#54 - JUIZ DE GARANTIAS E VIÉS DE CONFIRMAÇÃO

23/03/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

  

«You never get a second chance to make a first impression».

À querida amiga Luciana Benassi 

I

Além de fundamentos jurídico-normativos, o chamado «juiz de garantias» ostenta fundamentos científico-psicológicos. É quase geral, porém, a ignorância sobre eles. Isso tem provocado discussões truculentas e, por isso, sem proveito intelectual. O novo instituto foi introduzido no sistema procedimental penal brasileiro pela Lei 13.964, de 24/12/2019 (a mal apelidada «Lei Anticrime»). Figura similar vige em países como ARGENTINA [Código Procesal Penal Federal, art. 56 - «juez con funciones de garantías»; Código Procesal Penal de la Provincia de Buenos Aires, art. 23º - «juez de garantías»], CHILE [Código Procesal Penal, art. 9º et alii - «juez de garantía»], COLÔMBIA [Constitución Política de Colombia, art. 250; Código de Procedimiento Penal, art. 39 - «juez de control de garantías»], MÉXICO [Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, art. 16, décimo terceiro parágrafo - «juez de control»], PANAMÁ [Código Procesal Penal - art. 44 - «juez de garantías»], PERU [Código Procesal Penal, art. 323 - «juez de la investigación preparatoria»] e PARAGUAI [Código Procesal Penal - art. 282 - «juez penal de garantías»]. Sob o ponto de vista estritamente científico-psicológico, o juiz de garantias nada mais é do que uma estratégia legal que impede que os vieses cognitivos contraídos pelo juiz no curso das investigações criminais sejam levados ao processo judicial. Nesse sentido, é uma estratégia que reforça a imparcialidade do juiz, a acusatoriedade do modelo, a garanticidade do processo e a republicanidade da jurisdição. Para melhor entender essa técnica, é preciso entender, portanto, o que são os vieses cognitivos e como eles podem ser reduzidos ou limitados. No meu livro Levando a imparcialidade a sério (Salvador: Juspodivm, 2018), discorri exaustivamente sobre o tema. No curto espaço deste pequeno artigo, porém, restringir-me-ei a algumas considerações introdutórias.

Para tanto, precisarei explicar o que são as heurísticas. Como sabido, elas são procedimentos de simplificação mental. A mente humana se utiliza deles para processar informações complexas vinda do exterior e possibilitar a tomada de decisões de modo eficiente. São juízos não fundamentados, baseados em conhecimento parcial, que às vezes são corretos e às vezes são errados, sem haver uma segurança lógica absoluta. Isso ocorre porque o cérebro humano funciona como um limitado processador de informações, que não pode gerir com sucesso todos os estímulos que cruzam o seu limiar de percepção. A complexidade de múltiplas tarefas excede a capacidade do cérebro de processar informações e, como resultado, os decisores são impelidos a cometerem erros. Enfim, na maioria do tempo as pessoas «negociam» com o meio ambiente. Todavia, a complexidade processada pela mente humana aumenta ao tomar-se uma decisão quando se está diante de uma dúvida, um conflito ou uma incerteza. Um tipo bastante conhecido de heurística são os chamados vieses cognitivos[cognitive biases], estudados pioneiramente por DANIEL KAHNEMAN e AMOS TVERSKY. Trata-se de formas disfuncionais de processar a informação, que afetam o raciocínio lógico- abstrato e acontecem de maneira previsível em circunstâncias particulares em todos os países e culturas. Não se trata de desvirtuamentos provocados por emoções (medo, afeição, ódio etc.), mas de erros sistemáticos na opinião de pessoas normais, que ocorrem no projeto do mecanismo cognitivo. Logo, não se confunde inteligência com racionalidade: pessoas de inteligência elevada não são imunes a vieses ou predisposições automáticas. Exemplos de vieses cognitivos: cheerleader effect [= tendência de achar uma pessoa mais atraente em grupo do que isolada]; conjuction fallacy [= tendência de assumir que as condições específicas são mais prováveis do que as condições gerais]; distinction bias [= tendência de ver duas opções como mais diferentes ao avaliá-las simultaneamente do que ao avaliá-las separadamente]; subaddivity effect [= tendência de julgar menor a probabilidade do todo do que a probabilidade das partes]; optimism bias [= tendência que leva alguém a crer que é menos provável que tenha um evento negativo]. No plano jurídico-processual, valem menção os seguintes vieses cognitivos: i) representativeness bias [= tendência a concluir, em juízos categóricos, que a amostra analisada representa a categoria inteira - e.g., o juiz que haja colhido a prova oral tende a se contaminar por gestos, atitudes, perturbações e surpresas, achando, por exemplo, que no interrogatório o réu nervoso é culpado e o réu calmo inocente]; ii) anchoring effect [= tendência a realizar uma estimativa a partir de um valor originário, ajustando-a progressivamente à medida que se obtém informação adicional, ou seja, tendência a que a valoração inicial exerça influência indevida e desproporcional sobre as valorações posteriores - e.g., o juiz que haja tido contato com prova inadmissível tem dificuldade de ignorá-la]; iii) confirmation bias [= tendência a priorizar informações que apoiam uma hipótese inicial e ignorar informações que a contradigam - e.g., o juiz que haja concedido liminar mediante a elaboração de um juízo de probabilidade sobre o direito afirmado pelo autor tende a julgar procedente a demanda].

De todo modo, o estudo dos vieses cognitivos não se cinge a descrevê-los, mas também a reduzir-lhes a magnitude mediante estratégias ou técnicas chamadas debiasing. Essas técnicas podem: 1) operar diretamente sobre os erros para tentar reduzi-los ou limitá-los (ex.: obrigar o fornecedor a prover aos consumidores informação adicional para lhes suprir a capacidade restrita de compreensão dos riscos do produto ou serviço) [= debiasing stricto sensu]; ou 2) isolar os resultados dos limites do comportamento humano (ex.: remover da tomada de decisões corporativas importantes os inside directors, contagiados pelo optimism bias, e substituí-los por outside directors, mais capazes de generalizar situações e identificar semelhanças) [= insulating]. Além do mais, as estratégias podem dar-se: a) «dentro da lei» (ou seja, o próprio sistema jurídico interfere com sucesso para reduzir ou limitar o enviesamento - ex.: exigência de motivação escrita; criação de varas e turmas especializadas a fim de que os juízes ganhem experiência em determinadas matérias e, assim, acumulem feedback para evitarem erros); ou b) «fora da lei» (caso em que não há como a lei interferir adequadamente para reduzir ou limitar o enviesamento, pois tudo depende de mudanças na cultura pessoal e na postura profissional do agente decisor - ex.: educação dos operadores do direito em vieses cognitivos; técnica do «advogado do diabo» ou do «considerar o oposto»).

 

II

Juiz de garantias é técnica de insulating «dentro da lei». Isola-se temporariamente o juiz designado para a causa, atribuindo a outro as decisões sob reserva de jurisdição na investigação (ex.: interceptação telefônica, busca e apreensão domiciliar, quebra de sigilos bancário e fiscal, prisão preventiva, prisão temporária, infiltração de agente policial). Isolando-o, protege-o. Resguarda-lhe a imparcialidade. Com isso se separa o juiz da investigação do juiz da instrução, o juiz do inquérito do juiz do processo. Frise-se: cuida-se de técnica de insulating, não de debiasing stricto sensu. A lei prefere isolar o juiz enviesado a tentar reduzir-lhe ou limitar-lhe o enviesamento. O legislador entendeu - com acerto - que o isolamento é mais praticável e eficiente que o desenviesamento. A rigor, o juiz do inquérito não é definitivamente substituído ex post pelo juiz do processo; é o juiz do processo que é temporariamente substituído ex ante pelo juiz do inquérito. Não há aí jogo de palavras. O juiz da causa é o juiz do processo, não o juiz do inquérito. O juiz do processo é interinamente trocado pelo juiz do inquérito até as conclusões investigatórias. A lei destaca um outro juiz para enviesar-se antecipadamente e retirar-se em seguida, confinando em si toda sorte de vieses que as investigações soem incutir. Enfim, a designação do juiz do processo é originária, do juiz do inquérito derivada; a atuação do juiz do inquérito é prius, do juiz do processo posterius. Mas desde sempre os autos só transitam pela secretaria do juízo do juiz do processo. Não há dois juízos funcionalmente competentes [juízo do juiz do inquérito → juízo do juiz do processo], mas só um [juízo do juiz do processo]. Entre o juiz do inquérito e o juiz do processo se repartem atribuições dentro de um mesmo e único órgão.

Assim: a) na vara com mais de um juiz: a.1) se a causa for atribuída ao juiz titular, o juiz de garantias poderá ser o juiz substituto; a.2) se a causa for atribuída ao juiz substituto, o juiz de garantias poderá ser o juiz titular; b) na vara com apenas um juiz: b.1) se a vara for única, o juiz de garantias poderá ser da localidade mais próxima com competência criminal; b.2) se a vara for criminal sem congênere na localidade, o juiz de garantias poderá ser da localidade mais próxima com competência criminal; b.3) se a vara for criminal com congênere na localidade, o juiz de garantias poderá ser da outra vara criminal local. Em (a), se um dos juízes estiver afastado (suspeição, impedimento, licença etc.), o juiz de garantias deverá determinar-se segundos os critérios definidos em (b). Em (b), para atender ao juiz natural, o tribunal deverá instituir - de forma clara, impessoal, objetiva e equilibrada - uma rede de cobertura mútua entre as varas. Daí se nota que ao juiz de garantias subjaz questão de imparcialidade, não de competência. Ele é retirado do processo porque se torna impedido [CPP, art. 3º-D], não porque é incompetente. Na vara com dois juízes, p. ex., tanto o titular quanto o substituto integram o mesmo órgão competente, embora um fique impedido de prosseguir no feito do outro após o recebimento da denúncia. Entretanto, prosseguindo no feito, cabe arguir-lhe exceção de impedimento [CPP, art. 112], não de incompetência [CPP, art. 95, II]. Cabem ainda: impetração de habeas corpus, pois configura indevido constrangimento à liberdade do acusado o processamento e o julgamento por juiz parcial; impetração de mandado de segurança contra ato do juiz de garantias, mediante citação da acusação como litisconsorte passiva, pois o acusado tem o direito líquido e certo de ser processado e julgado com imparcialidade. Por isso, é preciso tomar cum grano salis o artigo 3º-C do CPP quando fala em «competência do juiz das garantias».

De fato, seria inaceitável permitir que o juiz da investigação - contaminado por prisões e provas sobre as quais decidiu - instruísse e julgasse. Afinal, há grave risco de que a comparticipação do juiz na formação da opinio delicti o incline a ratificar essa impressão inicial e, assim, a condenar o acusado. Para interceptarem-se comunicações telefônicas, exigem-se, p. ex., «indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal» [Lei 9.296/2996, art. 2º, I]; para decretar-se prisão temporária, «fundadas razões de autoria ou participação do indiciado» [Lei 7.960/1989, art. 1º, III]; para decretar-se prisão preventiva, «indício suficiente de autoria e perigo gerado pelo estado de liberdade do acusado» [CPP, art. 312]; para decretar-se busca e apreensão domiciliar, «fundadas razões» [CPP, art. 240, § 1º]; para afastar-se cautelarmente funcionário público de cargo, emprego ou função, «indícios suficientes de que integra organização criminosa» [Lei 12.850/2013, art. 2º, § 5º]; para autorizar-se infiltração presencial ou virtual de agentes de polícia, «indícios de organização criminosa» [Lei 12.850/2013, artigos 10, § 2º, e 10-A, § 3º]. Logo, não raro, o juiz da investigação antecipa juízo sobre o cometimento do crime [fumus commissi delicti], quando não sobre a periculosidade do investigado [periculum libertatis]. Logo, contaminado por viés de confirmação [confirmation bias], tende a ratificar esses juízos preliminares na sentença, priorizando informações que os apoiem e ignorando informações que os contradigam (sobre o viés de confirmação, p. ex.: ANGNER, Erik. A course in behavioral economics. New York: Palgrave Macmillan, 2012, p. 91 e ss.; BAZERMAN, Max H.; MOORE, Don. Processo decisório. 7. ed. Trad. Daniel Vieira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 38-41; BURKE, Alafair. Neutralizing cognitive bias: an invitation to prosecutors. NYU Journal of Law & Liberty. v. 2. n. 3, 2007, p. 516 e ss.; FELDMAN, Robert S. Introdução à psicologia. 10. ed. Trad. Daniel Bueno e Sandra Maria Mallman da Rosa. Porto Alegre: AMGH, 2015, p. 253; FRASER-MACKENZIE, Peter A. F.; DROR, Itiel E. Cognitive biases in human perception, judgment, and decision making: bridging theory and the real world. Criminal investigative failures. Coord. Kim Rossmo. London: Taylor & Francis, 2008, p. 57-59; GARB, Howard N. Cognitive heuristics and biases in personality assessment. Aplications of heuristics and biases to social issues. Coord. Linda Health et al. New York: Plenum Press, 1994, p. 78-79; HANSON, Jon D.; KYSAR, Douglas A. Taking behaviorism seriously: the problem of market manipulation. New York University Law Review. v. 74. jun. 1999, p. 647 e ss.; JUST, David R. Introduction to behavioral economics: noneconomic factors that shape economics decisions. New York: John Wiley & Sons, 2014, p. 187 e ss.; NICKERSON, Raymond S. Confirmation bias: a ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology. v. 2. n. 2, p. 175-220). Daí por que se deve impedi-lo de prosseguir no processo. Nesse sentido, a Lei 13.964/2019 merece elogios. Traz louvável reinforcement à imparcialidade do juiz.

 

III

Entretanto, nem tudo são flores na última reforma do CPP. De acordo com o artigo 3º-C do Código (introduzido pela Lei 13.964/2019), «a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código». De acordo ainda com o artigo 3º-B do CPP (também introduzido pela Lei 13.964/2019), «o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: [...] XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código». Como se percebe, a introdução do juiz de garantias no Brasil foi um pouco desajeitada. Afinal de contas, é mantido na causa penal até que ele próprio se decida pelo recebimento ou pela rejeição da denúncia. Ora, é inevitável que - influenciado pela heurística de confirmação [confirmation bias] - seja levado a recebê-la. Se o enviesamento torna o juiz propenso a proferir sentença condenatória (que é fim), torna-o igualmente propenso a admitir o julgamento do meritum causæ (que é meio). Por conseguinte, o trabalho estratégico de insulating fica incompleto, inacabado, a meio caminho. Não se isolam totalmente os efeitos dos vieses cognitivos contraídos pelo juiz durante as investigações criminais. Abre-se uma fresta indesejável. Deixa-se um quid paradoxal de antigaranticidade. Na prática, qualquer margem decisória para a rejeição da denúncia fica aniquilada. A imparcialidade judicial é enaltecida na presidência da instrução, mas desprezada no recebimento da denúncia. Dá-se com uma mão, mas se tira em parte com a outra. Exatamente no instante derradeiro de sua participação na fase pré-processual, o juiz de garantias não é capaz de garantir o recebimento imparcial da denúncia. Nesse sentido, degrada-se em juiz de «garantias», de garantias sob reserva, de sub-garantias, de garantias em modo privativo.

Daí por que a decisão sobre o recebimento da denúncia deveria caber ao juiz do processo judicial, não ao juiz do inquérito policial. O juiz do inquérito deveria funcionar no processo até que o juiz do processo se decidisse pelo recebimento ou pela rejeição da denúncia. No entanto, essa não foi a opção legislativa. Com isso, persiste no País a triste vulgaridade com que se acolhem as denúncias do Ministério Público. Como cediço, para nascer o poder-dever judicial de receber a denúncia, é necessária a presença de dois pressupostos fundamentais: 1) prova da materialidade do crime e, ao menos, 2) indícios de autoria. Logo, é preciso que, dentro das peças investigativas, o juiz aponte com exatidão os elementos probatórios que demonstrem essa presença. Não se trata de mero despacho, que se cinge a impulsionar o processo, mas de autêntica decisão interlocutória. Há aí indisfarçável juízo técnico-jurídico positivo de admissibilidade. Não sem razão o artigo 3º-B, XIV, do CPP, prescreve ao juiz de garantias «decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa» [d. n.]. Portanto, é mais do que ato de recebimento: é ato decisório de recebimento. Mais ainda: é ato decisório adequadamente fundamentado de recebimento (sobre o tema, p. ex.: LORENZONI, Pietro Cardia. O juiz das garantias e o dever de fundamentação das decisões de recebimento da denúncia. <https://www.conjur.com.br/2019-dez-28/diario-classe-juiz-garantias-dever-fundamentacao-decisoes-recebimento-denuncia>). No quotidiano forense, é comum que se recebam denúncias mediante resoluções genéricas padronizadas (ou seja, autênticos carimbos), que não dialogam in concreto com os autos da investigação criminal e que invocam motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão de recebimento de denúncia. Portanto, veio em boa hora o art. 315, § 2º, III, do CPP, com a redação dada pela Lei 13.964/2019: ele migra para o âmbito penal as mesmas regras de fundamentação adequada consagradas no âmbito civil [v. CPC/2015, art. 489, § 1º]. Mas isso por si só não basta, tendo em vista que vige no direito procedimental penal brasileiro um disparatado «sub-contraditório inconstitucional»: compactua-se com o recebimento de denúncias non audita altera parte, isto é, sem que antes se ouçam os acusados sobre a suposta presença de «justa causa» para a ação penal e, portanto, sobre tudo quanto se haja produzido unilateralmente contra eles nas investigações (razão por que o contraditório pré-citacional não se pode circunscrever aos procedimentos dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos [CPP, art. 514], da Lei de Drogas [Lei 11.343/2006, art. 54] e dos crimes de responsabilidade de prefeitos [Decreto-Lei 201/1967, art. 2º, I]). Ora, se a heurística de confirmação açula a admissão da denúncia mesmo com contraditório prévio, açula ainda mais sem ele, pois ao denunciado não se permite contradizer a hipótese inicial provisória de culpabilidade.

A propósito, a decisão sobre recebimento de denúncia por juiz desenviesado e a instauração do contraditório pré-citacional teriam papel fundamental na redução ou limitação do chamado «viés de Ministério Público»: [prosecutorial bias]. A Comissão Europeia para a Democracia através do Direito (a «Comissão de Veneza»), órgão consultivo do Conselho da Europa sobre questões constitucionais, adotou em sua 85ª sessão plenária, realizada nos dias 17 e 18 de dezembro de 2010, o European standards as regards the independence of the judicial system: part II - the prosecution service(<https://www.venice.coe.int/webforms/documents/default.aspx?pdffile=CDL-AD(2010)040-e>). Uma das conclusões do relatório é a seguinte: «In some countries a ‘prosecutorial bias’ seems to lead to a quasi-automatic approval of all such requests from the prosecutors. This is a danger not only for the human rights of the persons concerned but for the independence of the Judiciary as a whole» [tradução: «Em alguns países, um ‘viés do Ministério Público’ parece levar a um deferimento quase automático de todos esses pedidos dos promotores. Este é um perigo não só para os direitos humanos das pessoas envolvidas, mas também para a independência do Judiciário como um todo»]. No Brasil, não é diferente: os juízes soem receber denúncias como se fossem despachantes do MP. Nesse sentido, perdeu-se infelizmente com a Lei 13.964/2019 a chance de se combater esse tipo de automatismo decisório pro accusatione. Lembre-se que o recebimento da denúncia altera o status libertatis do acusado; assim sendo, deve caracterizar-se por enormes atenção e seriedade.

 

IV

A versão brasileira do juiz de garantias sofre de um outro problema. Como já visto, o juiz de garantias opera como uma «haste de para-raios»: atrai para si os efeitos da heurística de confirmação e, em consequência, protege o juiz da instrução dos enviesamentos próprios à fase de investigação criminal. Afinal, durante a etapa investigatória se reserva ao magistrado o deferimento de provas e prisões cautelares mediante a antecipação de juízos de culpabilidade e de periculosidade sobre o investigado (interceptação telefônica, prisão temporária, prisão preventiva, busca e apreensão domiciliar, afastamento cautelar de funcionário público, infiltração presencial ou virtual de agentes policiais etc.). Antecipando-os, o magistrado tende a cristalizá-los em juízos definitivos e, assim, a proferir sentença penal condenatória. Em outras palavras, a primeira impressão tende a se tornar uma impressão definitiva contra accusatis. Contudo, é possível que a necessidade concreta dessas medidas probatórias e prisionais desponte no curso da instrução em juízo. Não é raro, por exemplo, decretar-se prisão preventiva entre o recebimento da denúncia e a prolação da sentença. Nesse caso, de acordo com a letra fria da Lei 13.964/2019, o deferimento dessas medidas cautelares cabe ao próprio juiz do processo, não ao juiz do inquérito, visto que «a competência do juiz das garantias [...] cessa com o recebimento da denúncia ou queixa» [CPP, art. 3º-C].

No entanto, essa possibilidade vai de encontro ao próprio fundamento científico-psicológico do novo modelo procedimental, pois o deferimento das medidas pelo juiz da instrução o enviesa com a heurística de confirmação e, por via de consequência, lhe compromete a imparcialidade subjetiva para sentenciar. Falhou o legislador mais uma vez, pois. O ideal seria que o deferimento das medidas, posto que no curso da instrução, também coubesse ao juiz de garantias. Seu papel deveria extrapolar o âmbito investigativo; transcender a simples figura de um «juiz de inquérito»; ir além; aforar sempre que necessário à imparcialidade do juiz no decorrer do processo. Enfim, o recebimento da denúncia não deveria ser o ponto final de atuação do juiz de garantias. Na verdade, o modelo deveria assemelhar-se àquilo que o Professor GLAUCO GUMERATO RAMOS chama de «procedimento judicial funcionalmente escalonado» (Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado): repensando o modelo de processo. Revista Brasileira de Direito Processual. ano 89. n. 71. jul/set 2010, p. 65-68). Segundo o processualista paulista, para que se preserve a imparcialidade judicial, é preciso haver «um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência»; por essa razão, «o juiz da urgência não pode ser o mesmo da sentença; ou, ainda, o juiz da instrução e/ou da prova de ofício não pode ser o mesmo da resolução do mérito». No âmbito procedimental penal, deveria haver algo semelhante: 1) um juiz para a concessão de medidas - tanto no inquérito quanto no processo - que pressuponham juízo adiantado de culpabilidade; 2) um juiz para o recebimento da denúncia e, subsequentemente, para a prática dos atos instrutórios; 3) um juiz apenas para prolação da sentença; 4) um juiz para os incidentes da execução da pena (obs.: a necessidade premente de se separarem o juiz da instrução e o juiz da sentença - nos âmbitos civil, penal e administrativo - será aprofundada em artigo posterior). Esse modelo procedimental se assemelha, a propósito, àquilo que CHIS GUTHRIE, JEFFREY J. RACHLINSKI e ANDREW WISTRICH chamam de «divided decision-making strategy» (Inside the judicial mind. Behavioral Law and Economics. v. III. Coord. Jeffrey J. Rachlinski. Edward Edgar: Northampton, MA, 2009, p. 51; Blinking on the bench: how judges decide cases. Cornell Law Review. 2007. v. 93, p. 42).

Todavia, pode surgir a seguinte dúvida: se o juiz de garantias não praticar qualquer ato enviesante no curso do inquérito, ainda assim ficará impedido de instruir e sentenciar? A separação entre juiz de inquérito e juiz de processo é condicionada ou incondicionada? Deve-se circunscrevê-lo à primeira fase da persecutio criminis mesmo que o motivo determinante para tanto nunca se concretize? De acordo com EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, «não tendo havido a decretação anterior de qualquer medida cautelar na fase de investigação, nada justificaria a aplicação da regra de afastamento»; logo, «ter-se-ia aqui, hipótese de não aplicação específica à hipótese excepcional, sem prejudicar a validade intrínseca da Lei» (Juiz de garantias: muito barulho por nem tanto. <https://www.conjur.com.br/2019-dez-28/eugenio-pacelli-juiz-garantias-barulho-nem-tanto>). Deve-se lembrar, porém, que, em respeito à garantia constitucional do juiz natural, tanto o juiz do inquérito quanto o juiz do processo são definidos sincronicamente por critérios claros, impessoais e objetivos instituídos ante causam. Não se pode defini-los secundum eventum contaminationis e, portanto, post causam. Logo, jamais haveria ensejo para o juiz do inquérito policial continuar atuando após o recebimento da denúncia, sobrepondo-se ao juiz do processo judicial. Ademais, é possível que determinadas leis de organização judiciária instituam autênticos juizados especiais de garantias, separando-os das varas criminais comuns. Aqui, pode-se falar excepcionalmente em duas varas, dois órgãos jurisdicionais, duas unidades, dois juízos, cada um deles com competência funcional para uma fase da persecução penal. Mais: pode-se tomar aí o juiz de garantias como uma questão tanto de imparcialidade como de competência. Nesse caso, é inconcebível que esses juizados especializados usurpem a competência das varas não especializadas. Haveria irracionalidade sistêmica, porquanto coexistiriam - a um só tempo - processos afetados a juízes de inquérito e processos afetados a juízes de processo. Aliás, os juizados especiais de garantias seriam muito bem-vindos, pois propiciariam às autoridades judiciais neles lotadas uma maior sintonia com a proteção internacional aos direitos humanos, especialização técnico-jurídica, experiência burocrático-ocupacional e, por isso, maior imunidade ao enviesamento psíquico-cognitivo. Sublinhe-se, por fim: ainda que durante o inquérito policial ou o procedimento de averiguação ministerial não se decrete qualquer medida cautelar probatória ou prisional, a atuação de dois juízes - um para cada fase da persecução penal - não traz prejuízo nem ao investigado nem à investigação.

 

V

As falhas político-legislativas na instituição do juiz de garantias não lhe obscurecem os benefícios. O País ainda tem um dos piores sistemas de direito procedimental penal da América Latina. Aliás, poucos sistemas enviesam tanto os seus juízes criminais quanto o brasileiro. Por aqui ainda se leva a imparcialidade judicial como um problema de somenos importância. Pudera: o CPP é um texto normativo de 1941, gestado no Estado Novo e interpretado-aplicado por juízes e promotores até hoje viciados em poderes inquisitivos. Não sem razão os significativos avanços trazidos pela Lei 13.964/2019 em prol de uma estrutura acusatória foram impugnados por associações de juízes e promotores mediante ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Todavia, em boa hora, o projeto de lei idealizado pelo Ministro da Justiça SÉRGIO FERNANDO MORO foi parcialmente refigurado. Convolou de um diploma punitivista para um estatuto garantístico. Reforçou a isenção do juiz. Introduziu no CPP, por exemplo, a proibição de iniciativa oficial probatória pro accusatione [art. 3º-A], o juiz das garantias [art. 3º-B], a vedação de sentenciar ao juiz que haja conhecido do teor de prova declarada inadmissível [art. 157, § 5º], as regras de fundamentação adequada [art. 315, § 2º]. Mesmo assim, ainda há muito a se fazer. É preciso também que se introduzam, por exemplo, o promotor de garantias, o contraditório obrigatório antes do recebimento da denúncia, a separação entre o juiz da instrução e o juiz da sentença, o fortalecimento do duplo grau de jurisdição mediante extinção da competência penal originária do STF, a substituição da livre apreciação da prova por standards de valoração objetiva. De todo modo, já se lograra um adensamento de garanticidade no Brasil, por exemplo, com a audiência de custódia [Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 7º, 5º], a excepcionalidade do aprisionamento cautelar [CPP, art. 310, II, incluído pela Lei 12.403/2011], a obrigatoriedade da resposta à acusação [CPP, art. 396-A, § 2º, incluído por pela Lei 11.719/2008]. Nota-se assim que, ante a impossibilidade de um novo código de feição garantista em tempos de caça às bruxas, é mais fácil imprimir sucessivas reformas parciais ao CPP. Atualmente, está-se a meio caminho entre um sistema inquisitivo pleno e um sistema acusatório pleno. Tem-se um sistema misto em transição. Caminha-se a passos lentos e constantes de um extremo a outro. Mas se caminha. Ainda persistem pesados detritos de inquisitividade. Mas o juiz de garantias parece constituir o clímax representativo de um movimento e o símbolo inaugural de novas luzes.

 

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