Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
I
Considero os poderes instrutórios do juiz inconstitucionais, por violação da igualdade e da imparcialidade, tanto subjetivo-cognitiva (ou imparcialidade stricto sensu) quanto objetivo-funcional (ou impartialidade).
Mas posso deixar isso de lado para tentar contribuir para uma compreensão dogmaticamente consistente do instituto vertido (não apenas) no art. 370, CPC. Foi com esse intento que escrevi sobre o tema para propor a interpretação de que atualmente não o juiz não pode produzir ou determinar a produção de provas de ofício subsidiariamente, embora o entendimento amplamente majoritário defenda que ele pode. Minha posição diz respeito aos fatos já alegados e aos meios de prova já conhecidos (e também aos preexistentes injustificadamente desconhecidos) ao tempo da decisão de saneamento e organização e baseia-se no regime de estabilização prescrito nos art. 357, §§ 1º e 2º, CPC, expressamente aplicável ao juiz[1]. Em suma, ofereci uma proposta dogmática de termo final do exercício válido dos poderes instrutórios pelo juiz.
Volto ao tema para começar a tentar identificar de modo dogmaticamente consistente a natureza jurídica dos poderes instrutórios do juiz – se dever ou faculdade, com as consequências daí decorrentes. Digo que é o começo de uma tentativa, inclusive, porque não dedicarei apenas este ensaio à investigação. É que mesmo um exame panorâmico do tema não pode ser senão extenso, pois são muitas as variáveis identificáveis no modo como é trabalhado pela jurisprudência e pela doutrina. Ainda não sei em quantos textos dedicarei ao tema. Vamos ver como a coisa se desenvolve.
Este texto tem um objetivo muito modesto: verificar se procede a afirmação de certa doutrina no sentido de que o STJ entende que os poderes instrutórios são um dever do juiz cujo descumprimento implica ilicitude passível de correção por recurso especial. Defenderei que os julgados invocados não sustentam tal posição. Não examinarei a natureza dos poderes instrutórios nem as consequências – se é que existem – do seu não exercício. Também não é um exame de toda a jurisprudência do STJ acerca do tema. Analiso apenas se os julgados invocados efetivamente sustentam o posicionamento acima referido.
II
Dialogarei, respeitosamente, com texto da lavra dos notáveis e merecidamente prestigiados Luiz Rodrigues Wambier e Evaristo Aragão dos Santos, qual seja, “Sobre o ponto de equilíbro entre a atividade instrutória do juiz e o ônus da parte de prova”. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (Coords.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, págs. 152-164.
Decidi começar por esse texto porque, diferentemente do que se nota em boa parte da doutrina, seus autores arrolam objetivamente pelo menos duas consequências decorrentes do descumprimento do suposto dever de produzir provas de ofício e apontam julgados que sustentariam a sua posição. Com efeito, escrevendo sobre a vigência do CPC/1973, e encampando a ideia que atrela os poderes instrutórios às teses do «processo justo», ao fim da «descoberta da verdade» para a «realização da igualdade» etc., os autores sustentam veementemente que os poderes instrutórios do juiz não são uma faculdade, mas um dever. Defendem que tal poder deve ser exercido quando houver dúvida objetiva, sob pena de cometer ato ilícito, passível de correção, inclusive, por recurso especial.
Veja-se: “em nosso sentir, e independentemente da natureza do bem jurídico postulado (se disponível ou indisponível) sempre que nos autos existam elementos a apontar, objetivamente, no sentido da verossimilhança da versão afirmada por uma das partes (ou da falta dela), a ponto de influenciar de maneira determinante no julgamento da causa, o juiz tem o dever de apurá-los de ofício. Caso não o faça, isto é, caso não exercite os poderes que lhe são genericamente fixados no art. 130 [do CPC/73, atual art. 370], cometerá uma ilegalidade”. (p. 161-162). Colacionam decisões do STJ que confirmariam essa tese. É justamente essa suposta correlação que examinarei adiante. Por fim, indagam se é possível cogitar de ação rescisória por descumprimento do dever de produzir prova de ofício (págs. 160).
III
Antes de verificar se os julgados citados confirmam a tese lançada, analisarei, muito brevemente, outra consequência que, para eles, decorre o descumprimento dos deveres instrutórios: o dever do juiz de indenizar a parte. Para eles, o dever do juiz de ressarcir os danos decorrentes de recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de providência que deveria ter sido ordenada de ofício (art. 133, II, CPC/73, atual art. 143, II), incide nos casos de “inação relacionada com o exercício dos poderes genericamente fixados do art. 130 do CPC (ou seja, aparece aí a correlata possibilidade [de] sanção pelo não-exercício do dever)” (p. 160).
Não me parece possível conceber que o não exercício dos poderes instrutórios possa atrair a responsabilidade civil do juiz. Uma dogmática rigorosa do art. 143, II, CPC, não pode incluir entre os “atos de ofício” do juiz aqueles para os quais as partes também têm legitimidade. Afinal, é mais do que consolidada a lição de que aquele que causa os próprios prejuízos não pode reclamar reparação de outrem (fato exclusivo da vítima). É precisamente esse o caso da parte que não requer a produção dos meios de prova que conhecia e que injustificadamente desconhecia, o que é ônus seu, cujo descumprimento implica preclusão (art. 357, §§ 1º e 2º, CPC).
Quando muito, pode-se cogitar da responsabilidade do advogado pelo dano causado ao cliente em razão de não ter requerido oportunamente a produção de determinado meio de prova, mesmo porque no mais das vezes a parte é juridicamente leiga e não acompanha os desdobramentos do procedimento. Afinal, “o Advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa” (EOAB, art. 32). Seja como for, não há que se falar em responsabilidade do juiz in casu (o que seria válido mesmo para o regime do CPC/73, sob o qual foi produzido o texto sob exame).
Dito isso, passo ao que realmente importa a este ensaio.
IV
Como visto, os autores argumentam que “sempre que nos autos existam elementos a apontar, objetivamente, no sentido da verossimilhança da versão afirmada por uma das partes (ou da falta dela), a ponto de influenciar de maneira determinante o julgamento da causa, o juiz tem o dever de apurá-los de ofício”. Ou seja, havendo dúvida objetiva e deixando o juiz de cumprir seus deveres instrutórios, “cometerá uma ilegalidade” (p. 161).
Nos termos do texto, os seguintes julgados confirmariam que o juiz tem o dever de exercer seus poderes instrutórios, ou seja, de produzir ou determinar a produção de meios de prova de ofício: REsp 222.445/PR, REsp 507.167/SC, AgRg no Ag 363.969/SP, REsp 248.297/SP, REsp 822.207/RS, REsp 651.294/GO, REsp 629.312/DF e REsp 345.436/SP.
Vejamos.
No REsp 222.445/PR, discutiu-se sobre a “ocorrência ou não de cerceamento de defesa, em razão e ter sido indeferida a realização de exame de DNA, com a qual se pretende provar ser o recorrido pai da autora”. In casu, “o julgado impugnado entendeu pela impossibilidade de realização do exame de DNA, uma vez não requerida em tempo oportuno a sua realização”. O recurso foi provido para “anular o processo a partir da sentença, inclusive, e propiciar a realização da prova genética”. Considerou-se indevido o indeferimento do requerimento de produção de prova técnica (exame de DNA), embora formulado a destempo. A violação do art. 130, CPC/73, deriva antes do cerceamento de defesa do que do não exercício dos poderes instrutórios pelo juiz, pura e simplesmente. Não se pode dizer se o resultado seria o mesmo caso a parte nem sequer tivesse requerido a produção do referido meio de prova em primeira instância, suscitando ineditamente em grau de apelação. Mas ainda que se conceda ao argumento de que foi reconhecida a violação do art. 130, CPC, pelo fato de o juiz ter deixado de exercer seus poderes instrutórios, ou seja, ter descumprido seu dever – e reconheço que não é irrazoável a interpretação, dado que o Relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, lançou os seguintes fundamentos: (i) “ao julgador, no processo civil contemporâneo, é dada a iniciativa probatória”; (ii) “embora quanto ao ponto se pudesse reputar configurada a preclusão para a parte pleitear a prova, o mesmo não se pode dizer em relação ao juiz”; e (iii) é “possível até mesmo a produção de provas em instância recursal ordinária” –, deve-se filtrar a decisão à luz do direito positivo. O direito anterior não contemplava a preclusão para o juiz em matéria probatória, ao passo em que o direito atual prevê expressamente a sua ocorrência no já tantas vezes citado regime de estabilização da decisão de saneamento e organização. Esse dado não pode ser desprezado na análise do tema. Afinal, se em ação de reconhecimento de paternidade biológica ninguém requer o exame de DNA por ocasião da decisão de saneamento e organização e nem o juiz determina de ofício a sua produção, a decisão se estabiliza, incidindo a preclusão. Entendimento contrário depende da declaração de inconstitucionalidade do art. 357, §§ 1º e 2º, CPC, ou da sua filtragem (consistente) por alguma técnica de interpretação constitucional, o que ainda não foi feito.
No REsp 507.167/SC, a recorrente, ré em ação civil pública, sustentava “a impossibilidade de realização de prova pericial antes do decurso do prazo à contestação, sob pena de negativa de garantia constitucional da ampla defesa, da subversão processual, da ausência de contraditório e da ocorrência de prejuízo processual”. A discussão não se refere a eventual ilegalidade pelo não exercício dos poderes instrutórios – aliás, foi precisamente contra o seu exercício que a parte se insurgiu, considerando-o inadmissível naquele momento processual (antes do fim do prazo de contestação). De todo modo, o Relator, Min. Francisco Peçanha Martins, consignou que “a prova pericial é do juízo e pode ser ordenada de ofício”, o que não autoriza a conclusão de que os poderes instrutórios constituem um dever do juiz. O caráter de faculdade dos poderes instrutórios fica evidente em decisão citada no voto (AgREsp 738.576/DF), que referirei adiante. Registro, ainda, que o Relator citou decisão do STF (Agr-Agr-AR 1538/MG) na qual se entendeu que os poderes instrutórios não se sujeitam à preclusão, podendo o juiz determinar a produção de provas mesmo após o “despacho” saneador. Proferida sob a égide do CPC/73, a decisão deve ser lida com as já citadas reservas no direito atual.
Na sequência, afirmam que “o que queremos significar talvez seja melhor compreendido a partir de exemplos coletados na jurisprudência do STJ. Em processo no qual se buscava o pagamento de indenização securitária em decorrência de invalidez, considerou-se admissível ter por provado o fato constitutivo do direito do autor (a invalidez) com base no resultado da perícia médica realizada pelo INSS, a qual havia fundamentado a concessão de aposentadoria e nesse segundo processo foi adotada por empréstimo. No entender do STJ, porém, a circunstância de a invalidez ter sido provada pela moléstia de nominada leucopenia (diminuição dos glóbulos brancos, a qual pode ser causada por agentes externos) e, em razão dessa específica circunstância, tornava [i] ‘necessária a realização de [outra] perícia para comprovar a invalidez permanente do segurado’, por força [ii] ‘das peculiaridades que envolvem esse mal, entre elas a de que pode diminuir ou desaparecer quando afastado o fator externo que a determina’. Em razão disso, se entendeu [iii] não apenas que a produção da nova perícia era necessária, mas que a sua não-realização pela deliberada adoção dos resultados da perícia médica do INSS contrariava tanto o art. 130 do CPC quanto o próprio texto constitucional”. Note-se que os autores citam “exemplos coletados na jurisprudência do STJ” com a finalidade de tentar demonstrar que o não exercício dos deveres instrutórios do juiz constitui “uma ilegalidade”, tanto que informam que “em processo [note-se: no singular] no qual se buscava o pagamento de indenização securitária em decorrência de invalidez”, o Tribunal da Cidadania “entendeu não apenas que a produção da nova perícia era necessária, mas que a sua não-realização pela deliberada adoção dos resultados da perícia médica do INSS contrariava tanto o art. 130 do CPC quanto o próprio texto constitucional”. Considerado o contexto, a redação dos autores pode dar a entender que o STJ decidiu que naqueles casos o art. 130, CPC/73, foi violado porque o juiz deixou de determinar exercer seus poderes instrutórios. Não é o que o STJ decidiu nos casos indicados com [i], [ii] e [iii].
O trecho destacado com [i] refere-se ao AgRg no Ag 363.969/SP. Colhe-se no voto da Relatora, Min. Nancy Andrighi, que “nesta hipótese particular, o autor recorrente se recusou a se submeter à perícia médica, estando autorizada a conclusão do julgamento pela improcedência do pedido, dadas as particularidades da leucopenia, cujas consequências podem ser atenuadas e até mesmo desaparecem a partir do afastamento do empregado das funções insalubres”. Sua Exa. transcreveu o seguinte trecho do acórdão de origem: “o perito expressamente escreveu que o autor foi clinicamente examinado, não se diagnosticando qualquer entidade nosológica incapacitante, quer parcial, quer total, temporária ou permanente (...) O perito reiterou seu entendimento (...), destacando que inexiste qualquer incapacidade para o trabalho, criticando, tecnicamente, a decisão da autarquia [INSS, que aposentara o autor por invalidez em razão dos fatos narrados na inicial]”. Por considerar que a perícia realizada no INSS é insuficiente e em razão de o autor ter se recusado a se submeter à perícia médica, estimou correto o aresto guerreado e negou provimento ao recurso. Como se vê, o STJ não reconheceu violação do art. 130, CPC/73, não servindo a decisão como exemplo do suposto entendimento de que o juiz comete ilicitude quando deixa de determinar a produção de provas de ofício. Aliás, nem sequer o recorrente alegou violação do referido dispositivo. Segundo a Relatora ele apontou “contrariedade ao Decreto-Lei n. 73/66, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, Regula as operações de Seguros e Resseguros; contrariedade à Lei n. 6.367/76, art. 2°, Decreto n. 2.172/97, art. 132, inc. III, Lei n. 8.213/91, Decreto n. 611/92 e Decreto n. 3.048/99, art. 43; negativa de vigência aos arts. 47 e 54, do CDC; negativa de vigência aos arts. 1.432, 1.433 e 1.458, do CC; negativa de vigência aos arts. 334, inc. I e IV, 364 e 436, do CPC, além de divergência jurisprudencial”.
O trecho destacado com [ii] refere-se ao REsp 248.297/SP. Nesse caso, o juiz de primeira instância entendeu que a concessão de aposentadoria por invalidez pelo INSS constitui prova suficiente da invalidez, razão por que indeferiu o requerimento de prova pericial formulado pela seguradora-ré e julgou o pedido autoral procedente antecipadamente. Apelação da vencida suscitando cerceamento de defesa, rejeitada pelo TJSP, por maioria, sob o argumento de que “não é necessária a perícia, quando existe prova idônea da invalidez”. Interpostos embargos infringentes, foram eles desprovidos, também por maioria de votos, pelos mesmos fundamentos. Contra essa decisão tirou-se o recurso especial. O Relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, entendeu que “em razão das peculiaridades da leucopenia, entre elas a de que pode modificar-se quando afastado o fator externo que a determina (...), tem a seguradora o direito de exigir exame atualizado das condições pessoais do segurado, notadamente porque o laudo do INSS não geraria presunção absoluta, podendo ser infirmado por outros meios de prova”. O recurso foi conhecido e provido por unanimidade. Como se vê, o STJ reconheceu a violação do art. 130, CPC, mas porque foi indevidamente indeferido o pedido de produção de prova pericial formulado pela seguradora, não servindo a decisão como exemplo do suposto entendimento de que o juiz comete ilicitude quando deixa de determinar a produção de provas de ofício.
O trecho destacado com [iii] refere-se ao REsp 822.207/RS. O caso é muito semelhante ao indicado em [ii]: o juiz de primeira instância entendeu que a concessão de aposentadoria por invalidez pelo INSS constitui prova suficiente da invalidez, razão por que indeferiu o requerimento de prova pericial formulado pela seguradora-ré e julgou o pedido autoral procedente; o TJRS negou provimento à apelação sob o fundamento de que “não há falar em cerceamento de defesa se o feito comportava julgamento antecipado da lide. Comprovada a aposentadoria do autor, pelo INSS, por invalidez permanente e estando em vigência o contrato de seguro, é devida a indenização”; o STJ, Relator o Min. Humberto Gomes de Barros, avaliou que, no caso, “a concessão de aposentadoria acidentária pelo INSS não pode ser aproveitada como prova de incapacidade do segurado, em relação contratual deste com pessoa jurídica de direito privado, sequer auscultada na apuração desenvolvida pelo INSS”. De particular, está a menção, nesse caso, de que “aproveitar, como prova emprestada contra uma das partes, laudo produzido sem a oitiva deste, é ultrapassar o permissivo do art. 130 do CPC, agredindo o cânone constitucional do contencioso processual”. O recurso foi conhecido e provido por unanimidade. Como se vê, o STJ reconheceu a violação do art. 130, CPC, mas porque foi indevidamente indeferido o pedido de produção de prova pericial formulado pela seguradora, não servindo a decisão como exemplo do suposto entendimento de que o juiz comete ilicitude quando deixa de determinar a produção de provas de ofício.
Em suma, em [i] nem ao menos se reconheceu a violação do art. 130, CPC/73, pois o autor se recusou a se submeter à prova pericial; em [ii] e [iii] houve reconhecimento de violação do referido dispositivo em razão do indeferimento indevido do requerimento de produção de prova pericial, e não pelo fato de o juiz ter indevidamente deixado de determinar a produção de provas de ofício. Nenhum deles é exemplo de ilicitude por descumprimento dos poderes instrutórios oficiosos.
No REsp 651.294/GO, “considerou-se lícita a postura do juiz que exerceu de ofício seus poderes instrutórios para a realização de nova perícia com o objetivo de fixar o preço de indenização pela desapropriação de terras, pois no contexto dos autos havia fortes indícios de que ‘a área expropriada estivesse superavaliada’”(pág. 161). De fato, nos termos do voto da Relatora, Min. Eliana Calmon, duas teses estavam colocadas para análise, a que aqui interessa a “possibilidade ou não do magistrado, de ofício, determinar a realização de nova perícia em processo de desapropriação, ainda que inexistente, qualquer discordância dos expropriados e do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL”. Sobre o ponto, considerou “de correção absoluta e mesmo louvável a postura do magistrado sentenciante que (...) usou dos poderes instrutórios que lhe são conferidos pelo art. 130 do CPC”, ressaltando, ainda, que o STJ tem autorizado até mesmo “a relativização da coisa julgada para permitir a realização de nova perícia na fase executória do processo de desapropriação”. No caso, o juiz exerceu seus poderes instrutórios, o que, por si só, esvazia a discussão de saber se eles possuem caráter de dever ou faculdade. O julgado não define que produzir provas é um dever do juiz, nem arrola as consequências do seu descumprimento. Importante notar que os fundamentos utilizados pelo STJ para admitir a relativização da coisa julgada são “os princípios da moralidade pública e da segurança jurídica”, “a preservação do interesse público”. Em nenhum momento se cogita que a ilegalidade que justifica a relativização da coisa julgada é o descumprimento dos deveres instrutórios. Em todos aqueles casos o poder de produzir provas de ofício é instrumentalizado para justificar que o juiz, em homenagem aos princípios acima referidos, determine a realização de nova avaliação. Em nenhuma hipótese o seu descumprimento é lançado como fundamento autônomo para justificar a relativização da coisa julgada. Não se institui standard interpretativo como «relativiza-se a coisa julgada quando o juiz deixa de determinar, de ofício, a realização de uma nova perícia para avaliar o imóvel objeto da desapropriação». Não se chega nem sequer perto disso.
No REsp 629.312/DF, os autores destacam que “tendo admitido expressamente o magistrado singular que as provas colacionadas aos autos não eram suficientes para a verificação da alegada violação de cláusulas contratuais, deveria ter determinado, ex officio, sua realização”. A análise do caso revela, porém, que não se pode interpretar essa passagem – que é trecho da Ementa – no sentido de que por força do art. 130, CPC/73 (=art. 370, CPC) o juiz tem o dever de sair à cata de provas, exercendo seus poderes instrutórios de ofício, sempre que reconhecer que não há provas ou que as existentes são insuficientes à formação do seu convencimento. Vejamos. Da leitura do acórdão contra o qual foi interposto o recurso especial (TJDFT; Acórdão 174067, 19990110194854APC, Rel. Vera Andrighi, Res. Sérgio Bittencourt, 4ª Turma Cível, j. 17/3/2003, DJU Seção 3: 11/6/2003. Pág.: 59) a Relatora consigna que a parte autora efetivamente não apresentou provas dos fatos constitutivos do seu direito, bem como que o julgador de primeira instância afirmou expressamente que se fosse produzida a prova pericial o pedido poderia ter sido acolhido. Mas também registra que “Consta à fl. requerimento da autora, na inicial, no sentido da produção de prova pericial. Portanto, diante de tal requerimento, dispensável o despacho de especificação das provas, podendo o d. Juízo nomear perito e ouvir as partes quanto aos honorários e às questões a serem apreciadas na perícia, necessária para o deslinde da causa”. Por outro lado, ressalta que “o Juízo a quo, em dois momentos, proferiu despacho, consultando a autora se quereria produzir prova pericial. Infelizmente, o advogado não acudiu à lide, levando o Juízo a julgar improcedente o pedido por falta de provas.” Nada obstante, por considerar que “o objetivo precípuo do processo de realizar o direito, com o pedido na petição inicial, poder-se-ia dar início à prova indispensável. Assim, há patente violação ao art. 331, § 2º, c/c o art. 421, ambos do CPC. Requerida a produção da prova pericial, impõe-se ao magistrado, não obtida a conciliação, através do despacho saneador, designar a produção de prova pericial, nomeando perito, nos termos do supracitado art. 421, do CPC”. Destacou, ainda, que “examinando as planilhas do saldo devedor, verifica-se, à primeira vista, a possibilidade de onerosidade excessiva, pois a variação nominal do preço é manifestamente superior à variação patrimonial do bem imóvel”. Por tudo isso, concluiu que houve “cerceamento de defesa da apelante” e anulou a sentença, determinando a remessa dos autos à primeira instância para a realização da prova pericial, no que foi seguida pelo Revisor e pelo Vogal. Como está claro, foi fundamental para a Relatora a existência de pedido expresso de produção de prova pericial na petição inicial e de indícios da procedência do pedido (planilhas de saldo devedor). Não é possível saber se o órgão colegiado teria decidido do mesmo modo caso o autor não tivesse requerido a produção de prova pericial na petição inicial. Impossível saber se a mesma orientação prevaleceria caso o autor tivesse requerido a produção da prova pericial pela primeira vez apenas na apelação. Enfim, não é dado prever se se reconheceria a violação do art. 130, CPC, pelo só fato de o juiz não ter lançado mão de seus poderes instrutórios ex officio. No STJ, o relator, Min. Hélio Quaglia Barbosa, consignou que “determinou o Tribunal a quo o retorno dos autos à primeira instância, cassando-se, por conseguinte, a sentença de improcedência prolatada, na medida em que, tendo admitido expressamente o magistrado singular que as provas colacionadas aos autos não seriam suficientes para verificação da alegada violação de cláusulas contratuais, deveria ter determinado, ex officio, sua realização”. Como se vê, Sua Exa. deixou de destacar o que foi considerado fundamental para o Tribunal de origem: o fato de que o autor requereu, na petição inicial, a produção da prova pericial; o fato de que, segundo a sua leitura do art. 330, CPC/73, não obtida a conciliação na audiência preliminar o juiz de piso deveria ter examinado, sem mais, aquele requerimento; e o fato de que havia indícios de que o autor poderia ter razão. Além disso, transcreveu a doutrina de Cândido Rangel Dinamarco, favorável aos poderes instrutórios do juiz, e a ementa do AgRg no REsp 738.576/DF, onde consta que “Os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhe aprouverem”, e em cujo interior transcreve-se a doutrina de Sérgio Sahione Fadel no sentido de que “a faculdade de atuação do juiz, na fase probatória, é amplíssima (...) O que se que (sic), com o art. 130, é não excluir a faculdade que tem o juiz de tomas (sic) as providências e ordenar as diligências que lhe parecerem necessárias ou úteis à decisão da causa e à formação livre de sua convicção.” Nada mais. Fala-se que os juízes “podem” determinar a produção dos meios de provas “que lhe aprouverem”, que se trata de uma “faculdade que tem o juiz”. Não é possível verificar nessa decisão o entendimento de que os poderes instrutórios são um dever do juiz cujo descumprimento acarreta ilegalidade.
No REsp 345.436/SP, destaca a Relatora, Min. Nancy Andrighi, que o cerne da questão “é verificar a possibilidade de ser determinada a prova pericial em segundo grau de jurisdição, quando a parte interessada não se insurgiu, tempestivamente, contra o seu indeferimento pelo juízo monocrático. Discute-se, também, se é cabível a dilação probatória, quando haja outros meios de prova, testemunhal e documental, suficientes para o julgamento da demanda, e se a reabertura da fase probatória seria procrastinatória.” Quanto ao primeiro ponto, entendeu que “a ocorrência de preclusão temporal para as partes que não se propuseram a demonstrar a necessidade da prova pericial contábil requerida não afasta a iniciativa probatória do juízo natural, seja em primeiro ou segundo grau de jurisdição, ainda que no exercício de competência recursal revisional”. Quanto ao segundo ponto, concluiu que “pode haver renovação probatória para colheita de prova pericial, por determinação do segundo grau de jurisdição, mas desde que haja relevância e necessidade na dilação probatória”. Nada na decisão indica que os poderes instrutórios são um dever judicial cujo descumprimento constitui ilegalidade. Reconhece-se a possibilidade de determinação da produção de provas de ofício e estipulam-se os requisitos para o seu exercício. E isso é tudo.
V
Percebeu-se que em nenhum dos casos citados no texto em liça o STJ definiu indubitavelmente que o juiz tem o dever de produzir provas de ofício, consignando apenas que é lícito que ele o faça. Aquela interpretação se mostra defensável apenas em relação ao REsp 222.445/PR, mas sem prejuízo das ressalvas lançadas acima, concernentes às nuances do caso concreto (a parte requereu a produção da prova, ainda que extemporaneamente, e recorreu suscitando o cerceamento de defesa) e ao regime do direito positivo (o CPC/73 não previa preclusão para o juiz em matéria de prova; o CPC/15 prevê e, portanto, só pode ser desconsiderado demonstrando a sua inconstitucionalidade ou consistente aplicação de alguma técnica de interpretação constitucional). E ainda que se insista no posicionamento lançado no julgado e, principalmente, adotado pelos autores do artigo ora examinado, daí só se poderá concluir que, à luz dos julgados ora examinados, os poderes instrutórios do juiz assumem o caráter de dever apenas excepcionalmente (e não me importa, neste ensaio, examinar se é possível que os poderes instrutórios sejam, ao mesmo tempo, faculdade e dever do juiz, a depender do caso). Quanto às demais decisões examinadas, pode-se dizer que – no mínimo – sugerem fortemente que os poderes instrutórios são uma faculdade stricto sensu do juiz.
Portanto, a resposta é não. Não é correto dizer que o STJ entende que os poderes instrutórios são um dever do juiz cujo descumprimento constitui nulidade. É sintomático que a indagação sobre se essa “ilicitude” constitui vício rescisório tenha ficado sem resposta e que nenhum julgado neste sentido tenha sido colacionado.
VI
Aparentemente, tudo indica que o STJ adota o entendimento de que os poderes instrutórios do juiz têm natureza de faculdade. Há, inclusive, decisões afirmando isso expressamente. No REsp 471.857/ES (1ª T., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, votação unânime, j. 21.10.2003, DJ 17.11.2003), consta que “os arts. 130 e 1.107 do CPC, mitigando o Princípio da Demanda, conferem poderes instrutórios ao Juiz, mas não lhe impõem o dever de investigação probatória. Mesmo porque, nos fatos constitutivos do direito o ônus da prova cabe ao autor (CPC, art. 333, I)”. Citando julgados da Tribunal – a saber: REsp 171.429/RJ (“1. A prova pericial é do juízo e pode ser ordenada de ofício, quando o magistrado precisa de informações técnicas ou quando se tratar de direito indisponível, sem a prova definitiva do direito reclamado 2. Se a parte deixou de requerer a prova pericial, tendo inclusive silenciado quando intimada para especificar as provas, cabe-lhe o ônus da omissão probatória”), REsp 246.446/RJ (“1. Na forma do CPC, art. 333, I, não tendo o próprio autor, interessado em demonstrar o fato constitutivo de seu pretenso direito, especificado o meio probatório pela qual desejaria fazê-lo, não pode o Magistrado suprir tal omissão, agindo de ofício, para determinar sua produção, sob pena de violar as regras dispostas no CPC, arts. 125, I e 128, que vedam a dispensa de tratamento desigual às partes e o conhecimento de ofício pelo Juiz das questões às quais competiria iniciativa às partes.”) e REsp 243.311/SP (“O autor, na inicial, tem que indicar as provas com que pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. Ante a ausência de provas, o juiz não pode determinar, de ofício, a produção de qualquer prova.”), observa-se que na realidade os dois últimos julgados apresentam entendimento ainda mais restritivo, já não tão fiel ao atual posicionamento do Tribunal da Cidadania –, ressalta que “A faculdade outorgada para instrução probatória do Juízo milita em favor duma melhor formação da convicção do Magistrado. No entanto, o Juiz não pode substituir as partes nos ônus que lhe competem, inda (sic) mais quando a perícia não se realizou por inércia da parte no pagamento dos honorários do perito”. A mesma orientação é colhida em matéria criminal (RHC 87.764/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, rel. p/Acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., j. 03.10.2017, DJe 06.11.2017), inclusive no STF (HC 167.617, rel. Min. Marco Aurélio, j. 14.02.2019, DJe 18.02.2019).
Nos tribunais ordinários o caráter de faculdade dos poderes instrutórios é ainda mais latente, como se pode ver em decisões do TJRJ (“Determinação de produção de prova, de ofício, que é uma faculdade do Magistrado” – AI 0005352-36.2020.8.19.0000; Rio de Janeiro; Décima Nona Câmara Cível; Rel. Des. Lucio Durante; DORJ 28/08/2020; Pág. 637), do TJSP (“A produção de prova de ofício pelo Magistrado constitui faculdade” – ACr 0000002-33.2016.8.26.0511; Ac. 13890238; Rio das Pedras; Terceira Câmara de Direito Criminal; Rel. Des. Cesar Augusto Andrade de Castro; Julg. 24/08/2020; DJESP 28/08/2020; Pág. 3366 – note-se que é caso criminal), do TJDFT (“não há obrigação legal para o juiz proceder à produção de prova de ofício” – RVC 2017.00.2.002036-5; Ac. 101.7582; Câmara Criminal; Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos; Julg. 15/05/2017; DJDFTE 23/05/2017 – note-se que é caso criminal), do TJMG (“requisitar a produção de prova de ofício é uma faculdade do julgador, sendo ele o destinatário da prova, não há que se falar em nulidade da sentença por violação do art. 130 do CPC” – TJMG; APCV 1.0024.11.054002-8/001; Relª Desª Hilda Teixeira da Costa; Julg. 10/03/2015; DJEMG 24/03/2015), do TJMT (“o magistrado não está obrigado a determinar, de ofício, a realização de provas (art. 130 do CPC), se já formou seu livre convencimento e, especialmente, se as partes desistiram das provas requeridas e requereram o julgamento do processo na fase em que se encontrava” – TJMT; APL 38360/2011; Lucas do Rio Verde; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Guiomar Teodoro Borges; Julg. 16/08/2011; DJMT 23/08/2011; Pág. 10), do TJMS (“regra contida no artigo 130 e 418, ambos do CPC, trata-se de faculdade do juiz, não podendo ser invocada no sentido de se impor ao magistrado o dever de investigação, uma vez que lhe é defeso substituir as partes no ônus que lhes compete” – AgRg 1413782-94.2014.8.12.0000/50000; Aquidauana; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Tânia Garcia de Freitas Borges; DJMS 01/09/2015; Pág. 21; “Cabe ao magistrado conduzir a instrução e julgar o feito quando entender suficiente o conjunto probatório formado nos autos, não havendo falar em produção de prova de ofício pelo Juízo, visto que é das partes o dever de produzir as provas necessárias a demonstração de seu direito, pelo que deve ser afastado o pleito de nulidade da sentença por ofensa ao contraditório e à ampla defesa” – AC 0800167-41.2018.8.12.0002; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Marcelo Câmara Rasslan; DJMS 29/04/2020; Pág. 68.) etc.
Seja como for, futuramente realizarei um exame mais detido da jurisprudência acerca do tema. Até segunda ordem, no próximo texto desta série analisarei com mais vagar os fundamentos que a doutrina lança para defender que os poderes instrutórios são um dever do juiz – o que não fiz aqui, como anunciei no início e se pode ver ao longo do escrito. Até lá.
Notas e Referências
[1] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: o silencioso sepultamento dos poderes instrutórios supletivos no CPC/15. Disponível em: https://bit.ly/3ihIgxe.
Imagem Ilustrativa do Post: Legal Gavel & Closed Law Book // Foto de: Blogtrepreneur // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143601516@N03/27571522123
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode