#70 - Embargos de Declaração Atípicos: um triplo mortal carpado na hipótese de admissibilidade para reajustar jurisprudência superveniente            

13/07/2020

  Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

                           

 

Os perigos da subjetividade são muitos, agravados pelo sistema de julgamentos por maioria, em que se apaga a personalidade do juiz, mas persistem, não raro acrescidos, os elementos subjetivos

Pontes de Miranda

                                                                   – I –                            

Os embargos de declaração são uma criação genuína do reino português que, progressivamente, entre retrocessos e hesitações[1], foram inseridos no sistema recursal lusitano[2].

No Brasil, em síntese, pode-se conferir a previsão dos embargos de declaração desde o vetusto Regulamento 737/1.850, passando por algumas codificações dos Estados-membros – à época em que essas unidades possuíam competência legislativa em matéria processual – pelo primeiro Código de Processo Civil unitário de 1.939, de maneira pouco sistematizada (arts. 808, V e 839, caput), inserido no rol dos recursos no CPC de 1.973 (art. 535) e, atualmente, disposto no catálogo dos recursos (art. 994, IV) e disciplinado pormenorizadamente no art. 1.022 do CPC de 2.015, cuja redação é a seguinte:

Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:

I - esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;

II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;

III - corrigir erro material.

Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que:

I - deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento;

II - incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1º.

Deduzidos perante o próprio órgão prolator, os embargos de declaração são cabíveis contra qualquer decisão judicial com o fito de (i) esclarecer obscuridade ou eliminar contradição, (ii) suprimir omissão de ponto ou questão[3] sobre a qual deveria se pronunciar o órgão julgador de ofício ou a requerimento e (iii) corrigir erro material.

O CPC/2.015 trouxe duas novidades ao considerar que o ato judicial também conteria omissão se (i) deixasse de se manifestar sobre tese formada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento e (ii) incorresse em quaisquer das condutas descritas no art. 489, § 1° do mesmo Estatuto implicando, portanto, em ausência de fundamentação, a saber: (a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; (b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; (d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (e) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; e, finalmente, (f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Interessa-nos, para fins deste ensaio, o defeito típico embargável relativo tanto a omissão que se busca supri(mi)r nas hipóteses de ausência de apreciação de pedido(s)[4] e/ou da(s) causa(s) de pedir, quanto à consistente na inexistência de manifestação expressa sobre tese formada em julgamento de casos repetitivos[5] ou em incidente de assunção de competência, todas, supostamente, aplicáveis ao caso sob julgamento, tornado assim, hipóteses de error in procedendo (=vícios de atividade).

 

– II –

Os aclaratórios, como cediço, são uma espécie de recurso de âmbito restrito ou de fundamentação vinculada (limitada), ou seja, a lei exige a presença de determinado(s) tipo(s) de vício(s) específico(s) na decisão, para que tenha cabimento (=admissibilidade). Imprescindível, assim, que o ato decisório contenha, p. ex., omissão.

Note-se, por oportuno, que o cabimento dos embargos de declaração não prescinde da demonstração do defeito contido na decisão judicial impugnada. Isso porque, para que o recurso seja admitido pelo órgão judicial, o embargante terá de afirmar (em tese) o vício de omissão in status assertionis, podendo-se avançar para o julgamento da causa com o exame do mérito recursal. Verificada a mera alegação do defeito (erro de atividade) o recurso será de pronto conhecido e o exame do mérito será apreciado, podendo redundar em (i) provimento, na hipótese de restar confirmado o vício, (ii) desprovimento, se não se comprovar o defeito afirmado.

Em relação a (i) cabe frisar que o provimento dos embargos de declaração implicará natural e consequentemente na modificação (=efeito infringente) do julgamento pelo suprimento do vício existente. Perceba-se que o objetivo e a finalidade dos embargos declaratórios não são a infringência – esta encontra-se em momento posterior ao do julgamento do mérito do recurso de embargos[6].

Já no que toca ao (ii), o desprovimento dos embargos de declaração poderá ser (ii.1) despido de caráter protelatório, ou seja, o recorrente, embora tenha se esforçado diligentemente para a empreitada, não obteve êxito na confirmação efetiva da existência do defeito afirmado no ato da oposição do recurso ou (ii.2) hipótese na qual os embargos serão considerados protelatórios na medida em que, o recorrente, embora tenha simplesmente alegado uma suposta e hipotética omissão no julgado no ato da oposição do recurso, deixa de demonstrá-la justificadamente.

Registra-se, ainda, três hipóteses em que os embargos de declaração serão incabíveis, a saber: (i) recurso intempestivo, no qual o manejo sequer atendeu ao pressuposto recursal extrínseco; (ii) o terceiro embargos declaratórios considerado protelatório, por força da norma constante do art. 1.026, § 4° do CPC (hipótese de existência de fato extintivo do direito ao recurso, desatenção ao pressuposto recursal intrínseco); e (iii) embargos de declaração com pedido principal de reconsideração ou revisitação do julgamento. Essa hipótese é diversa àquela outra em que os embargos são considerados protelatórios. Nessa, o recorrente sequer indica o defeito contido no ato judicial impugnado, objetivando, em verdade, repisar argumentos já rechaçados, provocando a indevida revisão do ato impugnado com o intuito último de obter o rejulgamento da causa, tergiversando, ao fim e ao cabo, a natureza jurídica do instituto recursal.

 

– III –

Os embargos de declaração, portanto, não se revelam cabíveis à finalidade imediata de se anular, reformar ou revisar a decisão impugnada. O embargante, em outras palavras, não tem o intuito de alegar e demonstrar o vício que acomete o ato judicial; mira seus propósitos em um único objetivo, qual seja; instar o órgão julgador a pura e simplesmente reanalisar a causa decidida.

O plenário do Supremo Tribunal Federal, já sob a égide do CPC/2.015, rechaçou essa intenção em duas oportunidades, a primeira em 2.016 e a segunda em 2.020:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO. REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. EFEITOS INFRINGENTES. IMPOSSIBILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS.

I – Ausência dos pressupostos do art. 1.022, I, II e III, do Código de Processo Civil.

II – Busca-se tão somente a rediscussão da matéria, porém os embargos de declaração não constituem meio processual adequado para a reforma do decisum, não sendo possível atribuir-lhes efeitos infringentes, salvo em situações excepcionais, o que não ocorre no caso em questão.

III – Embargos de declaração rejeitados.

(ARE nº 910.271/DF-AgR-ED, Plenário, Relator RICARDO LEWANDOWSKI, Dje de 19/09/2016).

Embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Matéria criminal. Omissão no acórdão recorrido. Não caracterizada. Pretendido rejulgamento da causa. Impossibilidade na presente via recursal. Precedentes. Não conhecimento dos embargos.

  1. As questões trazidas nos embargos declaratórios já foram discutidas no julgamento do agravo regimental, sendo certo, também, que as referidas alegações foram rejeitadas pelo Tribunal Pleno no julgamento dos embargos de declaração anteriormente opostos.
  2. Não se conhece de segundos embargos de declaração cujo objetivo seja promover a rediscussão da causa. 3. Embargos de declaração dos quais não se conhece

(ARE 1192916 AgR-ED-Edv-ED-AgR-ED-ED, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, Dje de 29/06/2020).

Nessa perspectiva, os embargos de declaração opostos à mingua da alegação e demonstração do defeito de omissão seriam fulminados de plano com a chancela de inadmissibilidade.

A questão que surge é a seguinte: à luz do art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015 seria possível a oposição e provimento de embargos de declaração visando reajustar decisão/acórdão anteriormente proferido à nova intepretação (=tese) consagrada no bojo de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida e julgada?

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em 18/6/2.020, ao julgar os aclaratórios opostos no agravo regimental na reclamação 15.724/PR, por maioria de votos, decidiu “acolher os embargos de declaração, com efeitos infringentes, para dar provimento ao agravo interno e julgar procedente o pedido, de forma que seja cassado o acórdão impugnado, com determinação para que a autoridade reclamada observe o entendimento fixado no Tema 725 da Repercussão Geral (RE 958.252, Rel. Min. Luiz Fux) e na ADPF 324 (Rel. Min. Roberto Barroso), uma vez que esta Corte já se posicionou pela declaração de inconstitucionalidade da Súmula 331 do TST”.

Eis a ementa do julgado:

CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO RE 958.252 (TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL). EMBARGOS ACOLHIDOS, COM EFEITOS INFRINGENTES. AGRAVO INTERNO PROVIDO.

  1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.
  2. Por esse motivo, apesar da decisão impugnada ter sido proferida antes da conclusão do julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), o processo em que proferida tal decisão encontra-se sobrestado no Tribunal Superior do Trabalho com base no Tema 725, a sugerir, consequentemente, que a solução do presente caso deve observância às diretrizes deste TRIBUNAL quanto ao ponto.
  3. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para dar provimento ao agravo interno (Rcl 15724 AgR-ED/PR, rel. orig. Min. Rosa Weber, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 05/5/2020, Dje de 18/6/2020).

Na hipótese fático-jurídica trazida no bojo da Rcl 15.724-Agr-ED/PR, a discussão residia na existência de suposto defeito de omissão consistente na necessária aplicação da súmula vinculante 10 (=cláusula de reserva de plenário/Full Bench), uma vez que a decisão embargada teria deixado de apreciar a questão relativa à prática de se afastar a aplicabilidade de comandos legais sem declará-los inconstitucionais.

Em seu voto, a Ministra Rosa Weber ressaltou que “a inexistência, na decisão reclamada, de declaração explícita ou implícita de inconstitucionalidade a ensejar violação ao Princípio da Reserva de Plenário previsto no art. 97 da Constituição Federal e na Súmula Vinculante 10, haja vista a atuação meramente interpretativa do Juízo reclamado acerca do art. 25, § 1º e do art. 31, parágrafo único, da Lei 8.987/1995”, inadmitindo, pois, o recurso ao argumento que não estariam “configuradas, portanto, quaisquer das hipóteses elencadas no art. 1022 do CPC, evidenciando-se tão somente o inconformismo da parte com a decisão que lhe foi desfavorável”.

Por seu turno, o Ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência justificando-a no fato de que por se tratar de assunto já decido pela Corte no RE 958.252 (tema 725), oportunidade em que se fixou a tese segundo a qual “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”, conclusão essa formada antes do julgamento dos embargos de declaração, outra alternativa não teria senão a de conferir “efeitos infringentes aos embargos, para acatá-los no sentido de dar provimento ao agravo regimental na reclamação”, ajustando, desse modo, a decisão ao entendimento firmado no acórdão que julgou o precedente.

O Ministro Luiz Fux acompanhou a divergência fazendo referência ao fato de que “o novo Código de Processo Civil prevê essa hipótese de cabimento dos embargos de declaração para reajustar a jurisprudência firmada em teses que o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça adotarem”.

Confirmando seu voto, a Ministra Rosa Weber esclareceu que a hipótese dos autos refere-se à discussão acerca da violação ao art. 97 da Constituição Federal e à súmula vinculante 10, bem como ao reconhecimento de que os embargos de declaração foram opostos em abril de 2.016 e o acórdão do recurso extraordinário com repercussão geral afeto ao caso – ARE 791.932[7] (tema 739), foi julgado em outubro de 2.018, publicado em março de 2.019, com trânsito em julgado na mesma data. Destacou, ainda, que a tese foi firmada antes do julgamento dos embargos de declaração, entretanto, resiste porque à época do julgamento “tanto da reclamação, quanto do agravo regimental, a jurisprudência da Turma era outra”.

O Ministro Luís Roberto Barroso argumentou no sentido de que “quando nós decidimos lá atrás, não havia ainda o pronunciamento do Plenário, e decidimos num determinado sentido” – e avança: “então, antes do trânsito em julgado, são opostos embargos de declaração em que se postula a aplicação da jurisprudência que supervenientemente se formou”, portanto, continua sua Excelência, a “questão processual que nós estamos definindo aqui, e que eu acho que é importante, é saber se, antes do trânsito em julgado e em embargos de declaração, é possível dar efeitos infringentes à decisão anterior, para ajustá-la à nova jurisprudência. Está certo, Ministro Fux? Vossa Excelência que é o processualista” e prossegue, “então, queria deixar claro qual é a questão, para que nós decidamos isso com consciência do que estamos fazendo. Antes do trânsito em julgado é legitimo - é o que nós vamos entender - readequar o julgado anterior para ajustá-lo à posição do Plenário”, concluindo pelo provimento dos embargos de declaração, acompanhando a divergência instaurada pelo Ministro Alexandre de Moraes.

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio inicialmente indaga se “à época da decisão embargada, já havia o entendimento pacificado?” e a Ministra Rosa Weber (relatora) esclarece que não havia tal entendimento no âmbito da Corte.

Frente a isso, o Ministro vota com a Relatora justificando seu voto no sentido de que, embora os aclaratórios “hoje, praticamente se prestam à uniformização da jurisprudência. Mas é preciso, a teor do disposto no artigo 1.022, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil, que, na decisão embargada se tenha deixado de reconhecer a existência da tese pacificada. Vossa Excelência lembrou bem que o pronunciamento plenário foi posterior ao julgamento implementado. Por isso acompanho Vossa Excelência”.

 

– IV –

Com a devida venia não podemos concordar com a posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento dos embargos de declaração acima referidos, opostos na Rcl 15.724 Agr-ED/PR.

Expliquemos.

Em primeiro lugar, porque a discussão fático-jurídica tratada nos autos da Rcl 15.724 Agr-ED/PR não possui os mesmos contornos definidos no julgamento do RE 958.252-RG (tema 725). Naquela o litígio (=objeto do processo ou objeto litigioso) versava sobre a violação ou não do art. 97 da Constituição Federal e súmula vinculante 10 (ARE 791.932 – tema 739); nessa, a discussão travada ensejou a fixação de tese reconhecendo a licitude da “terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

Em segundo lugar, mesmo que ultrapassada a dicotomia dos objetos em litígio, o art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015, clama, pela existência de orientação jurisprudencial já firmada ao tempo do julgamento dos embargos de declaração, sobre a qual omitiu-se o órgão prolator da decisão impugnada, quer tenha sido provocado pela via recursal a se manifestar a respeito de tese firmada em julgamento de recursos repetitivos (RE/REsp repetitivos, p. ex. – posição que adotamos frente a natureza voluntária ínsita aos recursos), quer tenha deixado de se pronunciar ex officio como sustenta a doutrina[8].

Denota-se, no caso analisado, que ao tempo do julgamento que ensejou a oposição de embargos de declaração, não havia qualquer omissão na decisão atacada, sendo inaplicável, portanto, o comando normativo contido na hipótese de incidência do art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015.

Mostra-se, desse modo, que a hipótese de incidência contida na norma do art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015 não contempla nenhuma regra no sentido de, a propósito da oposição de embargos de declaração ou por meio de comportamento oficioso, legitimar o órgão julgador, a pretexto da existência de omissão na decisão/acórdão antecedente, aplicar tese superveniente firmada em precedentes oriundos de julgamento de recursos excepcionais repetitivos.

Estariam ausentes os pressupostos recursais intrínsecos de admissibilidade dos recursos em geral, nomeadamente, o interesse e o cabimento, pois.

À parte restaria, diante do trânsito em julgado do acórdão que inadmitiu os embargos de declaração, a propositura de ação rescisória nos termos dos arts. 966, V, §§ 5º e 6º[9] c.c. art. 489, § 1º, V e art. 927, § 4 º, todos do CPC/2.015, demonstrando, in claris, que a solução que lhe foi conferida concretamente violaria o atual entendimento consolidado sobre a matéria pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral (RE 958.252-RG – tema 725)[10].

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal ao assim proceder, superando, inclusive, sem o devido esforço hermenêutico-analítico, o entendimento consolidado no âmbito do Plenário da Corte no sentido de reconhecer a inviabilidade dos embargos de declaração para simples reapreciação do quanto decidido por inconformismo da parte recorrente, criou, por via transversa, uma hipótese de cabimento do recurso para os fins de reajustar-revisar-rejulgar decisão que esteja em dissonância com tese superveniente fixada no bojo de recursos repetitivos, desconsiderando o rol taxativo expresso do art. 994 do CPC/2.015. Violaram-se, com isso, os arts. 2º, 5º, II e LIV, 22, I, art. 59 e 61, todos da Constituição Federal, na medida em que se afrontaram os princípios expressos da separação de poderes, da legalidade estrita, do devido processo legal, da iniciativa e do processo legislativo, usurpando competências que não são conferidas ao Poder Judiciário.

 

– V –

Ao Poder Judiciário, muito embora se reconheça sua função criativa, essas se revelam em hipóteses excepcionais e restritas previamente autorizadas por normas, tais como, no controle de constitucionalidade em processos objetivos, nas lacunas normativas, concessões legais margeadas por certos graus de discricionariedade a serem colmatadas tendo por norte a legislação e a Constituição Federal, cabe interpretar o direito nos limites propugnados pelo ordenamento jurídico.

In casu, a ausência de autocontenção em face das regras que disciplinam os embargos de declaração exorta um agir jurisdicional em hipóteses pelas quais a sua missão deveria revelar-se negativa frente à pretensão formulada pela parte.

Essa “transgressão corretiva do direito”, por evidente, corrói o espectro do processo como garantia individual constrajuridicional do cidadão frente à atuação arbitrária do Estado-juiz. O agir jurisdicional abusivo compromete a higidez do procedimento estabelecido, da segurança jurídica e da tão decantada previsibilidade das decisões judiciais (art. 927, § 4° do CPC/2.015)[11].

Em outras palavras, as hipóteses de incidências taxativas previstas para o cabimento do recurso de embargos de declaração, em última análise, reforçam a legalidade e a tipicidade cerrada estabelecidas nos art. 994 c.c. art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015[12], evitando-se, de um lado, posturas abusivas dos órgãos do Poder Judiciário encarregados de realizar o julgamento e, por outro, conferindo aos jurisdicionados certeza e transparência necessárias para o escorreito manejo do recurso.

De tal modo, a obediência às regras do jogo além de conferir previsibilidade à aplicação do Direto – o que é chamado por Frederick Shauer de “argumento de confiança[13] – promove inexoravelmente, a potencial eliminação ou, ao menos, a redução das arbitrariedades nas decisões judiciais.

A interpretação-aplicação conferida pela maioria dos Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal ao art. 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2.015, para além das balizas ou bitolas normativas prescritas e as violações alhures encetadas, revela-se num genuíno argumento falacioso, na medida em que empresta razões utilitaristas e não atribui nenhuma importância às premissas fático-jurídicas do caso concreto (=falácia de relevância).

Assevera-se que, as normas as quais os “juízes dizem limitá-los quando julgam uma causa” e, vez por outra, possam albergar “textura aberta” ou conter “exceções impossíveis de especificar antecipada e exaustivamente” a sua exata significação, não existem em relação à compreensão do dispositivo objeto desse ensaio[14].

É preciso buscar no texto aquilo que ele diz relativamente à sua própria coerência contextual e à situação dos sistemas de significação em que se respalda; vedando-se colmatar no texto aquilo que o destinatário aí encontra relativamente a seus próprios sistemas de significação e/ou relativamente a seus próprios desejos, pulsões, arbítrios[15].

Chama-se a atenção a esse fato para ilustrar a proposição de que “as normas só são importantes na medida em que possam ajudar a prever o que os juízes farão[16].

Essa é toda a sua proeminência, nada mais, nada menos.

 

Notas e Referências

[1] CAETANO, Marcello. História do direito português. Lisboa: Verbo, 1993, p. 400-401.

[2]De acordo com a opinião prevalente, originaram-se os embargos de declaração da dificuldade de as partes apelarem diretamente ao Rei. A prática sugeriu o expediente de pedir a retratação ou reconsideração das sentenças, ´ou para declará-las (embargos de declaração), ou para modificá-las, isto é, alterá-las em algum ponto, ou alguns pontos indicados, em virtude de razão suficiente (embargos modificativos), ou para as revogar, no todo, ou na parte principal (embargos ofensivos)`. O desaparecimento dos tribunais deambulatórios estimulou o mecanismo. E, na compilação que resultou nas Ordenações Afonsinas, o Livro III, Título 60, n.º 4, e o Título 79, n.º 4, proibiram a inovação da sentença proferida, mas autorizaram o julgador que emitisse sentença duvidosa, ou da qual constassem palavras escuras e intrincadas, a declará-la por via de embargos. Em substância, o texto passou às Ordenações Manuelinas (Livro III, Título 50, n.° 5) e às Ordenações Filipinas (Livro 3, Título 66, n.º 6). Indica a gênese do recurso constituírem os embargos de declaração criação original do direito português” (ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8ª Ed. São Paulo: RT, 2016, p. 693-694).

[3] Pontos alegados por uma das partes e impugnados pela outra, tornam-se duvidosos, constituindo-se em questões. Questão, para os fins aqui pretendidos, portanto, é o ponto controvertido/duvidoso de fato ou de direito a ser solucionado, a fim de que se possa verificar se o(s) pedido(s) podem ser julgados e, se nesse caso, se é a hipótese de ser(em) julgado(s) procedente(s) ou improcedente(s). Conosco, nesse sentido, destacamos: ASSIS, ob. cit., p. 713 e MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2017, p. 365.

[4] Nem sempre a falta de exame(s) do(s) pedido(s) caracteriza omissão. Na cumulação eventual ou impropria, por exemplo, o órgão julgador apenas examinará o segundo pedido (subsidiário) na hipótese de rejeitar o primeiro (principal); na cumulação sucessiva ou própria, o órgão jurisdicional somente apreciará o pedido subsequente no caso de acolher o pedido antecedente (relação de dependência). Logo, acolhido o primeiro pedido, na cumulação eventual, ou rejeitado o primeiro pedido, na cumulação sucessiva, inexistirá vício de omissão no fato de o órgão julgador não enfrentar o pedido acessório ou dependente. Por outro lado, caracteriza omissão a falta de exame dos pedidos considerados implícitos ou inexistentes, a exemplo daqueles vertidos no art. 322, §1º do CPC, mas sobre os quais o órgão julgador deve se manifestar ex officio sob pena de caracterizar omissão.

[5] Consideraremos abarcada na sistemática de julgamentos de casos repetitivos, os recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida e julgada com a fixação de tese a ser, nos termos do art. 927, III do CPC, observada nos julgamentos que abarcam questões assemelhadas. Tal pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário assume a função de conter a multiplicidade de recursos excepcionais estabelecendo uma espécie de filtro recursal pelo Supremo Tribunal Federal.

[6] Consultar: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2016. Livro eletrônico.

[7] CONSTITUCIONAL E TRABALHISTA. NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR DESRESPEITO A CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO (CF, ART. 97 E SV 10). NEGATIVA PARCIAL DE VIGÊNCIA E EFICÁCIA AO INCISO II, DO ART. 94 DA LEI 9.472/1997 (LEI GERAL DE TELECOMUNICAÇÕES) POR ÓRGÃO FRACIONÁRIO COM BASE NA SÚMULA 331/TST. IMPOSSIBILIDADE. LICITUDE DE TERCEIRIZAÇÃO DE TODA E QUALQUER ATIVIDADE, MEIO OU FIM, NÃO SE CONFIGURANDO RELAÇÃO DE EMPREGO ENTRE A CONTRATANTE E O EMPREGADO DA CONTRATADA (ADPF 324 E RE 958.252). AGRAVO CONHECIDO. RECURSO PROVIDO. 1. A inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estatal só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (turma, câmara ou seção), em respeito à previsão do art. 97 da Constituição Federal. 2. A cláusula de reserva de plenário atua como condição de eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, aplicando-se para todos os tribunais, via difusa, e para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, também no controle concentrado (CF, art. 97 e SV 10). 3. É nula a decisão de órgão fracionário que, ao negar a aplicação do inciso II, do art. 94 da Lei 9.472/1997, com base na Súmula 331/TST, e declarar ilícita a terceirização e atividade-fim, reconhece a existência de vínculo trabalhista entre a contratante e o empregado da contratada, pois exerceu controle difuso de constitucionalidade, declarando a parcial nulidade sem redução de texto do referido dispositivo sem observar a cláusula de reserva de Plenário. AGRAVO PROVIDO. 4. O PLENÁRIO DA CORTE declarou parcialmente inconstitucional a SÚMULA 331/TST e proclamou a licitude da terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim; para afirmar a inexistência de relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. 5. Agravo conhecido e recurso extraordinário provido para restabelecer a sentença de primeiro grau, com a fixação da seguinte tese no TEMA 739: "É nula a decisão de órgão fracionário que se recusa a aplicar o art. 94, II, da Lei 9.472/1997, sem observar a cláusula de reserva de Plenário (CF, art. 97), observado o artigo 949 do CPC.” (ARE 791.932, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2018, DJe 06/03/2019).

[8] MEDINA, ob. cit., p. 1.273 e ASSIS, ob. cit., p. 710.

[9] Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

(...)

V - violar manifestamente norma jurídica

(...)

§5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

§6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.

[10] Nesse sentido: “O enunciado do § 5º, do art. 966, do CPC/2015, diz menos do que deveria, pois apresenta como nova hipótese de cabimento da ação rescisória apenas a aplicação do precedente sem a realização do devido distinguishing – ou melhor, a aplicação do precedente a caso que versa sobre fatos materiais distintos daqueles constantes no caso que gerou o precedente –, olvidando que também se viola a ratio decidendi do precedente quando não se a considera em caso que versa sobre fatos materiais semelhantes. É óbvio que o intérprete pode (e deve), a partir do § 5º, do art. 966, do CPC/2015, construir norma jurídica cuja hipótese de incidência contenha também a não aplicação do precedente a caso que verse sobre fatos materiais semelhantes ao do caso que gerou o precedente (...)” (ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues.  Capítulo VII. Da ação rescisória. Comentários ao art. 966. In: Novo Código de Processo Civil Comentado. Tomo III (art. 771 ao art. 1.072). RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida. et al. [Coords.]. São Paulo: Lualri Editora, 2017, p. 293).

[11] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

(...)

§4° A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

[12] Entendimento semelhante é defendido por Frederick Schauer, que atribui às regras o papel de estabilizar as expectativas de diferentes destinatários sobre a definição do que deve ser juridicamente exigido, principalmente em situações controversas, pois substituem as diferentes preconcepções de cada indivíduo sobre o que estaria, ou não, autorizado por uma definição simplificada, geral e abstrata, capaz de ser assimilada por aqueles que compartilha uma linguagem comum (Playing by the rules: a philosophical examination of rule based decision marking in law and life. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 137-145 – tradução nossa).

[13]Argumentos a favor da tomada de decisões baseada em regras tradicionalmente concentram-se na capacidade das regras para promover as virtudes inter-relacionadas da confiança, da previsibilidade e da certeza. De acordo com tais argumentos, aqueles que ao tomar decisões seguem as regras, mesmo quando outros resultados parecem preferíveis, permitem que os afetados pelas suas decisões possam prever com antecedência quais serão as prováveis decisões. Consequentemente, aqueles que serão afetados por decisões alheias podem planejar suas atividades com mais sucesso sob um regime de regras do que sob qualquer outra forma de tomada de decisão mais particularista. Embora nenhuma palavra possa expressar totalmente essas virtudes, ´certeza` tem conotações mais fortes do que são necessárias para o ponto que se defende, e, ´previsibilidade` só tem este argumento como o argumento a confiança” (SHAUER, ob. cit., p. 137-138 – tradução nossa).

[14] HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad. Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 180.

[15] ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015. Edição do Kindle.

[16] LLEWELLYN, Karl N., The Bramble Bush: the classic lectures on de law and law school. New York: Oxford University Press, 2ª Ed., 1951, p. 9 apud HART, Ob. cit., p. 180.

 

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