direito). Data da defesa: 18/12/2017. 231f. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017, p. 201.

[2] Defendendo o regime jurídico binário: NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, págs. 595 e 602; GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. V. I. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 330. Defendendo o regime jurídico unitário: PEREIRA, Mateus Costa. Código de Processo Civil Comentado. Coord. Helder Moroni Câmara. São Paulo: Almedina, 2016, págs. 236-237. Denunciando a artificialidade do regime binário de vícios de parcialidade: GONÇALVES, Marcelo Barbi. Teoria Geral da Jurisdição. Salvador: JusPodivm, 2020, págs. 326-327. Reconhecendo o regime jurídico binário de lege lata, mas criticando-o: ABELHA, Marcelo. Manual de Direito Processual Civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, versão eletrônica; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo CPC Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 245.

[3] No mesmo sentido: COSTA, Eduardo José da Fonseca. As garantias arquifundamentais do processo: não-criatividade e imparcialidade. Empório do Direito, Florianópolis, 19 abr. 2018. Coluna Garantismo Processual. Disponível em:  https://bit.ly/32WIEM5, acesso em 21.09.2020).

[4] SOUSA, Diego Crevelin de. Distinção entre impedimento e suspeição. Empório do Direito, Florianópolis, 29 jul. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2DUNsIq, acesso em 21.09.2020.

[5] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. V. I. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 330.

[6] BITENCOURT, César Roberto. Cit. p. 100. Na opinião do autor, “a vantagem indevida (ilícita, ilegal) pode ser atual ou futura; pode ser patrimonial ou não patrimonial, para si ou para terceiro, direta ou indireta, e a exigência indevida deve ser feita em razão da função, ainda que fora dela”. (Op. cit, p. 101).

[7] BITENCOURT, César Roberto. Cit. p. 118 e ss.

[8] Op. cit., p. 121.

[9] MASSON, Cleber. Direito Penal. V. 3. São Paulo: Método, 2020, versão eletrônica, posição 632.

[10] BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado... p. 144.

[11] BITENCOURT, Cézar Roberto. Cit., p. 145; PRADO, Luis Régis. Tratado de Direito Penal Brasileiro. V. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, versão eletrônica, posição 362.

[12] BITENCOURT, Cézar Roberto. Cit., p. 143.

[13] A propósito, conferir: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério. Proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018, passim; RITTER, Ruiz. A Imparcialidade no Processo Penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Dissertação (mestrado em Direito). 197/f. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016, passim; NUNES, Dierle. LUD, Natanael. PEDRON, Flávio. Desconfiando da Imparcialidade dos Sujeitos Processuais. Um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. Salvador: JusPodivm, 2018, passim.

[14] LEITE NETO, Pedro Ferreira. Prevaricação, imparcialidade do juiz e o devido processo. Consultor Jurídico, São Paulo, 25 set. 2012. Disponível em: https://bit.ly/35ZIFRp, acesso em 21.09.2020.

[15] Diferenciando arbítrio em sentido estrito, usurpação e disfunção (esta subdividida em abuso de poder – que, por sua vez, se subdivide em excesso de poder ou desvio de finalidade –, deficiência e negligência – que, por sua vez, se subdivide em omissão, insuficiência e ineficiência): COSTA, Eduardo José da Fonseca. Arbítrio. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor.

[16] LEITE NETO, Pedro Ferreira. Cit.

 

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