#82 - O art. 464, § 3º, CPC e a – singela – questão do contraditório    

05/10/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

1 Breve alusão à expert witness do direito estadunidense

A prova técnica simplificada do art. 464, § 3º, CPC lembra a expert witness ou expert testimony do direito estadunidense, sem com ela se confundir. No direito estadunidense, o mecanismo “típico” da prova pericial é a condição de “testemunha” do perito; por esse motivo fala-se em testemunha especialista (expert witness), apresentada pela própria parte, interrogada e contra-interrogada (cross-examination) em juízo.

Sendo um ônus dos sujeitos parciais, os quais buscam convencer os jurados naquele país, parcela da doutrina entende que a escolha/contratação de testemunhas especialistas repousaria na disposição do profissional em encampar a(s) tese(s) favorável(is) ao contratante; outrossim, a seleção do perito pressuporia uma boa desenvoltura do experto perante a corte, recaindo em profissionais que ostentem clareza na argumentação e capacidade de persuasão. Aliás, atribui-se a esses fatores o surgimento de um mercado de supostos peritos mercenários,[1] é dizer, mercado formado por profissionais que, em troca de dinheiro, sustentariam qualquer tese perante o júri. Nesse orbe, em tom de censura, colhe-se posição doutrinária afirmando que a parcialidade da expert witness seria presumida, visto que funcionariam como autênticos advogados travestidos de peritos.[2]

Para refrear a suposta influência do mercado sobre a qualidade da perícia, a Suprema Corte daquele país fixou critérios à admissibilidade da prova pericial em julgamentos considerados paradigmáticos,[3] assim como a própria legislação foi reformada (2000) para robustecer a necessidade de um controle da prova.[4] Não é ocioso recordar que o modelo do júri (juízes de fato, supostamente, fact-finders) é adotado tanto em procedimentos criminais quanto em procedimentos cíveis, malgrado apenas um número reduzido de casos seja levado à fase de julgamento na atualidade.[5]

 

2 Exame do art. 464, §§ 2o e 3º, CPC com breve alusão à legislação espanhola

No direito brasileiro, exige-se que o perito seja imparcial (art. 148, I c/c art. 156, §4o e c/ o art. 467, todos do CPC), o que não é excepcionado quando a escolha é fruto de negócio processual. Entre outros deveres, o experto há de proceder com veracidade, sob pena de inabilitação por 02 a 05 anos (art. 158, CPC), sem prejuízo da persecução penal por falsa perícia (art. 342 do Código Penal). No tocante aos assistentes técnicos, a lei dispensa a escrutinação de imparcialidade (art. 466, §1o), muito embora seja prática intolerável a apresentação de pareceres destituídos de fundamentação técnica, prática e/ou científica.

Em um paralelo com o direito processual espanhol, releva destacar que nesse país se exige que os expertos em geral, orientem-se com a máxima objetividade possível (art. 335, 2, Ley de Enjuiciamiento Civil),[6] no que ressai a importância das causas de recusa.[7] Os assistentes também não podem ser recusados, mas também devem proceder com a máxima objetividade possível.[8] É oportuno destacar a existência de um controle/influência sobre a atuação dos expertos contratados pelas partes por meio das “tachas”. Inconfundíveis às recusas, as “tachas” se prestam a influenciar o julgador ao tempo da valoração da prova e, pois, do parecer acostado aos autos por uma das partes; caso em que caberá à contraparte, em vista da configuração de alguma situação assumida por lei como passível de macular a atuação do profissional (de agir com parcialidade ou não buscar a máxima objetividade), suscitá-la e prová-la nos autos,[9] sob pena de preclusão.[10]

À luz do CPC brasileiro é possível sustentar que a prova técnica simplificada será fruto da: i) escolha de um experto pelas partes (art. 464, § 1o c/c art. 471); inexistindo consenso entre os litigantes, ii) da designação de um perito oficial pelo magistrado. Para todos os casos, consoante § 4o do art. 464, é indispensável que o profissional tenha formação acadêmica na área sobre o qual será indagado, criticável limitador de seu emprego. Não parece possível cogitar uma terceira hipótese, porquanto a perícia simplificada não se cofunde à inquirição do perito e/ou assistentes técnicos em audiência à prestação de esclarecimentos adicionais, é dizer, após apresentar o laudo e responder os quesitos suplementares.

No ensejo, o art. 421, § 2o, do CPC/73 autorizava procedimento parecido com o do atual art. 464, sem com ele se confundir. O dispositivo atual parece estar mais próximo do art. 35, caput, da Lei 9.099/95,[11] com o cuidado em perceber que texto do art. 464 é mais sofisticado, não subordinando a escolha do experto ao universo daqueles profissionais que gozariam da confiança do juízo – a mesma orientação deve ser prestigiada nos juizados.

Na prova técnica simplificada o laudo (escrito) é dispensado, sendo substituído por informações que serão prestadas em audiência, à medida em que o experto for interrogado pelas partes, o que poderá ser otimizado pelo eventual emprego de recursos tecnológicos. A lamentável redação do § 3o do art. 464, CPC não pode induzir a falsa crença de que caberia ao magistrado formular perguntas, ao passo que os sujeitos parciais seriam meros espectadores, o que, minimamente, ofende as garantias processuais do contraditório e da imparcialidade.[12] Por ora, tratemos apenas do primeiro.

O art. 464 reza que “a prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico”. Não é possível interpretar o artigo como se a inquirição fosse poder do magistrado e as partes, sobre as quais recaem encargos probatórios, titulares das garantias processuais, meros espectadores. O art. 464 deve respeito à Constituição; obviedade mencionada no art. 1º do CPC. E a Constituição, no art. 5º, LV, assegura aos litigantes o direito ao contraditório em ambas as dimensões (formal e material).  

A dimensão formal está consubstanciada na bilateralidade da audiência (ciência do ato + possibilidade de reação). Na dimensão material, o contraditório é garantia de influência/participação e não surpresa, sendo a prova meio, por excelência, de influir no convencimento do julgador (de participar na formação do provimento jurisdicional); o contraditório é o principal fundamento constitucional do direito à prova. Provar é exercer o contraditório, pois.

A despeito da redação do art. 464, § 3º, CPC, é inegável que as partes poderão inquirir o profissional – a quem cabe proceder com a máxima objetividade possível –, por seus advogados, em razão das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório que orientam o procedimento da prova, e não 'apenas' o juiz.[13] E mais, entendemos que as partes poderão impugnar o grau de conhecimento atribuído pelo juiz ao considerado especialista, requerendo a exibição de sua formação curricular ou apresentando pareceres técnicos ou textos científicos de outros tantos e considerados especialistas na matéria em debate, adicionando esclarecimentos, complementações ou retificações ao procedimento ou ao conteúdo probatório, em obediência às inafastáveis garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.[14] Tudo a ser considerado pelo magistrado por ocasião de sua decisão.

 

3 À guisa de conclusão

Cinco são as situações jurídicas probatórias ativas: requerer, produzir, participar da produção, manifestar-se sobre e ter a prova produzida considerada pelo juiz. aturalmente, portanto, as partes têm o direito de participar da produção da prova técnica simplificada. À compreensão do art. 464, § 3º, CPC, impõe-se suprimir o trecho “pelo juiz”, passando o dispositivo a prescrever que “a prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico”. Cuida-se de aplicação da técnica de declaração parcial de nulidade com redução de texto.[15]

 

Notas e Referências

[1] Ver HAACK, Susan. The expert witness: lessons from de U.S. experience. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2712480. Acesso em: 10 mai. 2016.

[2] TARUFFO, Michele. A prova. Trad. João Gabriel Couto. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 88.

[3] O tema foi aprofundado em outro trabalho: Prova técnica simplificada e exercício do contraditório: inquirição do experto apenas pelo magistrado? Texto escrito em coautoria com Diego Crevelin e Rafael Alves de Luna e aceito para publicação na REPRO.

[4]Como anota Taruffo, no sistema inglês vigiam práticas semelhantes, mas que foram reprochadas pelo Código de Processo Civil de 1999, o qual estabeleceu que o primeiro compromisso do perito é o de proceder com a veracidade, e não de atender aos interesses das partes. A prova. Trad. João Gabriel Couto. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 88-90.

[5] HAACK, Susan. The expert witness: lessons from de U.S. experience. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2712480. Acesso em: 10 mai. 2016.

[6] Artículo 335. Objeto y finalidad del dictamen de peritos. Juramento o promesa de actuar con objetividad. […]; 2. Al emitir el dictamen, todo perito deberá manifestar, bajo juramento o promesa de decir verdad, que ha actuado y, en su caso, actuará con la mayor objetividad posible, tomando en consideración tanto lo que pueda favorecer como lo que sea susceptible de causar perjuicio a cualquiera de las partes, y que conoce las sanciones penales en las que podría incurrir si incumpliere su deber como perito. […]. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2000-323. Acesso em: 20 ago. 2016.

[7] COLOMER, Juan Luis Gómez. I. La prueba pericial. In: Derecho jurisdicional. 24. ed. AROCA, Juan Montero; COLOMER, Juan Luis Gómez; VILAR, Silvia Barona; CUADRADO, María Pía Calderón. Valencia: Tirant lo Blanch, 2016, p. 274.

[8] À luz da legislação espanhola, posto que não seja possível recusar qualquer dos assistentes técnicos, Montero Aroca informa que a exigência de juramento ou promessa de atuação minimamente objetiva e imparcial alcança a todos os peritos, cujos laudos ou pareceres, também conforme a lei processual, poderão ser submetidos a explicações, esclarecimentos ou complementação, sob contraditório pleno. AROCA, Juan Montero. La prueba en el proceso civil. 6. ed. Espanha: Thomson Reuters, 2011, p. 339. Além de também ser possível sua comparecência em juízo à prestação de esclarecimentos adicionais. Sobre o tema, ver: SERRA, Eduardo Font. El dictamen de peritos y el reconocimiento judicial en el proceso civil. Madrid: La Ley, 2000, p. 71.

[9] “En cambio, cuando el dictamen del perito se incorpora al proceso mediante la aportación del mismo por cualquiera de las partes, resulta imposible recusar al perito para que no emita un dictamen, que ya ha sido emitido y que se halla en los autos, incluso en el supuesto de que el tribunal llegue a considerar innecesaria, impetinente o inútil la intervención del perito em el acto del juicio o vista.

 “Por ello, se establece el sistema de las tachas, cuyo objetivo es advertir al tribunal, en el momento que deba valorar la prueba, de la concurrencia en el perito autor del dictamen – que se halla em el proceso –, de alguna circunstancia objetiva que le hace sospechoso de parcialidad o de falta de objetividade.” SERRA, Eduardo Font. El dictamen de peritos y el reconocimiento judicial en el proceso civil. Madrid: La Ley, 2000, p. 73. É o que está disposto no art. 343.1 da LEC, a qual arrola as respectivas hipóteses de tachas.

[10] Ibid., p. 74-75.

[11] Art. 35. Quando a prova do fato exigir, o Juiz poderá inquirir técnicos de sua confiança, permitida às partes a apresentação de parecer técnico. […].

[12] Sobre a temática da imparcialidade, indispensável a consulta de: COSTA, Eduardo J. da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018.

[13] E as implicações da imparcialidade nos levariam a conclusões ainda mais amplas, concernentes aos limites funcionais do Estado-jurisdição. Afora a obra de Eduardo Costa, ver: PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao Estudo do Processo: fundamentos do Garantismo Processual brasileiro. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2020. 

[14] DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. SOARES, Carlos Henrique. BRÊTAS, Suzana Oliveira Marques. DIAS, Renato José Barbosa. BRÊTAS, Yvone Mól. Estudo Sistemático do NCPC. 2ª Ed. D´Plácido. 2016, p. 173-174

[15] Segundo Lenio Streck, a lei pode deixar de ser aplicada, dentre outros casos, “quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo”. (Verdade e Consenso.4ª Ed. Saraiva. 2011, p. 606).

 

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