#52 - AINDA E SEMPRE A PROVA DE OFÍCIO: O SILENCIOSO SEPULTAMENTO DOS PODERES INSTRUTÓRIOS SUPLETIVOS NO CPC/15

09/03/2020

  Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

  

 

 

 I

Um dos temas mais sensíveis do direito processual é o da (in)compatibilidade entre a garantia da imparcialidade e os poderes instrutórios oficiosos do juiz. A grande pergunta é: a garantia da imparcialidade é violada quando o juiz determina a produção de provas de ofício? A jurisprudência, muito por força dos permissivos legais, é bastante concessiva aos poderes instrutórios oficiosos do juiz. A doutrina não costuma tratá-lo no plano da processualística, mas da procedimentalística, âmbito em que gera disputa de intensidade variada: o desacordo é bastante presente nas obras de procedimento penal, pouco presente nas obras de procedimento civil e praticamente inexistente nas obras de procedimento do trabalho, para falar apenas delas. A posição que prevalece, porém, sobretudo no procedimento civil, é a de que o juiz possui poderes instrutórios oficiosos supletivos: finda a instrução das provas requeridas pelas partes, remanescendo a dúvida, o juiz pode determinar a produção de provas ex officio para complementar a instrução. De minha parte, estou com aqueles – poucos – que entendem que os poderes instrutórios são sempre – seja qual for o procedimento, a natureza do direito discutido ou a condição dos sujeitos envolvidos – incompatíveis com a garantia da imparcialidade, donde inconstitucionais. Mas não pretendo neste texto levantar os fundamentos do debate, confrontar os posicionamentos divergentes e apontar qual está correto e o porquê – de resto, trabalho hercúleo, que exige fôlego e paciência. Pretendo algo muito mais singelo: demonstrar que a defesa dos poderes instrutórios oficiosos do juiz em caráter supletivo/complementar é, pelo menos em boa medida, incompatível com o CPC em vigor.

 

II

Ponto festejado do CPC é a disciplina mais ou menos detalhada da fase de saneamento e organização do processo. De acordo com o art. 357, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I – resolver as questões processuais pendentes, se houver; II – delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373 ; IV – delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V – designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento. Duas inovações – pelo menos no plano do direito positivo – aqui relevantes são encontradiças nos §§ 1º e 2º do precitado dispositivo. Nos termos do § 1º, realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável. E de acordo com o § 2º, as partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz. Como se vê, toda decisão sobre o saneamento e a organização do processo, tanto a adjudicada como convencionada, se torna estável e vincula as partes e o juiz. Mas o que isso significa? Em termos lógicos, significa que as únicas questões fático-jurídicas e provas que podem ser inseridas na instrução e consideradas no julgamento são aquelas selecionadas na decisão de saneamento e organização. Não se admitirá que durante a instrução, ou depois dela, conclusos os autos para sentença, uma parte ou o juiz suscite o exame de outras questões fático-jurídicas ou a produção de outras provas que poderiam ter sido anteriormente inseridas na decisão de saneamento e organização, mas que, por qualquer razão, não foram (v. g. as partes não requereram, ou requereram e foram indeferidas). Retenha-se o ponto, para fins de esclarecimento: não estou considerando as questões fático-jurídicas e meios de provas novos (i. é, lei superveniente e prova só surgida ou justificadamente descoberta depois da decisão de saneamento e organização) nem aquelas cognoscíveis ex officio “a qualquer tempo e grau de jurisdição” (v. g. art. 485, § 3º, CPC). Não se nega a relevância teórico-prática de definir se tudo isso é apanhado (ou não) pela estabilidade em liça, apenas isso não é objeto deste texto. Minha análise se limita ao seguinte: a estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do CPC em relação às provas que poderiam ter sido inseridas na decisão de saneamento e organização, mas não foram. Ao menos dentro desses limites, e tirante eventual inconstitucionalidade dos dispositivos – que, antecipo, não diviso –, não há outra solução lógica: se a decisão de saneamento e organização especifica os meios de prova e ela se estabiliza, então só serão produzidas e consideradas no julgamento as provas especificadas na decisão de saneamento e organização. Seja qual for o cenário, o juiz terá de decidir apenas com base nesse material fático-jurídico e probatório. Afinal, outra não é a razão de ser da estabilização da decisão de saneamento e organização. Nem se diga que como o juiz não pode prever o insucesso da instrução ele estaria autorizado a, remanescendo a dúvida ao cabo a instrução, determinar a produção de mais provas de ofício em caráter supletivo/complementar. Ora, as partes também não são capazes de prever o resultado da instrução, mas tal decisão se estabiliza para elas. Tratando-se de um risco comum, seus efeitos devem ser igualmente distribuídos: pelo menos nos limites acima referidos, a estabilização impede a complementação da instrução tanto pelas partes quanto pelo juiz. Assim sendo, de duas, uma: se as provas selecionadas e produzidas forem suficientes para justificar racionalmente uma conclusão, o juiz deve decidir de acordo com elas; se, do contrário, elas forem insuficientes para justificar racionalmente uma conclusão, o juiz deverá decidir conforme as regras de atribuição do ônus da prova (art. 373, I e II, CPC).

 

III

Em termos lógicos – e apenas lógicos! – é possível afirmar tanto a constitucionalidade dos poderes instrutórios quanto da estabilização da decisão de saneamento e organização, desde que observados os seguintes termos: primeira solução – o juiz tem poderes instrutórios temporalmente ilimitados e a estabilização da decisão de saneamento e organização atinge apenas as partes: nesse caso, o juiz pode produzir provas a qualquer tempo, logo, ele não é alcançado pela estabilização da decisão de saneamento e organização no que diz respeito à seleção das provas, mas as partes são; segunda solução – o juiz tem poderes instrutórios apenas em caráter supletivo/complementar e a estabilização da decisão de saneamento atinge apenas as partes: nesse caso, o juiz só pode produzir provas após o insucesso da instrução, logo, como esta é posterior à decisão de saneamento e organização, ele não é alcançado pela estabilização da decisão de saneamento e organização no que diz respeito à seleção das provas, mas as partes são; terceira solução – o juiz tem poderes instrutórios concorrentes com os das partes e a estabilização da decisão de saneamento e organização atinge a ambos: nesse caso, juiz e partes se submetem aos mesmos limites, e, consequentemente, exercem seus poderes instrutórios até a decisão de saneamento e organização, a partir da qual todos são alcançados pela estabilização quanto à seleção das provas. Ocorre que, se a lógica nos auxilia a formular raciocínios dotados de coerência interna, ela não substitui o direito. Soluções logicamente válidas não necessariamente são soluções juridicamente válidas. Nesse tema, não podemos desconsiderar as especificidades do direito positivo: a estabilização da decisão de saneamento e organização vincula as partes e o juiz (§§ 1º e 2º do art. 357 do CPC). Consequentemente, precisam se acertar com a lógica aqueles que reconhecem a constitucionalidade tanto dos poderes instrutórios apenas em caráter supletivo/complementar quanto da estabilização da decisão de saneamento e organização para as partes e para o juiz. Não é possível, sem contradição, defender as duas coisas. Afirmar a constitucionalidade dos poderes instrutórios apenas em caráter supletivo/complementar é ter como premissa que a decisão de saneamento e organização, no que concerne à definição das provas, não se estabiliza em relação ao juiz. Por outro lado, afirmar a constitucionalidade da estabilização da decisão de saneamento e organização, no que concerne à definição das provas, tanto para as partes como para o juiz, é ter por premissa que, pelo menos em relação às provas disponíveis ao tempo da decisão de saneamento e organização e que, por qualquer razão, não foram selecionadas, o juiz não possui poderes instrutórios apenas em caráter supletivo/complementar. Se assim é, os autores que defendem os poderes instrutórios oficiosos do juiz apenas em caráter supletivo/complementar têm duas opções juridicamente válidas: (i) insistir que o juiz tem poderes instrutórios oficiosos apenas em caráter supletivo/complementar, o que os obrigará defender a inconstitucionalidade da estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do CPC, pelo menos em relação ao julgador; (ii) reconhecer a constitucionalidade da estabilização dos §§ 1º e 2º do art. 357 do CPC, o que os obrigará a renunciar à tese dos poderes instrutórios oficiosos do juiz apenas em caráter supletivo/complementar. Tertium non datur. Se optarem por (ii), terão duas alternativas: (ii.1) defender que o juiz tem poderes instrutórios concorrentemente com as partes – solução que daria ainda algum sentido ao art. 370, CPC, e aos seus correlatos nas demais legislações procedimentais – ou (ii.2) concluir que o juiz não tem poderes instrutórios. Se optarem por (ii.1), precisarão rever profundamente seus fundamentos para a defesa dos poderes instrutórios oficiosos. Se optarem por (ii.2), serão muito bem-vindos a este lado hoje ainda minoritário acerca do tema.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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