80 tiros: não precisa dizer mais nada (ou precisa)        

13/04/2019

 

“Tudo indica que houve o fuzilamento do veículo de uma família de bem indo para um chá de bebê. Uma ação totalmente desproporcional e sem justificativa.” 

A afirmação, sobre a execrável ação militar que matou o músico Evaldo Rosa dos Santos

no domingo (7), em Guadalupe, Zona Norte do Rio, foi feita pelo delegado Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil, responsável pela perícia no local.[1]

Uma patrulha do Exército disparou 80 tiros contra o carro em que estava a família de Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, que morreu na hora. Seu sogro e um homem que passava no local também foram baleados.

Tentou-se, inicialmente, acobertar a barbárie. A primeira versão divulgada alegava uma fantasiosa reação defensiva ao que teria sido uma reação "a uma agressão oriunda de criminosos a bordo de um veículo". No entanto, diante das evidências, o Exército acabou reconhecendo os fatos e prendeu 10 militares, que serão processados e julgados pela Justiça Militar.[2]

O apavorante e abjeto episódio, para dizer o mínimo, revela que as Forças Armadas - a quem compete a defesa nacional - jamais deveria ser utilizada para exercerem papel de polícia.  Note-se que a segurança pública, por força da Constituição da República, é exercida pela polícia federal, pelas polícias civis e pelas polícias militares (art. 144 da CR).

Necessário destacar que, além da incompetência das Forças Armadas e da já conhecida violência policial, notadamente contra os vulnerabilizados (negros e pobres), soma-se o fato de que, sob o pretexto de combater o crime, na esteira do então candidato Jair Bolsonaro  - que chegou à Presidência com gesto simbolizando o uso de armas - João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) se ancoraram no discurso da barbárie de que “bandido bom é bandido morto”, incentivando e instigando ações violentas e criminosas por parte da polícia.

Não é despiciendo lembrar que durante a campanha presidencial, o capitão declarou: "Nós vamos brigar pela excludente de ilicitude. O policial militar em ação responde, mas não tem punição. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim. O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é policial”.[3]

Neste diapasão, verificou-se que uma das principais preocupações das autoridades públicas foi buscar um distanciamento do episódio para evitar que o mesmo fosse relacionado a política de Segurança Pública defendida pelo atual Chefe do Poder Executivo e por alguns governadores, bem como a ampliação do conceito de legítima defesa para agentes do Estado, conforme consta do projeto “Anticrime” apresentado pelo ministro Sergio Moro.[4]

Neste contexto, não se pode olvidar que, em recente entrevista concedida ao Globo (31/3), Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, afirmou que “os snipers já estão agindo no estado”. 

Em momento oportuno, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, com acerto, declarou, em nota, que é “impossível desvincular esse homicídio da apologia das armas e do aniquilamento sumário de bandidos que passou a compor o repertório de diversas autoridades brasileiras em tempos recentes. O presidente Jair Bolsonaro e governadores como João Dória, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, têm se apressado em divulgar manifestações de incentivo e apoio a ações policiais violentas, mesmo em casos em que há suspeita de execuções”.

Frise-se que o fuzilamento, ao contrário do que alguns possam imaginar, e até mesmo desejar, não se justifica em nenhuma hipótese. As Forças Armadas e a polícia – pelo menos no Estado de direito - não tem autorização para matar, sejam pessoas do “bem” ou do “mal”.

80 tiros: não há muito o que dizer, mas há muito o que pensar e muito para fazer.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em:< https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/04/80-tiros.shtml?loggedpaywall

[2] Em 13 de outubro de 2017 foi sancionada pelo Poder Executivo da União a Lei nº 13.491/2017, de vigência imediata (art.3º), a qual promoveu mudanças na redação do art.9º do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969). As alterações redefiniram o conceito de certos crimes militares em tempos de paz, estabelecendo um alargamento da matéria de competência da Justiça Militar dos Estados e da Justiça Militar da União.

[3] Disponível em:< https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/14/bolsonaro-diz-que-quer-dar-carta-branca-para-pm-matar-em-servico.htm

[4] Disponível em:< http://www.abjd.org.br/2019/04/80-tiros-racismo-estrutural-legitimado.html

 

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