#60 - A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO É MONOPÓLIO DAS CORTES SUPREMAS?

04/05/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

Onde ninguém fala sobre o poder é onde é inquestionável, e, em sua inquestionabilidade é, ao mesmo tempo, mais seguro e grande. Onde se fala sobre poder, começa sua derrocada”.

Ulrich Beck

– I –

Em sua obra “Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente”, o Prof. Daniel Mitidiero procura estabelecer a necessidade de superação do modelo de Tribunais Superiores em favor de um modelo de Cortes Supremas a partir da distinção de funções lato sensu que o processo deve assumir na ordem jurídica[1].

O Prof. Mitidiero sustenta a superação do Estado Legislativo para o Estado Constitucional e com ela o surgimento de três significativas alterações no papel desempenhado pelos Tribunais Superiores, a saber: (i) a pressuposição de que norma era sinônimo de regra; (ii) a técnica legislativa passou da legislação redigida de forma casuística para uma legislação em que se misturam técnica casuística e técnica aberta e, (iii) o significado da interpretação jurídica e, no fundo, à própria compreensão a respeito da natureza do Direito.

Para o jurista gaúcho, a partir dessa “verdadeira virada conceitual”, passamos do tempo da legislação para a “jurisdição (vocazione del nostro tempo per la giurisdizione) – ou, mais precisamente, para o processo. A partir dessa passagem, o processo civil passou a responder não só pela necessidade de resolver casos concretos mediante a prolação de uma decisão justa para as partes, mas também pela promoção da unidade do direito mediante a formação de precedentes. Daí que o processo civil no Estado Constitucional tem por função dar tutela aos direitos mediante a prolação de decisão justa para o caso concreto e a formação de precedente para promoção da unidade do direito para a sociedade em geral[2].

Neste espaço, interessa-nos, a análise crítica em relação ao item III (interpretação jurídica) a qual, em certa medida se espraia e atinge direta ou indiretamente os conteúdos dos itens I e II das “significativas alterações” vertidas no bojo da tese do jurista gaúcho.

 

– II –

O trabalho sustenta que, enquanto as Cortes Superiores estariam vinculadas a uma compreensão cognitivista do Direito, a jurisdição é entendida como simples declaração de uma norma pré-existente e o escopo está em controlar a decisão recorrida mediante uma jurisprudência uniforme, sem que as razões expendidas pelos juízes possam ser consideradas como fontes primárias do Direito”, as Cortes Supremas “estão vinculadas a uma compreensão não cognitivista e lógico-argumentativa do Direito, a jurisdição é entendida como reconstrução e outorga de sentido a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica e o escopo consiste em dar unidade ao Direito mediante a formação de precedentes, entendidas as razões adotadas nas decisões como dotadas de eficácia vinculante[3].

Com as devidas venias, a tese elaborada pelo Prof. Mitidiero não se sustenta.

 

– III –

De arrancada, parece-nos equivocado denominar Estado absolutista[4] de Estado Legislativo.

O que se denominou Estado Legislativo é, em verdade, o Estado absolutista (pré-movimento constitucional) no bojo do qual não era conferida ao Poder Judiciário a função de interpretar a lei, mas apenas o dever de zelar pelo procedimento judicial e ao final proferir uma decisão baseada estritamente na hipótese fático-jurídica abstratamente expressa na norma. Ao juiz ou Corte era franqueada apenas a aplicação do regramento pronto e acabado confeccionado pelo soberano. Não havia qualquer separação de poderes e harmonia entre as funções estatais conhecidas hoje. Todo o poder emanava do Rei. No Estado absolutista o soberano concentrava todo o poder em suas mãos (I´État c´est moi) e entre as poucas concessões que outorgava aos juízes caber-lhes-iam tão somente pronunciar a sintaxe da lei (le juge est la bouche de la loi).

Assim, não há que se confundir um Estado absolutista com um Estado legislativo, até porque esse último não deixa de ser um Estado de Direito, cuja preponderância e profusão de leis revela a tônica pela qual determinados fatores exigem a atuação incisiva do Poder Legislativo. Basta pensarmos na quantidade de textos normativos que os países na atualidade produzem para regular, estabilizar e conferir segurança jurídica aos mais diversos atos e negócios a serem praticados pelos seus cidadãos, bem como entre estes e o Estado.

Avive-se ainda ao fato de que nos países filiados à tradição da civil law (não só, visto que na tradição da common law há inúmeras legislações sobre os mais diversos temas a regular a sociedade – statutes) a criação da lei lato sensu é uma premissa básica, pois é a partir dela que o direito nasce, se desenvolve e regula as mais diversas situações internas e externas.

Portanto, Estado Legislativo quer nos parecer um termo um tanto quanto impróprio para designar a situação na qual existe uma acentuada atividade legislatória dispondo sobre temas dos mais diversos ramos do direito. Isso não impede que o Poder Judiciário venha a ser instado a se pronunciar num dado caso concreto, solucionando-o.

Em todo e qualquer Estado de Direito, notadamente os democráticos (=em que se tem por premissa a separação e o equilíbrio harmônico entre os poderes), ao Judiciário é dada a função de interpretar-aplicar o produto do parlamento e solucionar casos concretos, proferindo decisões com força de lei/norma alcançando os litigantes. Essas decisões formam julgados que, uma vez sendo reiterados pelos Tribunais, revelam um padrão decisório que poderá ser denominado de jurisprudência ou até mesmo, tomadas certas condições que podem variar de acordo com os sistemas ou tradições jurídicas, de precedentes[5].

O que o Prof. Daniel Mitidiero denomina, s.m.j. equivocamente de Estado Constitucional[6] não é uma forma de Estado em que os poderes constituídos sejam harmônicos e independentes entre si e cada uma das funções – executiva, legislativa e judiciária – estejam sendo desempenhadas por seus respectivos órgãos rigorosamente nos termos da Constituição (pouco importa a sua natureza ou classificação).

O Estado epitetado de Constitucional na obra é sinônimo de “Estado Jurisdicional” (=processo como instrumento para a realização do direito material), em que o centro do poder e o domínio do direito se dão por meio da atuação exclusiva das Cortes Supremas, cuja missão é produzir normas ininterpretáveis pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

Com efeito, toda a construção teórica da obra gira em torno de uma espécie de juristocracia concentrada nas Cortes de Cúpula para produzir o direito à margem das balizas estabelecidas pelo Poder Legislativo. 

Guindar ao Estado Constitucional o monopólio da interpretação do direito é desconsiderar por completo a arquitetura constitucional inaugurada em 1.988.

De qualquer modo, conquanto respeitável sob o ponto de vista acadêmico, parece-nos que a tese de uma jurisdição civil do Prof. Mitidiero não está em sintonia com a Constituição Federal, nem com o Código de Processo Civil e, muito menos, com a teoria do direito por nós defendida, conforme nos esforçaremos por demonstrar.

 

– IV –

A premissa de que norma difere de texto não possui qualquer relevância para a interpretação. Explico.

Lei, norma, regra ou princípio são compreensões que o intérprete faz a partir da linguagem (=daquilo que nos é dado como fio condutor à comunicação humana)[7] vertida em texto jurídico, não havendo, em abstrato, distinção ontológica entre essas designações abstratas. Tudo depende, portanto, do campo de significação[8] que se procura compreender.

Norma quer nos parecer designação de norma jurídica[9] a qual, por sua vez, pode apresentar significativos diferentes[10] entre os intérpretes no âmbito doutrinário, judicial, administrativo ou mesmo na linguagem do legislador que desde a promulgação do texto já contém normatividade orientadora de condutas em geral e para todos[11].

Norma jurídica, destarte, resulta da interpretação das fontes do direito. O intérprete encontra nessas uma proposição de linguagem (=enunciado normativo, dispositivo, disposição, proposição de norma (Normsatz) ou texto de norma (Normtext))[12]

O fato de um dispositivo, um parágrafo, uma alínea ou um inciso de um texto jurídico receber a designação de texto, regra, lei ou princípio, substancialmente não faz qualquer diferença; todos são normas jurídicas. É uma questão de vocabulário do intérprete. Da mesma forma, uma decisão judicial pode receber o designativo de norma, de lei entre as partes ou de regra jurídica para o caso concreto. Em todos os casos o que se verifica são orientações de condutas descritivas ou prescritivas que disciplinam comportamentos permissivos, proibitivos, declaratórios ou de regulação[13].

Portanto, os símbolos gráficos de uma linguagem vertida em textos jurídicos, exprimem os significados que deles se deduz através da interpretação. O conteúdo interpretado é o proeminente para o direito, de tal modo que o nome iuris (=norma, lei, regra ou princípio) não se afigura relevante ao ponto de qualificar um Estado como sendo “Legislativo” ou “Constitucional”, até porque, desconhecemos cogitar de um Estado Legislativo, um Estado Executivo ou um Estado Judiciário de Direito. A qualquer das funções (=poderes) de um Estado é franqueado interpretar o conjunto de sua legislação ou decisões administrativas ou judiciais vertidos em textos já dotados de alguma normatividade.

De mais a mais, qualquer Estado que possua uma Constituição escrita como documento político-jurídico contendo normas que o regem, enumeram, limitam, organizam e estruturam as funções do ente político, garantindo diretos fundamentais e disciplinando os principais temas afetos à sociedade regendo-os e programando-os, deve ser denominado de Estado Constitucional.

Não são ilações ou preferências interpretativas dos textos jurídicos que qualificam um Estado.

 

– V –

Segundo o Prof. Daniel Mitidiero, o surgimento do “seu” Estado Constitucional e, consequentemente, a necessidade de implementação da tese das Cortes Supremas deve-se também à passagem da técnica legislativa inicialmente desempenhada na forma de legislação redigida casuisticamente para uma legislação em que se misturam técnica casuística e técnica aberta.

Novamente, nada obstante o respeito ao posicionamento, vislumbram-se equívocos.

Da passagem dos Oitocentos para os Novecentos não era dada ao juiz a função típica de interpretar textos jurídicos (=normas). Sua função era de acoplar por meio de uma literalidade forte contida no produto legislativo ao suporte fático que lhe era apresentado para apreciação e julgamento.  O ato normativo (=lei) não admitia interpretações; ao órgão judiciário bastaria realizar uma espécie de cotejo entre a literalidade do texto e a hipótese fática, resultando em uma absoluta subsunção.

Claramente, o problema não residia em se saber se o texto era “aberto” e/ou “fechado”, repleto de conceitos jurídicos indeterminados e/ou cláusulas gerais.

Atualmente há alguma diferença na forma do texto legislado? O que mudou dos Oitocentos para os Dois mil?

A forma de produzir textos legais pouco importa. O que faz toda a diferença é que atualmente não é proibido interpretar. A necessidade de conformação da linguagem é inerente à função de interpretar. Conhece-se pela interpretação e interpreta-se para conhecer; aliás, nada mais natural e ínsito à linguagem, notadamente, a jurídica.

Não se desconhece que na medida em que a complexidade social avança diante da evolução ou (in)evolução humana em geral e tecnológica/burocrática, com o surgimento de novos e inéditos problemas desde as relações entre indivíduos e entre esses e o Estado, o legislador tende a produzir textos legais repletos de cláusulas abertas, conceitos jurídicos indeterminados, noções principiológicas, deixando para momento posterior a conformação/aplicação aos órgãos incumbidos de solucionar eventual demanda, sejam eles o Poder Executivo, o Poder Judiciário e até mesmo o próprio Poder Legislativo no âmbito de suas atribuições típicas e atípicas.

Nessa perspectiva, as sociedades atuais convivem, simultaneamente, com textos fechados e abertos à espera de interpretação.

Desta feita, o problema relativo à técnica legislativa não tem qualquer relação com a proibição de interpretar que vigorava no ancien régime com os Estados modernos e Constitucionais, no qual estamos todos condenados a interpretar. 

 

– VI –

Chegamos ao último ponto sustentado pelo Prof. Mitidiero, no qual pretende justificar a compreensão do significado da interpretação jurídica e, em última análise, à compreensão a respeito da natureza do Direito.

Segundo o jurista gaúcho, a função das Cortes Supremas está em “promover a unidade do Direito mediante a sua adequada interpretação. Como, de um lado, a interpretação jurídica pode dar lugar a uma multiplicidade de significados, e como, de outro, o Direito encontra-se sujeito à cultura, a unidade do Direito que a Corte Suprema visa a promover tem duas direções distintas: essa é tanto retrospectiva como prospectiva. Vale dizer: a Corte Suprema visa à promoção da unidade do Direito tanto para resolver uma questão jurídica de interpretação controvertida nos tribunais como para desenvolver o Direito diante das novas necessidades sociais, outorgando adequada solução para questões jurídicas novas[14]

A tese das Cortes Supremas evoca a função nomofiláquica ou nomofilácica para concluir que “interpretar adequadamente o Direito é a razão pela qual a corte existe, na medida em que sem a sua interpretação não há como viabilizar-se a unidade do Direito[15]. A interpretação ultimada pelas Cortes Supremas “é ponto de chegada, sendo a decisão recorrida em que se consubstancia o caso concreto apenas seu ponto de partida. Isso quer dizer que a Corte Suprema, como corte de interpretação, é uma verdadeira corte de precedentes, sendo o precedente judicial ao mesmo tempo encarnação da adequada interpretação do Direito e meio para obtenção da sua unidade[16].

Nessa perspectiva, o STF e o STJ se classificariam como genuínas Cortes Supremas na medida em que (i) são “responsáveis por dar a última palavra a respeito da interpretação da Constituição e da legislação infraconstitucional federal na ordem jurídica brasileira”; (ii) seus pronunciamentos teriam o propósito de reconstruir “em termos conceituais, estruturais, funcionais e eficaciais a partir de um quadro teórico capaz de fornecer soluções coerentes aos problemas ligados à interpretação judicial no Estado Constitucional” e, (iii) suas funções são pensadas como “cortes de interpretação e não como cortes de controle, como cortes de precedentes e não como cortes de jurisprudência, tendo autogoverno e sendo dotados de meios idôneos para consecução da tutela do direito em uma dimensão geral de forma isonômica e segura[17].

Para o jurista “não é possível promover a unidade do Direito sem uma ´common interpretation of the law` pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, dado que sem interpretação não há sentido normativo que deve ser observado dentro da ordem jurídica. A produção de sentidos normativos de forma racional – justificada, universalizável e coerente – constitui elemento essencial para promoção da tutela dos direitos no Estado Constitucional[18].

Com essas colocações, percebe-se que para o Prof. Mitidiero a unidade do Direito somente se dará “tanto em uma perspectiva retrospectiva como prospectiva” através da “vigência da regra do stare decisis, condicionada à existência de um efetivo sistema de precedentes vinculantes na nossa ordem jurídica[19].

Os precedentes vinculantes, assim, seriam “o instrumento a partir do qual o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça dependem para desempenhar suas altas funções[20].

Novamente com as devidas venias e com o maior respeito e reverência que o processualista Prof. Daniel Mitidiero faz jus, a tese se mostra inconsistente frente ao sistema normativo nacional. Vejamos.

Para o jurista, a unidade do Direitodeve ser promovida pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça por meio de precedentes”, observada “a regra do stare decisis (...) horizontal e verticalmente por todos os órgãos do Poder Judiciário[21]. Isso se extrai da seguinte passagem a obra:

Isso porque, sendo o Direito potencialmente indeterminado e paulatinamente precisado pela atuação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a recusa de autoridade à interpretação judicial empreendida por essas cortes significa recusa de vinculação à própria ordem jurídica. Portanto, do ponto de vista institucional, que é justamente aquele que deve ser levado em consideração pelo sistema encarregado de tutelar judicialmente os direitos, o Direito encontra sua expressão na interpretação que é dada à Constituição e à legislação pelas Cortes Supremas a partir de casos concretos. Essa é a razão pela qual os arts. 926 e 927, CPC, reconhecem o valor vinculante do precedente.

Isso quer dizer que a recusa à aplicação de precedente judicial constitui recusa de vinculação ao Direito. É preciso que isso seja dito claramente. Em uma perspectiva lógico-argumentativa – e, no fundo, em toda e qualquer perspectiva teórica que reconheça a diferença entre texto e norma – é imprescindível a vigência da regra do stare decisis como condição sine qua non do Estado Constitucional. (...). E essa relação peculiar é muito clara: se o Direito não é apenas revelado pela decisão judicial, se o texto legal não é portador de um único sentido intrínseco que é apenas declarado pelo Poder Judiciário, mas é de algum modo afirmado (“established”) pelas decisões judiciais, então a fidelidade

ao precedente é o meio pelo qual a ordem jurídica ganha coerência, torna-se segura e capaz de promover o respeito à igualdade de todos perante o Direito, predicados sem os quais nenhuma ordem jurídica pode ser reconhecida como legítima[22].

No entanto, parece-nos, novamente que a tese não se sustenta.

Primeiro porque a função nomofiláquica não é uma atribuição única das “Cortes de Vértices”, quer sejam elas Superiores, quer sejam Supremas, adotados os qualificativos considerados pelo Prof. Mitidiero

Não se nega que aos Tribunais Superiores e às Cortes Constitucionais (STF/STJ, p. ex.), desde priscas eras, cabe examinar os recursos excepcionais a eles dirigidos e promover, além da solução da causa envolvendo o litigio entre as partes, também a uniformização de seus julgados, interpretando a Constituição,  a legislação e formando suas jurisprudências e precedentes. Daí que surge a função de estabelecer paradigmas decisórios que podem servir de orientação para julgamentos de causas futuras. Ocorre, todavia, que referidas funções não são monopólio das Cortes de Vértices, ainda mais em se tratando de um Estado cuja forma federativa, como o brasileiro, conta com, ao menos na justiça civil, Tribunais Estaduais por unidade federativa e cinco Tribunais Regionais Federais.

Desse modo, entendemos imprescindível que a função nomofiláquica, dikelógica ou nomofilácia desempenhada pelos Tribunais de Cúpula estenda-se irremediavelmente aos demais tribunais quando julgam recursos interpostos pelas partes e terceiros legitimados[23].

Apesar da nomofilaquia de Piero Calamandrei, como muito bem exposta pelo Prof.  Mitidiero, não se pode crer atualmente que a resposta da instância superior ou suprema seja a tese correta. Pode até ser a última, mas jamais imutável.

Na releitura da função nomofiláquica acresça-se que a jurisprudência ou mesmo o precedente judicial como fontes do direito possuem uma produção contínua e não-monopolizada; passa-se, portanto, de uma perspectiva estática para uma diversidade dinâmica no tempo, sofrendo influência também provinda das instâncias inferiores.

A formação do precedente desenvolve-se a partir da atuação do intérprete sobre a norma legislada (=lei lato sensu); da mesma forma que a compatibilidade ou incompatibilidade desse precedente com um novo caso/causa não pode descurar da interpretação (i) da lei ou legislação que originou o julgado vinculante paradigma e, (ii) dos próprios fundamentos que foram levados em consideração na sua formação (razões determinantes). Somente dessa análise é que se pode dizer que ao caso/causa em exame o precedente indicado como solução se mostra compatível.

Assim, não se nega que o precedente possui parcela de criatividade, mas isso decorre do espaço de interpretação-cognição estabelecido no próprio texto normativo, seja ele vertido em conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, seja em vaguezas, a partir do qual nasce para o intérprete-aplicador um espaço de concretização volitiva intransponível e que lhe serve de autocontenção para erradicar posturas solipsistas desgarradas do Direito posto[24]. Reconhece-se, por evidente, a natureza criativa da jurisdição, mas sem descurar da necessidade democrática de seu balizamento e aderência ao texto normativo, uma vez que não se pode negar que a liberdade de criação deferida pelo sistema jurídico aos intérpretes-aplicadores é significativamente menor do que aquela reservada ao Poder Legislativo[25].

Com efeito, máxime nos Estados Democráticos a subversão dos limites impostos à criatividade da jurisdicional configura gravíssima agressão à separação de Poderes[26].

Portanto, é no próprio texto da lei, mas açambarcado pelas margens (espaços) que a interpretação encontra as balizas[27] a partir das quais fora delas não é possível qualquer atividade de vontade criativa. Não se concebe a ideia de que um precedente inove na ordem jurídica desgarrado de qualquer parâmetro legal que lhe sirva de ponto de partida. Seu DNA reside na Constituição e na legislação que àquele deve conformar; sua tradição é romano-germânica (civil law) por mais que possa receber influxos de outras tradições; não há decisão, precedente ou jurisprudência formados a partir de conjecturas morais ou ética que não esteja vertido em texto normativo[28], sob pena de reconhecermos o que Pontes de Miranda denominou de “sentimentalismo[29] ju(ris)dici(on)al.

A isso denominamos de rule of law[30], cujos componentes podem ser discriminados da seguinte forma: (i) autoridades políticas e cidadãos devem agir a partir e nos estritos limites do direito; (ii) existência de um Estado de Direito, exigindo como condição de possibilidades para tanto (ii.1) não retroatividade das leis em regra (normas prospectivas), com exceções racionalmente justificadas; (ii.2) publicidade; (ii.3) clareza e precisão, por meio de linguagem ao alcance de todos, sem exagero de termos técnicos ou rebuscada, permitindo acesso e compreensão; (ii.4) relativa estabilidade, pois não se concebem leis que não possam sobreviver a um tempo razoável; (ii.5) generalidade e abstratividade, pois caso contrário serio autodestrutivo o Estado de Direito baseado em normas jurídicas direcionadas a tais e quais indivíduos ou grupos específicos e, finalmente, (ii.6) independência do Poder Judiciário, na medida em que juízes e Tribunais devem aplicar as normas jurídicas independentemente de interferências políticas externas; aspectos políticos que não estejam expressos no programa de normas são irrelevantes para a interpretação e aplicação do direito. Portanto, editada e promulgada uma lei, seu conteúdo granjeia autonomia em relação aos debates políticos subjacentes que a originaram, ou seja, o político tornou-se jurídico e com base nesse último que se dará única e exclusivamente a análise pelo Poder Judiciário[31].

A tese do Prof. Daniel Mitidiero mostra-se contraditória, pois se de um lado sustenta que a unidade do Direito deve ser promovida pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça por meio de precedentes a vincular todos órgãos do Poder Judiciário, como expresso linhas acima, lá pelas tantas, adverte, caindo em inescusável aparente incoerência:

Isso não quer dizer, contudo, que os juízes de primeiro grau, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais não possam manifestar nenhuma discordância com determinado precedente. É evidente que podem – inclusive por força constitucional, já que é livre a manifestação de pensamento em um Estado Democrático (arts. 1.º, caput, e 5.º, IV, da CF/1988). O que juízes e desembargadores que compõem as Cortes de Justiça não podem é usar suas razões dissidentes para julgar o caso concreto. E isso porque a violação do precedente é danosa para as partes, que aí passam a ter o ônus de interpor recurso para as Cortes Supremas para poder ver o caso apreciado de acordo com o Direito, com manifesta violação da igualdade, da segurança jurídica e da duração razoável do processo, e é danosa para o próprio Poder Judiciário, que passa a ter o dever de atuar apenas para reafirmar aquilo que já se encontra devidamente solucionado com o precedente, com manifesto prejuízo à eficiência administrativa e à racionalização da atividade judiciária. (...). Inexiste qualquer razão jurídica que autorize agressões de tamanha envergadura ao Estado Constitucional[32].

Isso tem uma explicação e uma consequência lógica que põem em xeque a tese do Prof. Mitidiero frente ao ordenamento brasileiro, tornando-a um niilismo intelectual.

A explicação reside no fato de que “compreensão não cognitivista e lógico-argumentativa do Direito[33] – como expressa o Prof. Mitidiero – não é compatível com ordem jurídica posta no direito processual vigente. As Cortes Supremas não detêm o monopólio de estabelecer a priori a “natureza do Direito”. No Brasil, o legislador confere ao magistrado singular ou tribunal o poder de, eventualmente, decidir contra o precedente elaborado pelo STF e STJ. Nesse caso, as razões de decidir (=não autoritativas), misturam-se na dimensão do jogo argumentativo e do convencimento racional dos magistrados. É preciso, para discordar ou dissentir, oferecer razões jurídicas em sentido diverso. Uma carga argumentativa qualificada, exatamente como dispõe o art. 489, § 1º, incisos V e VI c.c. art. 927, §1º do CPC.

Portanto, a mera evocação performática[34] de um suposto stare decisis – que antes de tudo é uma doutrina judicial típica dos países de tradição anglo-saxônica e “não surge de um dia pro outro ou por determinação legislativa[35] – aliada a uma suposta busca frenética de que exclusivamente ao STF e ao STJ cabe guiar a ordem jurídica nacional, ou como prefere o Prof. Mitidiero – a compreensão a respeito da natureza do Direito­ ­– não sobrevive ao aparato legislativo pátrio.

A consequência lógica, afinal, como o próprio jurista reconhece é a de que os Tribunais locais (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, no âmbito da Justiça Civil) também elaboram precedentes e proferem julgamentos reiterados sobre diversos temas procedimentais e de mérito (jurisprudência e Súmulas) e os exemplos mais singelos estão contidos na dicção do art. 926 (Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente), do art. 927 (Os juízes e os tribunais observarão), do art. 947 (É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos) e do art. 976 (É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente). Lembrando, por oportuno, que o art. 927, §5º não deixa dúvida de que formar precedentes e outros provimentos não é uma exclusividade das Cortes Supremas, admitindo expressamente que “os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores”.

De forma semelhante, o art. 1.030, § 2º do CPC disciplina que o Presidente ou Vice-Presidente dos Tribunais de Justiça/Tribunais Regionais Federais recebendo os recursos excepcionais poderá negar seguimento (i) a recurso extraordinário (RE) que discuta questão constitucional à qual o STF não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a RE interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do STF exarado no regime de repercussão geral, (ii) a RE ou a recurso especial (REsp) interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do STF ou do STJ, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos e, ainda, (iii) determinar o sobrestamento do recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo STF ou pelo STJ, conforme se trate de matéria constitucional ou infraconstitucional, cabendo contra todas essas decisões a interposição de recurso de agravo (CPC, art. 1.021) dirigido para o respectivo órgão colegiado, demonstrando que a aplicação dos precedentes formalizados pelas Cortes Supremas não estão refratários ou insubmissos à revisão pelos demais Tribunais da federação.

Por fim, o art. 988, I e II, do CPC disciplina a Reclamação como genuíno meio impugnativo (=ação) disponível às partes para que possam exigir por qualquer dos Tribunais brasileiros a preservação de suas respectivas competências jurisdicionais, bem como a garantia da autoridade de suas decisões.

Do contrário, seria mais simples à luz das ideais realistas contidas na tese ora criticada, substituirmos a Constituição e toda a malha legislativa infraconstitucional por precedentes vinculantes a priori provindos das Cortes Supremas.

Todos os problemas jurídico-interpretativos estariam resolvidos de forma ampla e perene. Bastaria identificar a hipótese fático-jurídica e acoplá-la ao precedente cuja solução já fora fixada.

Para tanto, no âmbito da jurisdição civil, nem precisaríamos de Tribunais locais e regionais e, muitos menos, milhares de juízes de primeiro grau de jurisdição. Seria apenas necessário um Tribunal de Justiça Nacional responsável pelo silogismo no âmbito dos Estados da federação (justiça comum) e um Tribunal Regional Federal Único para o veredicto no âmbito das atuais cinco regiões do território nacional.

Com o tempo, nem isso mais seria necessário, pois as soluções às escaramuças judiciais poderiam ser dadas por meio de “despachantes judiciais”, como se fora uma espécie de “questão meramente burocrática” a ser solucionada em forma de carimbos ou simplórios logaritmos:  “no caso em questão, aplica-se o RE-RG ou RE/REsp repetitivo número tal, público em tanto do tanto com trânsito em julgado na data x ou y”.

Da mesma forma a demanda já se instauraria nesse “TJN” ou no “TRFU” e ali receberia qualquer solução via acórdão, por maioria ou à unanimidade de votos, e já seguiria ex officio para o STF ou STJ. E a história se repetiria até que não mais existisse sobre o território nacional qualquer outra questão a receber solução.

Quanto ao distinguish e o overruling não seriam necessários nem úteis por motivos simples; não haveria o que superar ou distinguir, notadamente, porque as Cortes Supremas possuiriam “o Direito” em um acervo muito bem servido de teses devidamente catalogadas em forma de ementas robustas e completas de simples busca por meio de mecanismos de inteligência artificial para o serviço de junção “caso-tese”. 

 

– VII –

A tese desenvolvida na obra Cortes Superiores e Cortes Supremas do Prof. Daniel Mitidiero é um exemplar do que chamamos de escola neoprocessualista constituída a reboque do movimento a que se denominou se autoproclamar neoconstitucionalista[36].

Ao fim e ao cabo, cuida-se, tecnicamente, do instrumentalismo processual[37], ou seja, o vinho velho servido em taças novas[38].

O trabalho muito bem desenvolvido e escrito pelo Prof. Mitidiero eleva, a pretexto de uma interpretação constitucional cujo objetivo é salvaguarda irrestrita das garantias da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana, a uma deformação grave do sistema normativo processual. A ductibilidade com que define e desenvolve as missões institucionais das Cortes Supremas, como verdadeiras cúpulas plenipotenciárias que usurpam o processo à uma função subserviente à jurisdicionalidade (=poder jurisdicional de cunho eminentemente gerencialista-eficienticista-criativo-extra legem) que passa a organizar e definir ao arrepio de qualquer marco legislativo a interpretação do que “é” e ”será” o conceito de Direito e tudo o mais que o circunda, proclamando-o através, única e exclusivamente, dos seus precedentes vinculantes elaborados verticalmente, torna essas Cortes aquilo que Eduardo José da Fonseca Costa cunhou de locusoligo-decisional[39].

Em outras palavras: o modelo de processo sugerido pelo Prof. Mitidiero é “assimilado a uma proposta hermenêutica dogmática encaminhada por um esquema funcional (instrumental), cuja finalidade é propiciar a atuação de uma jurisdição compreendida como imanência do decisor. A novidade está em que as metas de pacificação remetem ao acertamento e à integração de normas constitucionais, especialmente pelas construções jurisprudenciais dos tribunais superiores. Essa configuração abre ensejo para que a leitura do processo constitucional se faça por influxos axiológicos e teleológicos supostamente oriundos da Constituição[40].

Com efeito, na tese defendida pelo jurista gaúcho, o processo é meio adequado pelo qual as Cortes Supremas apropriam-no para “subsidiar a atuação interpretativa e criativa dos juízes, por meio de poderes que ora lhes autorizam a desvelar ´elementos racionais imanentes no ordenamento`, ora lhe relegam ´toda a valoração` do próprio ordenamento[41].

Toda a sofisticação da tese ora criticada esbarra, para além do jurisdicionalismo acima denunciado, em duas premissas certas e intransponíveis:

(i) o direito é vazado em linguagem e, portanto, possui um grau relevante de indeterminabilidade em qualquer país, cultura e sistema jurídico; é inerente à própria ontologia. Ora, todos os textos normativos (lei e/ou precedentes) são trasladados em linguagem e como tais devem ser interpretados, num movimento de reconstrução e jamais de mera declaração por parte do intérprete-aplicador. Não há que se falar, como pretende o Prof. Mitidiero, em um tipo de interpretação própria e exclusiva para a lei (lato sensu) – não cognitivista e lógico-argumentativa (=reconstrutiva do sentido da norma) – e uma outra forma de interpretar para os precedentes[42]não cognitivista e lógico-argumentativa (=meramente declaratório do sentido pré-determinado conferido pelas Cortes Supremas). De um modo direto: toda a compreensão realizada pelos intérpretes é, irremediavelmente, reconstrutiva de sentido, pois textos normativos de qualquer espécie exigem reedificação hermenêutica no processo de atribuição de sentido, não havendo qualquer razão técnico-jurídica para a secessão interpretativa defendida na obra Cortes Superiores e Cortes Supremas e;

(ii) não serão o texto normativo e muito menos o precedente obrigatório oriundo da Cortes Supremas (e de nenhum Tribunal) que conterão em suas linhas todas as apreensões de sentidos e possibilidades imagináveis aptas a solucionar demandas ou questões concretas, estabelecendo teses abstratas e generalistas (=soluções retrospectiva e prospectiva).

Ambos – (i) e (ii) – são infusos naturalmente em linguagem – com todos os problemas e consequências que daí advém a reclamarem interpretação – e como tal não contém fórmulas matemáticas ou apriorísticas[43] capazes de apreender em seus limites a facticidade própria da dinâmica das relações sociais, fornecendo respostas prontas ao melhor estilo self service.

O “Estado Constitucional” forjado no precedentalismo de cúpula, utiliza-se da garantia contrajurisdicional do processo subvertendo-a em um jurisdicionalismo procedimentalista[44] que asfixia a própria base legislativa em que fora montado o CPC, deixando ao arbítrio das Cortes Supremas como última, única e definitiva a função antidemocrática de, a um só tempo, interpretar e promulgar o Direito, inaugurando o que denominamos de indevido processo jurisdicional.

Em remate, o Poder Judiciário, visto perante os demais poderes do Estado, ou seja, em uma perspectiva exógena, é instituição de garantia, cumprindo-lhe o dever de zelar pela legalidade, refreando abusos, excessos, desvios e arbítrios, eventualmente praticados pelos demais Poderes em uma República Democrática. Já na atividade típica, ou seja, na prestação da tutela jurisdicional ao indivíduo, o Poder Judiciário é instituição de poder, domínio esse que, deve ser contido nos exatos termos da legalidade, através do processo como instituição de garantia (=ciência processual ramo do tronco Direito Constitucional, centrado nas garantias contrajurisdicionais).

Portanto, uma garantia (=processo) não pode servir de álibi para a consecução daquilo que pretende limitar (=jurisdição) e, salvo melhor juízo, a tese do Prof. Mitidiero é, por excelência, um capítulo à parte da ciência jurisdicional animada, sobretudo, pela falsa dicotomia interpretativa lançada sobre os textos normativos, privilegiando e maximizando o alcance dos precedentes vinculantes a priori emanados pelas Cortes Supremas eficienticistas como sendo as únicas a proclamarem o sentido e a unidade do Direito.

 

– VIII –

Se tivéssemos o dom da síntese concluiríamos com a seguinte indagação:

– Qual a diferença entre o absolutismo oitocentista e o “Estado Constitucional” perfilhado na teseCortes Superiores e Cortes Supremas” desenvolvida pelo Prof. Daniel Mitidiero?

E a resposta seria:

– Nenhuma!

Explicamos:

– Se no absolutismo o papel reservado aos juízes ao exercerem seu ofícios nada mais significava do que pronunciar a letra da lei fruto da vontade do soberano (juízes “boca da lei”), no “Estado Constitucional” ao desempenharem suas funções institucionais, nada mais lhes cumpriria senão declarar o precedente emanado das Cortes Supremas (juízes “boca dos precedentes”).

Montesquieu tinha razão: tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser[45].

 

Notas e Referências

[1] Partindo das lições de Piero Calamandrei, na qual o jurista italiano, segundo Mitidiero, reflete sobre “a passagem da doutrina italiana do método exegético para o método histórico-dogmático e sobre a nova sistemática do direito processual civil”, o processo passaria a ser “um ambiente de proeminência do interesse público e da autoridade do Estado”. O processo civil, referindo-se ao Prof. Michele Taruffo, “converte-se integralmente em um instrumento de orientação publicista e ´statalistica`” (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3ª Ed. São Paulo, RT, 2017, p. 30-31).

[2] Ibidem, p. 21-22.

 

[3] Ibidem, p. 39-40.

[4] Para uma leitura sobre as origens e as funções do Estado absolutista, consultar: HOBBES, Thomas. “Leviatã”. São Paulo: Edipro, 2015.

[5] Para uma visão crítica a respeito dos precedentes no Brasil, consultar: ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a jurisprudência vinculante no CPC e no Novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015.

[6] A correta acepção de Estado Constitucional é dada por André Rufino do Vale: “´tal Constituição, tal Estado`, ´tanto o Estado quanto a Constituição´, ´O Estado segundo a Constituição (...) são suficientes para vislumbrar o modelo de Estado que comporta um ordenamento jurídico constitucionalizado, devido à presença de uma ´Constituição invasora`. A um modelo axiológico de Constituição como norma corresponde um modelo de Estado Constitucional de Direito, ou simplesmente Estado constitucional”. “(...) a expressão ´Estado constitucional` vem sendo utilizada por autores (...) para representar aqueles Estados que, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, adotaram constituições rígidas, caracterizadas pela previsão de um catálogo de direitos fundamentais e de mecanismos de controle de constitucionalidade. A marca distintiva desses Estados é a constitucionalização do ordenamento jurídico através das normas de direitos fundamentais, que traduzem para a linguagem normativa as opções éticas e políticas da sociedade” (Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 24-25).

[7] Pontes de Miranda ao se referir à linguagem já expressava: “É pela linguagem que nós, homens, nos comunicamos. Sem os sinais (...) não poderíamos, fora do cérebro, manter o “dado”, isto é, conserva-lo no tempo e transmiti-lo a outros indivíduos” (Sistema de ciência positiva de direito. Campinas: Bookseller, 2005, p. 101).

[8] “Por ‘campo de significação` entende-se a ocorrência, própria da linguagem cotidiana, de ser possível obter sentidos distintos de uma mesma palavra. De fato, toda palavra possui específico campo de significação, ora mais, ora menos abrangente. Sua maior ou menor abrangência depende de seu uso. Para que se possa identificar como determinada palavra está sendo utilizada, é de suma importância observar o contexto de sua ocorrência. Porque se palavras em contextos sociais distintos podem conduzir a sentidos também distintos, apenas com a aproximação de seu uso concreto torna-se mais palpável o seu entendimento. Diga-se com brevidade: por ‘significado` designam-se as potenciais compreensões que se pode obter quando uma palavra é considerada abstratamente, ou o conjunto de sentidos plausíveis de uma palavra; já ´sentido` é o uso concreto de um significado. Ou seja, entende-se por ‘sentido` o significado adicionado do contexto do uso da palavra” (SGARBI. Adrian. Introdução à teoria do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 30-31).

[9] “Norma jurídica é uma proposição de linguagem incluída nas fontes do direito válidas em determinado espaço (texto de norma); seu significado é fixado pela interpretação jurídica; a norma jurídica regulamenta o comportamento social de forma imperativa, estabelecendo proibições, obrigações e permissões. Na maioria dos casos, o descumprimento da norma está associado a sanções negativas” (DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 5ª Ed. São Paulo: RT, 2013, p. 99).

[10] Precisas as considerações de Bruno Torrano: “(...) não me parece útil ou esclarecedor denominar uma ´lei` a ser interpretada de ´texto`, ou, com algum eufemismo, ´texto normativo`, enquanto se denomina ´norma` apenas aquilo que é produto da interpretação desse texto” (destaque nosso) (Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 120).

[11] Nesse sentido: “Se não existe norma abstrata antes da interpretação realizada no ´processo individual de decisão jurídica` (...), o que constrange juridicamente o funcionário do sistema (magistrado, auditor fiscal, promotor de justiça, defensor público, policial etc.) e, mais amplamente, o cidadão em um primeiro momento? (...). Valorizar a acepção de que aquilo que vem a ser interpretado pelo aplicador do direito já é, em um primeiro momento, um ato de fala coletivo positivado após processos decisórios institucionais equivale a concluir que aquilo que vem a ser interpretado em dado contexto detém objetividade o suficiente para comunicar linguística e, ao mesmo tempo, juridicamente algum critério de avaliação da conduta dos cidadãos e do próprio magistrado, independentemente de pronunciamentos oficiais futuros acerca do significado daquela norma jurídica no caso concreto. Quando o Legislativo promulga uma lei (´texto`), já há norma e potencial orientação de conduta; falta apenas o sentido da norma, que pode ser atribuído tanto dentro dos jogos de linguagem do cidadão (povo, mídia, professores de direito), sem intermédio da autoridade, quanto dentro dos jogos e linguagem da autoridade judicial, no momento em que examina um caso concreto. A distinção entre ´texto` e ´norma` é uma termologia que se presta apenas a confundir e obscurecer” (TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 122).

[12] DIMOULIS, Op. cit., p. 98.

[13] Dessa forma, o termo ´norma` possui dois significados na linguagem comum: 1. Norma descritiva. Indica aquilo que acontece em decorrência de uma lei natural ou social. Temos aqui a constatação de uma situação, de um ´ser` e enunciamos a sua ´lei`, indicando as regularidades constatadas nos fenômenos naturais ou sociais. (...). 2. Norma imperativa (ou prescritiva). Indica aquilo que deve acontece em decorrência de uma vontade ou ordem superior. A norma estabelece o padrão de referências moral, jurídica, técnica, econômica etc. As situações reais são medidas e avaliadas de acordo com a norma, que estabelece um dever ser” (DIMITRI, Op. cit., p. 96-97).

 

[14] MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 79.

[15] Ibidem, p. 80.

[16] Ibidem, p. 80.

[17] Ibidem, p. 93.

[18] Ibidem, p. 102.

[19] Ibidem, p. 112.

[20] Ibidem, p. 112.

[21] Ibidem, p. 120.

[22] Ibidem, p. 119.

[23] Com o mesmo entendimento: MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento, repercussão geral da questão constitucional, relevância da questão federal. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2017, p. 28-29.

[24] Já sustentamos que: “Noções como completude do ordenamento, racionalidade do legislador e espírito da lei são formas de mascarar a formação do direito. A obrigação indeclinável de decidir imposta pela legislação ao sistema jurídico – umas mais objetivas, outras longe disso – legitima e possibilita que o decidir é um dever de “escolher”, “optar”, “reconhecer”, entre alternativas possíveis e adequadas ao “edifício jurídico” positivado”. (ROSSI, Júlio Cesar. O Garantismo Estrutural. In: Processo e Liberdade. Estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Orgs. PEGINI, Adriana Regina Barcellos; FERREIRA, Daniel Brantes; SOUSA, Diego Crevelin; MALAFAIA, Evie Nogueira e.; RAMOS, Gláuco Gumerato; DELFINO, Lúcio. PEREIRA, Mateus Costa e FILHO, Roberto P. Campos Gouveia. Londrina: Thoth, 2019, passim). Defende no mesmo sentido, Bruno Torrano: “A interpretação dessa norma geral e abstrata conduz a normas individuais que podem eventualmente, criar novo direito, embora essa criação nunca seja ´pura`, isto é, sem restrições estritamente jurídicas já presentes no sistema normativo. Sendo assim, a distinção, a rigor, é entre duas categorias de normas: uma geral e abstrata e carente de interpretação pelos funcionários do sistema – mas que já comunica algo a todos os cidadãos e a esses próprios funcionários; e outra individualizada, já interpretada pelos funcionários. A orientação de conduta por parte do direito seria impossível caso fosse verdadeira a proposição de que a norma jurídica só é genuinamente criada durante o processo interpretativo que ocorre no momento em que o texto legal é confrontado com algum caso concreto judicial” (TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 121).

[25] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo, Saraiva. 2010, p. 119.

[26] RAMOS, Op. cit., 120.

[27] Na dicção de Elival da Silva Ramos: “Se a interpretação-aplicação de natureza jurídica consiste na construção de normas reguladoras de conduta a partir de textos prescritivos, que vinculam a atividade do intérprete-aplicador, é absolutamente inaceitável que a norma por este concretizada não revele aderência à textualidade do dispositivo aplicado. O texto normativo é, pois, ao mesmo tempo, o ponto de partida do processo hermenêutico e o mais expressivo balizador da adequação de seus resultados” (RAMOS, Op. cit., p 168).

[28] Refiro-me aqui ao denominado ativismo judicial ou protagonismo judicial – sem qualquer pretensão de sequer iniciar a discussão sobre o fenômeno constante em diversos países e variando de intensidade conforme as tradições romano-germânica e anglo-saxônica – traduz-se na ideia de uma “disfunção no exercício da função jurisdicional, em detrimento, notadamente, da função legislativa” (RAMOS, Op. cit., p. 107).

[29]O que o juiz reputa por bom ou mau, ainda que livre do formalismo da interpretação da vontade do legislador ou da lei, não pode oferecer nenhuma segurança. Tal critério põe acima de tudo o sentimento subjetivo, que não é menos arbitrário. E não só: teria de atender aos casos de per si, o que requereria justiça onisciente e divina, que será, para o homem, ideal inatingível e inadmissível. Basta atender a que, quanto mais apurado for o sentimento jurídico, menos precisará de fundamentos materiais para a decisão, o que evidencia certo antagonismo entre estrito sistema de fontes formais e a jurisprudência sentimental, e, ainda mais, a possibilidade de erro, sem que seja fácil preveni-lo ou atenua-lo. O que se denomina de tato jurídico não é mais do que uma forma do sentimento jurídico e não oferece nenhuma segurança objetiva, - é virtude ou aptidão do indivíduo, que pode levar a muitos enganos, devido à falibilidade da verificação individual. Há certa sutileza no dado sentimental, que seduz e deleita, mas pode não preencher a função que lhe compete” (Op. cit., p. 160).

[30] Entre nós, Bruno Torrano, assim o define: “conceito necessário à compreensão integral das pretensões políticas de um ordenamento democrático, estrutura-se na ideia de que a limitação do governo por normas jurídicas é um valor político. Segundo esse valor, as pessoas, sejam ou não autoridades, devem ser governadas pelo e agir conforme o direito, mesmo quando suas opiniões pessoais conflitam com aquilo que é exigido pelo direito” (Op. cit., p. 329).

[31] A propósito, para uma compreensão ampla dos elementos que compõe o Estado de Direito, consultar: TORRANO, Op. cit., p. 330-331.

[32] Ibidem, p. 125-126.

[33] Também conhecida como ceticismo, antiformalismo interpretativo, ou concepção estipulativa da interpretação. Consultar: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Teoria da validade e da interpretação do direito. 2ª Ed. Livraria do Advogado. 2018, p. 164-165 e VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 18-20.

[34] Sobre o significado, uso e alcance dos conceitos performáticos de John L Austin (How to do things with words: The William James lectures delivered at Harvard University in 1955. 2ª Ed. J.O. Urmson and Marina Sbisà; Oxford: Clarendon Press, 1975). Consular: SCAVUZZI, Maira Bianca. O deficit democrático das decisões judiciais fundadas no critério da justiça: a justeza como subterfúgio performático para o ativismo. Dissertação. Mestrado em Direito. PUC-SP/2017.

[35] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 574.

[36] Com Otavio Luiz Rodrigues Jr. comungo da ideia de que não há “propriamente uma ´escola´ do Neoconstitucionalismo, mas um conjunto de autores que, com diferentes fundamentos, alinhar-se-iam ao entendimento de que, no segundo pós-guerra, haveria surgido um ´novo constitucionalismo`, o qual teria por norte os princípios constitucionais (especialmente a dignidade da pessoa humana), a eficácia dos direitos fundamentais e a criação de poderosos tribunais constitucionais, que transformaram a clássica tripartição de poderes.(...). Uma das marcas mais nítidas do neoconstitucionalismo é o número exponencial de profetas e um número ainda maior de credos. Essa plasticidade conceitual em torno do que seja neoconstitucionalismo tem um duplo efeito: todos se sentem por ele representados, ainda que parcialmente, e não há coo se estabelecer acordos semânticos em torno do que se está a discutir” (Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2019, p. 161).

[37] Essa teoria compreende o estudo da ciência processual a partir da jurisdição, quando em verdade, é a jurisdição deve ser compreendida a partir do processo. Nesse sentido: LEAL, André Cordeiro. Instrumentalismo no processo em crise. Belo Horizonte: mandamentos, 2008, p. 121).

[38] Tomo de empréstimo a metáfora narrada por Otávio Luiz Rodrigues Jr. que, inspirado na obra de Reinhard Zimmermann (The New German Law of Obligations Historical anda Comparative Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1-38, item 10), nos relata que “quando ele comenta sobre a interpretação do BGB pelos tribunais da Alemanha no século XX, que teria gerado uma ´revolução do direito pretoriano`, com um número significativo de ´descobertas jurídicas` a partir desse olhar lançado pela jurisprudência sobe o texto legal, segundo alguns comparatistas por ele citados. A ironia de Zimmermann que gerou o trocadilho, está em dizer que ´frequentemente nós também encontramos vinho velho sendo servido em novas taças` (...). Com isso, ele quer dizer que parte significativa dessa revolução produzida pelos tribunais na verdade era uma reelaboração de antigas doutrinas do século XVIII e XIX, remoçadas pela mera circunstância de virem em novas ´taças`, embora não fosse dado o crédito a seus verdadeiros criadores” (RODRIGUES JR., Op. cit., p. 147).

[39] Os tribunais superiores são órgãos transcendentais? Conjur. São Paulo, 03 dez. 2016. Disponível em https://bit.ly/3bamo3b.

[40] GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos fundamentos da processualidade democrática. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2014, p. 177.

[41] GRESTA, Op. cit., p. 181.

[42] No mesmo sentido adverte Lenio Luiz Streck: Se a linguagem “é indeterminada e por isso os textos jurídicos são indeterminados, por qual razão os precedentes seriam formados com outra coisa? Com sinais? Ora, os precedentes também são formados com linguagem. Assim, a indeterminação também recairá sobre eles. Logo, os precedentes não são interpretáveis assim como as leis, porque, afinal, leis e precedentes (ou teses) também não são textos?” (Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. Salvador: Juspodivum, 2018, p. 103).

[43] H.L.A. Hart tinha razão: “Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades. Poderíamos criar normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma. Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência ´mecânica`” (O conceito de direito. Trad. Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 167).

[44] A respeito das características das ciências processual, procedimental e jurisdicional, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Empório do Direito. São Paulo, 22 nov. 2017. Disponível em https://bit.ly/3etajYX.

[45] Choix de textes et introduction‎. Louis-Michaud, 1910, p. 32.

 

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