Não me convidaram / pra esta festa pobre / que os homens armaram / pra me convencer / a pagar sem ver / toda essa droga / que já vem malhada / antes de eu nascer”. Embalados pelos versos de Cazuza, os 80 (oitenta) anos do Código de Processo Penal se celebram em uma festa precária, mórbida, que intenta convencer os mais incautos, sob o sorriso sarcástico do anfitrião. Aos convidados, as sevícias de um menu intragável.

Entre poucos avanços e mais retrocessos, é sentida a permanência autoritária, não somente das disposições, muitas delas ainda originárias da ditadura varguista, mas da mentalidade.

De fato, para manter oito décadas de vigência, conquanto as tentativas sazonais de mudança (muitas das quais parciais, sem atingir o problema central – o princípio inquisitivo), atravessando numerosas Constituições, somente mesmo se conformando à ideologia autoritária do sistema de justiça criminal.

Mesmo diante de manifestas tentativas de adequação às normas constitucionais de 1988, primando-se pelo sistema acusatório e os consectários do contraditório, da presunção de inocência, do devido processo legal e do direito de defesa, a ressignificação autoritária pelas agências de poder mostra-se implacável.

Desdizendo a quimera das significativas modificações, que aplaca a cabeça acusatória no corpo inquisitório, o aniversariante não hesita em refutar os ajustes. Através de suas fiéis amizades, profere discurso vistoso, na tentativa de encobrir a indecência dos jogos de palavras, e assopra a vela com o pedido de suspensão ad aeternum das disposições irreverentes. Os convidados resignados murmuram: “é o que diz o Código!”.

O velho Código é incapaz de olhar para o futuro, acostumado com os olhos no retrovisor. Não se enverga às exigências de um processo penal democrático, e qualquer brado de resgate da constitucionalidade soa como ofensivo aos demais convivas. Nós, os penetras, não somos bem-vindos.

Essa peça antiquada, irremovível por si mesma, tarda em ceder lugar ao novo (que de “novo” nem tem muito mais). Todavia, enquanto o cadáver não é sepultado, o novo é privado do nascimento.

Nem se diga, porém, no momento, de um novo código. Em períodos sombrios, de reforço de estigmatização, preconceitos, aviltamentos à pessoa acusada e à defesa exercida por profissionais diuturnamente, não há terreno fértil para frutificar direitos e garantias fundamentais, que parecem apenas enfeitar as paredes desse museu, cujo ornamento central é o elefante na sala.

De nada, aliás, adiantaria um novo Código, se presente a mesmíssima mentalidade inquisitória, sem a compreensão subjetiva e comunitária de que é necessário (e urgente) buscar a emancipação do processo penal, constituí-lo como garantia contra o exercício do poder.

Novas disposições, ainda que transcritas da Constituição, amargarão a ressignificação deletéria, o esvaziamento por quem que se arroga em conferir o sentido que lhe convém para preservação do establishment e rejeição de qualquer forma de contenção de seus autoritarismos.

Se o Código octagenário aparenta incontestes sinais de fadiga, suportado apenas por quem preserva intimamente o punitivismo e conserva a objetificação da pessoa acusada, passível de expiação por qualquer meio discricionariamente legitimado, incansáveis são aquelas e aqueles que não esmorecem na crítica, na luta, na denúncia contra as investidas inquisitoriais.

Se não se muda o ponto fulcral, se não se expurga de uma só vez o sistema inquisitório, em todos os seus meandros, mas também se não se deixa penetrar pelos auspícios constitucionais, provocando o debate democrático na superação das velhas ideias, não tardaremos em mais um aniversário, e mais quantos tiverem de vir.

Não é suficiente que o velho Código ceda lugar a um novo, é preciso que o novo Código nasça em berço novo, atravessado pelo paradigma constitucional e consciente das promessas incumpridas. Do contrário, vislumbraremos o novo nascer velho, aproveitar as desgastadas roupas do irmão mais velho, espelhar-se no irmão mais velho para atingir a mesma longevidade. E os mesmos olhares assustados a cada aniversário.

Cumprindo-se esse mau presságio, além do lamento, também com Cazuza, o pedido da piedade, por causa de uma gente careta e covarde. No lugar dos parabéns, o blues da piedade.

 

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