#63 - !Hoy me leo y no me reconozco!  “Batalhas de EUGENIA” pelo Garantismo Processual

25/05/2020

 

 

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

Meu amigo RENZO CAVANI, da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP), convidou-me para escrever na coletânea “La outra mirada del derecho procesal. Dialogando com Eugenia Ariano”, por ele coordenada e que será publicada em Lima pela casa editorial Lus et Veritas, ainda neste ano de 2020. Como se vê, a obra coletiva é uma homenagem à Professora ítalo-peruana EUGENIA ARIANO DEHO, reconhecidamente um dos maiores destaques da processual-civilística daquele país. Mas não é só. EUGENIA ARIANO é a pioneira do Garantismo Processual no Peru! Tão logo chegou-me o convite, disse a RENZO que minha ideia seria produzir um ensaio descrevendo a importância de EUGENIA em prol do movimento processual-garantista a partir de sua tradução ao espanhol de parte significativa da obra de FRANCO CIPRIANI. A empreitada de EUGENIA ARIANO consistiu na seleção, na compilação, na organização e na tradução de textos de suma importância produzidos pelo ex-Professor Ordinário de Processo Civil da Universidade de Bari, falecido em abril de 2010. O resultado desta tarefa hercúlea, que durou dois anos, redundou no livro intitulado Batallas por la justicia civil – Ensayos, publicado no ano de 2003 em Lima, pela Editorial Cuzco. Aí estão reunidos textos magnos de CIPRIANI traduzidos por EUGENIA, todos já da fase mais madura do professor italiano e já no âmbito de sua batalha pelo garantismo  

Vi por bem intitular este ensaio da maneira vista acima por duas razões: [i]  a frase “Hoy me leo y no me reconozco” é uma espécie de mea culpa por parte de EUGENIA, que confessou que até o fim dos anos noventa figurava entre aqueles processualistas que acreditam nos postulados publicísticos que fragilizam o processo como garantia, e isso até começar a ter contato com a obra de FRANCO CIPRIANI (cf. nota de rodapé 2 de sua “Presentación” ao Batallas por la justicia civil – Ensayos, Lima : Editorial Cuzco, 2003, p. XVII); [ii] a frase Batalhas de EUGENIA pelo Garantismo Processual” lhe presta homenagem para identificar que sua batalha, de uma forma ou de outra, é a batalha  de todos nós que hoje também não nos reconhecemos quando lembramos a maneira que pensávamos, ensinávamos e escrevíamos antes de conhecermos o Garantismo Processual.

A versão em espanhol deste ensaio será publicada no Peru na coletânea já mencionada, sob a coordenação do Professor RENZO CAVANI.

 

I

No ambiente da processual-civilística o Garantismo Processual ainda é um movimento incipiente. Somos poucos os seus representantes, é verdade. Mas o somos em número crescente! O fio de ouro que perpassa a racionalidade do saber processual-garantístico é o valor constitucional LIBERDADE, garantido no plano da juridicidade interna [=Constituições] e internacional [=Convenções de Direitos Humanos]. No plano das ideias a episteme garantística “batalha contra o subproduto obtido a partir da legislação e da doutrina surgidas ao largo do século XX na Europa continental, o que influenciou sobremaneira a nossa Latino-américa em sua forma de criar os modelos operacionais do procedimento civil, penal, laboral. O “subproduto” daí surgido é conhecido por vários nomes que se identificam a partir da essência ex parte principis que os caracteriza: autoritarismo, publicismo, decisionismo, ativismo, instrumentalismo, neoconstitucionalismo, cooperativismo etc. Para além dos códigos processuais autoritários que surgiram em países latino-americanos no último século, hoje sabemos que duas foram as Magna opera  que lhes serviram de inspiração: [i] a ZPO austríaca de 1895, o chamado “CPC Klein”, e [ii] o CPC italiano de 1940, editado sob o fascismo e ainda hoje negado por alguns os atributos autoritários de suas estruturas.

Em meu país ainda reina uma espécie de italianismo-processual no senso comum do discurso jurídico produzido em torno do direito processual em geral. Essa “genealogia autoritária” que rege o vínculo civil-procedimental entre o Estado-juiz, os indivíduos e a sociedade nos foi mostrada por FRANCO CIPRIANI na Rivista di Diritto Processuale em 1995, sob o título Nel centenario del Regolamento di Klein (Il processo civile tra libertà e autorità). No percurso de sua “Batalha” existencial contra os “postulados publicísticos” do processo civil, coube a EUGENIA ARIANO DEHO verter o escrito de CIPRIANI para o seu idioma materno, apresentando ao estudioso hispanoparlante de nosso continente aquele texto histórico do ex-Professor Ordinário de Direito Processual Civil da Universidade de Bari. O ano era 2001 e o título da tradução ficou assim: En el centenário del Reglamento de Klein (El proceso civil entre libertad y autoridad). O texto foi publicado na Revista Jurídica del Peru, LI, nº 18, pp. 119 e seguintes[1]. Mais adiante falaremos sobre a influência de EUGENIA ARIANO na difusão do Garantismo Processual a partir da tradução de parte significativa da obra garantística de FRANCO CIPRIANI.

 

II

Não existe um “único” Garantismo Processual! Ele consiste em um campo de ideias que reflete o compromisso republicano e democrático do “macro fenômeno jurídico-constitucional” que conhecemos e chamamos por PROCESSO. Por isso que aqui não cabem as adjetivações civil ou penal, por exemplo, que refletem apenas o caráter procedimental, não processual, desse “macro fenômeno”. A “ideia-força” LIBERDADE permeia a epistemologia processual-garantista. O saber que daí resulta desconstrói as estruturas “publicísticas” e “autoritárias” para revelar o PROCESSO a partir daquilo que ele é, uma GARANTIA, conforme vaticinava, ainda em janeiro de 2006, a MOCIÓN DE VALENCIA – El proceso civil en el siglo XX: tutela y garantia, também subscrita por EUGENIA em uma de suas “Batalhas” em prol do Garantismo Processual. Ainda que a MOCIÓN DE VALENCIA faça referência ao “processo civil”, seu campo de abrangência é o PROCESSO, sem adjetivações. Insisto no ponto!

A postura garantística implica a tomada de posição em favor de um saber nitidamente PROCESSUAL. Com isso eu quero dizer que o fenômeno PROCESSO precisa ser pensado “legalmente”, estudado “doutrinariamente” e concretizado “pragmaticamente” a partir da unitariedade constitucional que lhe forma o caráter. Valores jurídico-constitucionais supremos como separação dos poderes (=checks and balances), liberdade, legalidade, igualdade, devido processo legal (=due process of law), contraditório, ampla defesa, recorribilidade, acusatoriedade, imparcialidade, impartialidade, presunção de inocência, publicidade, fundamentação das decisões judiciais, vedação de provas ilícitas etc, formam o ‘bloco de constitucionalidade” que permite a construção juridicamente racional do discurso que explica o PROCESSO em sua dimensão interna e externa. A dimensão interna corresponde às suas engrenagens de funcionamento, cujo impacto será observado na criação legislativa dos “modelos procedimentais” (=civil, penal, laboral) que serão operados pelas partes e pelos juízes perante o Poder Judiciário. A dimensão externa corresponde aos atributos de republicanismo e democraticidade que fazem do PROCESSO uma “instituição de garantia contrajurisdicional” [=EDUARDO COSTA], o que reafirma a conclusão da MOCIÓN DE VALENCIA no sentido de que o PROCESSO é garantia do indivíduo e da sociedade diante da JURISDIÇÃO, que é poder.  

 

III

A primeira vez em que o nome de EUGENIA ARIANO DEHO me chegou aos ouvidos foi na cidade Chillán, no Chile, num congresso internacional que se realizou numa estação de esqui com águas termais. O evento foi sobre o anteprojeto de CPC chileno. Como eu havia escrito sobre a então recente Reforma do CPC[2] havida no Brasil, e por estar cursando Mestrado em Direito Processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR), na Argentina, meu venerável mestre ADOLFO ALVARADO VELLOSO propôs aos organizadores do congresso que eu fosse um dos expositores, o que foi aceito. Estávamos em outubro de 2008. 

Nesse congresso também teve fala JUAN MONTERO AROCA, outra inefável referência em minha trajetória processual-garantística. O professor de Valencia ali também esteve para fazer o lançamento da edição chilena da clássica obra por ele coordenada e intitulada Proceso civil e ideología – Un prefacio, una sentencia, quince ensayos y Moción de Valencia, que havia sido publicada em setembro daquele 2008 pela casa Editorial Metropolitana, de Santiago do Chile. A apresentação da edição chilena ficou a cargo de meu colega de Instituto Pan-Americano de Direito Processual (IPDP) DIEGO PALOMO VÉLEZ, professor da Universidad de Talca. A inegável relevância dessa obra fez com que ela também viesse a ser publicada no Peru pela Editorial San Marcos, de Lima, em 2009. A apresentação à edição peruana ficou a cargo de outro colega de Instituto Pan-Americano, GUIDO AGUILA GRADOS, que à época era o Presidente do Capítulo Peru do IPDP. Ainda há a edição argentina de “Proceso e ideología”, publicada em 2016 pela Editorial Astrea, de Buenos Aires. A exemplo da edição peruana, esta edição argentina também encarta, além da Moción de Valencia, a DECLARACIÓN DE AZUL – El proceso civil en los países iberoamericanos. A Declaração de Azul surgiu no ensejo do X Congreso Nacional de Derecho Procesal Garantista ocorrido de 12 a 14 de novembro de 2008, na pequena e aprazível cidade de Azul, sempre a cargo da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires (UNICEN) e sob a supervisão geral de JULIO VÉLEZ, professor de direito processual da UNICEN e também meu colega de IPDP. Devo dizer que sob inspiração direta da Moción de Valencia e da Declaración de Azul, no Brasil coube a mim redigir, em agosto de 2017, a CARTA DE JUNDIAÍ – Pela compreensão e concretização do Garantismo Processual, o primeiro manifesto brasileiro de vocação processual-garantística. A Carta de Jundiaí foi subscrita por juristas de todos os quadrantes do país e por outros tantos de vários países da América Latina. Após meu pedido, o sempre gentil Professor RENZO CAVANI traduziu-a ao espanhol[3]. As versões em português e espanhol da Carta de Jundiaí podem ser acessadas na web.

Essa obra coordenada por MONTERO AROCA foi originalmente publicada na Espanha em 2006, pela Tirant lo Blanch. Nela foram reunidos alguns textos que sintetizam as causas determinantes do surgimento do saber proposto pelo Garantismo Processual, cuja “queda da Bastilla” ocorreu na conferência de encerramento das XVII Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual, em São José da Costa Rica, no outono do ano 2000[4]. Foi ali que JUAN MONTERO AROCA demonstrou que a LEC espanhola, publicada em 7 de janeiro daquele ano, havia superado as concepções “publicistas” e “autoritárias” que marcaram a legislação processual civil ao largo do séc. XX pela Europa continental e América Latina. O texto base dessa conferência foi acrescentado de umas “quinze mil palavras” e se converteu, no ano de 2001, no livro Los princípios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil. Los poderes del juez y la oralidad, publicado na Espanha pela Tirant lo Blanch. Por iniciativa de FRANCO CIPRIANI este livro foi traduzido ao italiano sob o título I prinipi politici del nuevo processo civile spagnolo, tendo sido publicado por Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, no ano de 2002. A conferência de São José da Costa Rica, a edição espanhola do livro sobre os princípios políticos da LEC e sua tradução ao italiano, somado aos vários textos sobre o tema surgidos a partir daí, levou MONTERO AROCA a organizar a coletânea “Proceso civil e ideología” em 2006. Neste momento surge novamente EUGENIA ARIANO DEHO em sua “Batalha” pelo Garantismo Processual, desta vez coadjuvada pela conjugação de três fatores: [i] sua proximidade com o processualista de Valencia, [ii]  sua proximidade com FRANCO CIPRIANI, [iii] sua iniciativa em traduzir, organizar e publicar no Peru textos do professor de Bari em 2003 [=Batallas por la justicia civil – Ensayos]. Aqui a “Batalha” de EUGENIA foi revelada no fato de ter realizado “la mayor parte de las traducciones que del italiano al espanõl han sido necesarias[5] para que os textos pudessem ser incluídos nessa obra histórica que é “Proceso e ideología”, um dos marcos fundantes do movimento em prol do Garantismo Processual na Ibero-américa.         

           

IV

Das “Batalhas de EUGENIA” pelo Garantismo Processual merece destaque sua inestimável contribuição em traduzir a parcela mais expressiva da obra garantista de FRANCO CIPRIANI para o espanhol. Mais do que uma contribuição, reputo que o empenho de EUGENIA com as traduções foi um presente que ela ofereceu à comunidade de estudiosos que pretendem compreender as relações do PROCESSO com a liberdade ou, dito de outra maneira, os motivos históricos pelos quais os códigos de “processo” (=procedimento) do século XX foram legislados em desarmonia com a liberdade.

Dentre os processualistas latino-americanos, EUGENIA ARIANO DEHO foi quem mais proximidade e amizade desenvolveu com FRANCO CIPRIANI[6]. Natural da cidade de Bari, CIPRIANI ali nasceu em 8 de novembro de 1939 e ali mesmo morreu em 27 de abril de 2010. Após ter escrito e publicado algumas monografias durante os anos setenta, em 1979 conquistou a cátedra de direito processual civil na Universidade de Bari, onde se tornou Professor Ordinário[7]. MONTERO AROCA lembra que estes e outros escritos fizeram CIPRIANI bem conhecido no meio forense e acadêmico de Bari, mas pouco conhecido na Itália e nada no plano internacional. Tudo começou a mudar quando ao final do ano de 1987 pediram a FRANCO CIPRIANI que dissertasse no seminário de estudos que seria realizado em abril de 1988 em homenagem a TOMMASO SICILIANI (1882-1964). JUAN MONTERO relembra que o professor de Bari levou a sério a incumbência e foi muito além de preparar palavras superficiais que são próprias nessas ocasiões. Após suas pesquisas, CIPRIANI concluiu que não seria possível compreender a relevância do trabalho de um obscuro professor da região da Puglia, como houvera sido SICILIANI, sem lhe situar a época e os personagens do momento em que viveu. O título da intervenção oral de CIPRIANI em abril de 1988 foi: Tommaso Siciliani tra Mortara e Chiovenda. A partir daí ele se deu conta de que o resgate de acontecimentos históricos que influenciaram o desenvolvimento do processualismo italiano era um campo pouco explorado pela doutrina. Em 1991 FRANCO CIPRIANI fez publicar um livro que “iba a revolucionar” a história do direito processual civil italiano: Storie di processualisti e di oligarchi. La procedura civile del regno d´Italia (1866-1936). No ano seguinte, 1992, CIPRIANI publicou um segundo livro de resgates históricos: Il Codice di procedura civile tra gerarchi e processaulisti. Riflessioni e documenti nel cinquentenário dell´entrata in vigore. A partir desses dois livros iniciais FRANCO CIPRIANI aumentou sua produção na literatura jurídico-processual com abordagens históricas que servem de tête de chapitre para a (re)construção de um PROCESSO comprometido com os valores e garantias constitucionais.[8] 

Por sua vez, pouco a pouco EUGENIA ARIANO DEHO foi se dando conta que nos anos posteriores ao CPC-Peruano de 1993, a tradicional receita de privilegiar a “la autoridad sobre la libertad” não estava colaborando em nada para a celeridade do processo civil ou para a produção de sentenças “más justas”. Nessa época, as “Batalhas de EUGENIA” em prol de um processo antiautoritário começam a ganhar musculatura quando ela, então, começou a conhecer alguns trabalhos do professor da Universidade de Bari. EUGENIA afirma que passou a identificá-los como textos “desmitificantes”, como “trabajos que cuestionaban desde sus cimientos las abstractas certezas que yo misma hasta hacía poco tiempo tenía sobre las milagrosas ´recetas publicísticas´ para curar los males de nuestra justicia civil[9]. EUGENIA só foi conhecer pessoalmente a FRANCO CIPRIANI na Argentina. Era novembro de 2000 e a processualista peruana lá esteve a convite de ADOLFO ALVARADO VELLOSO para dissertar em um congresso de direito processual voltado a “denunciar las antigarantistas desviaciones publicísticas”. Foi desse contato tête-à-tête com o ex-professor da Universidade de Bari que EUGENIA ARIANO sentiu a necessidade de iniciar a tradução de parte expressiva dos ensaios de CIPRIANI para o espanhol. Após dois anos de trabalho, publicou-se em Lima, em maio de 2003, a inestimável contribuição de EUGENIA ao Garantismo Processual sob o título Batallas por la Justicia Civil, onde se encontram reunidos diversos textos que FRANCO CIPRIANI escreveu em sua “pequeña batalla a favor del garantismo”, conforme ele mesmo dizia[10]. À “pequena batalla” de CIPRIANI foram agregadas as “Batalhas de EUGENIA” pelo Garantismo Processual. A tradução ao espanhol dos ensaios de desconstrução autoritária produzidos pelo professor italiano, figura dentre as mais relevantes das “Batalhas” empreendidas por EUGENIA ARIANO DEHO pela compreensão do fenômeno PROCESSO a partir de sua dimensão constitucional republicanamente acusatória e garantista.

 

V

É importante que se diga que EUGENIA não está sozinha nessas batalhas. Ela é um núcleo gerador e incentivador do Garantismo Processual em seu país, onde também há outros processualistas que pensam o PROCESSO a partir da liberdade.

No plano internacional há o Instituto Panamericano de Derecho Procesal (IPDP), hoje sob a presidência do destacado jurista panamenho FEDERICO LEE. O IPDP congrega processualistas de vários países ibero-americanos que respeitam e difundem os postulados do Garantismo Processual. Ainda no plano internacional, também merece destaque a Maestria en Derecho Procesal da Universidad Nacional de Rosario (UNR-Argentina), que é dirigida por ADOLFO ALVARADO VELLOSO há mais de vinte anos e que já formou alunos de todos os lugares da América Latina, desde o México até a Terra do Fogo. Ali na UNR o PROCESSO é ensinado na perspectiva garantista.

No Brasil não é diferente. Sem embargo, por influência de LUIGI FERRAJOLI a preocupação garantística ficou circunscrita ao ambiente da dogmática “processual” penal.  Desde o último trimestre de 2009 a temática do Garantismo passou a se tornar conhecida pela doutrina interna da processual-civilística[11]. Algum tempo depois, em setembro de 2012, pela abertura que foi dada por LÚCIO DELFINO e FERNANDO ROSSI, as portas do já tradicional Congresso de Direito Processual de Uberaba se abriram para que ali fossem discutidos temas relacionados ao Garantismo Processual. Nesta ocasião estiveram no Brasil para participar da 6ª edição do Congresso de Uberaba nomes como JUAN MONTERO AROCA e ADOLFO ALVARADO VELLOSO. Deste fato acabou surgindo a coletânea de textos Ativismo Judicial e Garantismo Processual, tendo sido publicada no primeiro semestre de 2013 pela Editora JusPodium, da qual fui um dos coordenadores[12]. Mais ou menos nessa mesma época, e novamente pela generosidade de seus diretores, e hoje ilustres garantistas, LÚCIO DELFINO e FERNANDO ROSSI, a Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) passou a recepcionar e a veicular textos de autores nacionais e estrangeiros desde a mirada garantista. No ano de 2015 a RBDPro passou a ser o veículo oficial de divulgação do IPDP no Brasil.

Em março de 2016 foi fundada a Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), que teve como seu primeiro presidente outro notório batalhador pelo Garantismo, EDUARDO COSTA. A ABDPro tem por vocação institucional combater o hiperpublicismo processual e, exatamente por isso, pode-se dizer que seus quase quatrocentos membros espalhados por todos os Estados brasileiros têm tomado contato com as diretrizes do Garantismo. A Associação Brasileira de Direito Processual tem realizado encontros nacionais que procuram abordar os mais diversos temas de caráter garantista.

Com apoio da diretiva internacional do IPDP e da ABDPro, e recepcionado pela Faculdade de Direito Padre Anchieta (FADIPA) – minha Alma Mater –, desde 2017 é realizado o Colóquio Internacional de Processo de Jundiaí, integralmente voltado à difusão do Garantismo Processual. Neste ano de 2020 seria realizada a sua 4ª edição entre os dias 15 e 16 de maio, tendo sido adiada sine die por conta da crise planetária gerada pelo novo coronavírus. Foi na 1ª edição deste Colóquio Internacional onde foi lida pela primeira vez a CARTA DE JUNDIAÍ, conforme já mencionei.

O Garantismo Processual também vem ganhando espaço no meio acadêmico. No final do segundo semestre de 2018 foi defendida e aprovada, ao que tudo indica, a primeira tese de doutoramento no Brasil a sustentar que o modelo de processo desenhado na Constituição da República é de inescondível perfil garantista. Trata-se da tese de MATEUS COSTA PEREIRA defendida perante a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). A edição comercial da tese foi publicada com o título “Introdução ao Estudo do Processo: fundamentos do garantismo processual brasileiro”, Editora Letramento (Casa do Direito), 2020. A pedido de MATEUS coube a mim escrever o posfácio desta obra.

Em fevereiro de 2019 foi lançada a Coluna Garantismo Processual na página web Empório do Direito [=https://emporiododireito.com.br/colunas/garantismo-processual]. Sob a coordenação de EDUARDO COSTA e ANTÔNIO CARVALHO, ali são publicados ensaios garantistas semanalmente. A Coluna Garantismo Processual do site Empório do Direito é alimentada por textos de Antônio José Carvalho da Silva Filho, Diego Crevelin de Sousa, Eduardo José da Fonseca Costa, Glauco Gumerato Ramos, Júlio Cesar Rossi, Luciana Benassi Gomes Carvalho, Lúcio Delfino, Igor Raatz, Mateus Costa Pereira, Natascha Silva Anchieta, William Galle Dietrich.   

Esse breve bosquejo histórico de dez anos, naturalmente incompleto em relação a nomes e datas, mas fiel a uma realidade hoje existente em meu país, autoriza-me o seguinte vaticínio: caminhamos a passos firmes rumo ao que, em breve, poderá vir a ser chamada de Escola brasileira de Garantismo Processual. Como eu disse no início deste ensaio, o Garantismo é um movimento ainda incipiente; somos poucos os garantistas, mas em número crescente. Disse também que não existe um “único” Garantismo Processual. A síntese destes elementos resulta na possibilidade de ser criada e desenvolvida uma epistemologia toda própria, naturalmente a partir de uma  racionalidade jurídica de raiz constitucional que venha a confirmar o óbvio ainda não enxergado pelos estatólatras da processualística, no sentido de que o macro fenômeno jurídico-constitucional  a que chamamos de PROCESSO é garantia contra o poder, ou, conforme vem sendo repetido pelos garantistas brasileiros, o processo é uma instituição de garantia contrajurisdicional [=EDUARDO COSTA].

As “Batalhas de EUGENIA” também são as nossas batalhas. E isso naturalmente nos dá um sentido de irmandade que nos enlaça à liberdade garantida desde as nossas Constituições.

 

VI

EUGENIA ARIANO DEHO é uma referência do Garantismo Processual em seu país e na América Latina. Penso que a transcendência de sua obra está radicada no empenho que teve em traduzir importantes textos nos quais FRANCO CIPRIANI desconstruiu alguns mitos que geraram a formação de uma processualística (ultra)autoritária que, ao largo do século XX, insistiu em milagrosas “recetas publicísticas”. Conforme demonstrou CIPRIANI, o juiz poderoso do “Código Klein”, do CPC italiano de 1940 e dos códigos processuais surgidos a partir deles na América Latina, nunca esteve a serviço das garantias dos demandantes. Ao contrário, estes códigos converteram-se em legislações que, de uma maneira ou de outra, puseram-se a serviço do poder e não da garantia, da autoridade e não da liberdade. A “chave” para mudar esse estado de coisas passa pela consciência de que o PROCESSO é um macro fenômeno jurídico-constitucional. Se assim o é, impõe-se sua compreensão e manejo como garantia contra o poder (=contrajurisdicional) e não como instrumento de poder. A partir daí faz-se necessário reconhecê-lo em sua unitariedade constitucional.  Ou seja, as regras de seu funcionamento estão ancoradas na Constituição e nas Convenções internacionais que vigoram em determinado tempo e em determinado espaço. E mais: aquilo a que chamamos de “processo” civil, penal ou laboral, na verdade é o regramento legislativo dos procedimentos a que se referem. Logo, o código que os regula deveria se chamar código de “procedimento”, e não código de “processo”. Há uma razão histórica para esse giro de nomenclatura e isso também foi denunciado pelo ex-professor de Bari. Essa a troca de nome – ou “cambio de sexo” [=CIPRIANI] – na respectiva disciplina universitária, mudando de “procedimento civil” para “processo civil”, deve-se diretamente a CHIOVEDA, quando aos trinta anos de idade assumiu como professor extraordinário, para o ano acadêmico 1901-1902, a cátedra de “Procedura civile e ordinamento giudiziario” da Faculdade de Direito da Universidade de Parma[13]. Aqui temos mais um momento de dívida com EUGENIA e suas batalhas. Não fosse ela e suas traduções a impulsionar a difusão dos estudos de FRANCO CIPRIANI na América Latina, certamente algumas dessas denuncias feitas pelo professor italiano não teriam chegado tão facilmente até nós!

 

VII

Metaforicamente é possível dizer que de batalha em batalha seguimos levando a vida. Certamente muitas dessas batalhas nos motivam para a caminhada até mais do que a própria chegada. Assim nos faz lembrar Konstantinos Kaváfis, em Ítaca. Tudo isso para dizer que as “Batalhas de EUGENIA” pelo Garantismo Processual devem seguir, até mesmo pela projeção acadêmica que tem em seu país. De uma forma geral essas batalhas também dizem respeito a todos nós processualistas, que respeitamos o republicanismo, a democraticidade e a liberdade estabelecidas por nossas Constituições. Em suma, a todos nós que respeitamos o PROCESSO e que, a partir dele, queremos ver o desenvolvimento regular dos procedimentos civil, penal, laboral que existem nos códigos que foram elaborados legislativamente em nossos países.

 

Neste momento em que caminho para o fechamento deste ensaio que se publicará no Liber Amicorum em homenagem a Professora EUGENIA ARIANO DEHO, dirijo-lhe um convite que bem poderia ser um desafio; um respeitoso desafio acadêmico; um convite-desafio, portanto. O faço até mesmo em razão da projeção e do prestígio que sabidamente EUGENIA desfruta em seu país, ao mesmo tempo que também o faço para que mais essa empreitada possa se agregar às suas grandiosas batalhas pelo Garantismo Processual. Em miúdos: um pedido grande para alguém que é grande. Talvez seja um convite-desafio a ser dirigido a todos nós. Lá vai:

- Professora EUGENIA

Talvez tenha chegado a hora de nós processualistas compreendermos que o “processo” (=procedimento!) civil, penal, laboral, ou qualquer outra adjetivação que se queira dar, deve iniciar pelo estudo do PROCESSO, cuja matriz de compreensão está na textualidade da Constituição e das Convenções internacionais que vigoram em nossos países. Portanto, algo que vai muito além da vetusta teoria geral do processo que consta nos manuais. Talvez tenha chegado a hora de instituirmos nas grades acadêmicas dos cursos de graduação uma disciplina autônoma que pode vir a ser denominada de DIREITO DO PROCESSO, a ser ensinada antes de os alunos começarem a estudar o “procedimento” civil, penal, laboral etc. A partir daí ensinaríamos aos jovens da Faculdade os fundamentos mínimos do saber jurídico que lhes permitirá compreender garantisticamente esse macro fenômeno jurídico-constitucional a que chamamos de PROCESSO. Com o domínio prévio deste saber, penso que será mais fácil ao futuro profissional do direito compreender que de “garantia contra o poder” se trata, e não de “instrumento deste”. Se obtivermos êxito, auxiliaremos os jovens a “escapar” das armadilhas históricas-autoritárias que nos foram legadas. Se fracassarmos, talvez veremos frustradas boa parte de nossas batalhas. Se no passado o discurso autoritário nos “aprisionou”, na atualidade o discurso garantista poderá (re)afirmar que é sob uma ordem constitucional que vivemos, ordem essa que prevê um ambiente de liberdade e não de arbítrio estatal.

As “Batalhas de EUGENIA” pelo Garantismo Processual seguirão nos ensinando, notadamente no que respeita a sua inestimável contribuição em traduzir ao espanhol diversos ensaios de FRANCO CIPRIANI, revelando o empenho do professor de Bari em suas Batallas por la Justicia Civil.

À Professora EUGENIA ARIANO somos todos gratos!  

 

Notas e Referências

[1] Também em 2001 foi publicada na Argentina a tradução de ADOLFO ALVARADO VELLOSO, “En el centenário del Reglamento de Klein (El proceso civil entre libertad y autoridad)”, Revista de Derecho Procesal, Córdoba, Nº 2, pp. 31 e ss.

[2] Foram dois livros que escrevi em coautoria com Daniel Amorim Assumpção Neves, Rodrigo da Cunha Lima Freire e Rodrigo Mazzei. São eles: Reforma do CPC, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, e Reforma do CPC 2, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2007.

[3] Sob o título Carta de Jundiaí – Por la comprensión y concreción del Garantismo Procesal. Reitero a RENZO CAVANI o meu sincero agradecimento pela impecável tradução que realizou.

[4] Cf. o meu texto “Ativismo e Garantismo no processo civil: apresentação do debate”, publicado originalmente na Revista MPMG Jurídico, nº 18, out/nov/dez de 2009, pp. 8-15, publicação oficial do Centro de Estudos do Ministério Público do Estado Minas Gerais. Tem sido reconhecido pela doutrina de meu país que foi este texto que introduziu e fomentou no Brasil o despertar para o Garantismo Processual na processualcivilística

[5] Conforme expressamente declarou JUAN MONTERO AROCA no prólogo da 1ª edição de “Proceso e ideología”.

[6] Conforme lembrou JUAN MONTERO AROCA em 24 de setembro de 2010, na Universidad de Lima, na conferência de encerramento do XXIII Encuentro del Instituto Panamericano de Derecho Procesal, ao dissertar sobre FRANCO CIPRIANI, que havia falecido em abril daquele ano. Cf. na edição argentina de Proceso civil e ideología, 2016, p. 455. 

[7] Idem, p. 457.

[8] Ibidem, pp. 457-458. MONTERO AROCA ainda informa quais os livros vieram na sequência. São eles: Ideologie e modeli del processo civile (1997), Avvocatura e diritto ala difesa (1999), Materiali per lo studio del Ordinamento Giudiziario (2001), Il processo civile nello Stato democrático (2006), Scritti in onore dei Patres (2006), Piero Calamndarei e la procedura civile (2009, 2ª edição).

[9] Cf. EUGENIA ARIANO, na “Presentación” à obra Batallas por la justicia civil – Ensayos, op. cit., XVI-XVII.   

[10] Cf. EUGENIA, “Presentación”, XVIII.

[11] Cf. o meu texto, já mencionado, “Ativismo e Garantismo no processo civil: apresentação do debate”, publicado originalmente na Revista MPMG Jurídico, nº 18, out/nov/dez de 2009, passim. Este escrito é localizável na web.

[12] Sobre o fato de a coletânea ter sido impulsionada pela vinda de MONTERO AROCA e ALVARADO VELLOSO para a 6ª edição do Congresso de Uberaba, cf. a “Nota dos coordenadores”, pp.9-11, Ativismo Judicial e Garantismo Processual, Salvador: Ed. JusPodium, 2013, coords.: FREDIE DIDIER JR. GLAUCO GUMERATO RAMOS, JOSÉ RENATO NALINI e WILSON LEVY.

[13] Cf. CIPRIANI, Franco. “Giuseppe Chiovenda en Parma – De la ´procedura civile´ al ´diritto processualle´”, em Batallas por la justicia civil – Ensayos. Op. cit., pp. 485-505.

 

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