#34 - Reflexões acerca do processo como garantia das garantias

14/10/2019

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

I

Ao cidadão brasileiro está assegurado o direito a decisões produzidas por juízes imparciais, espelhadas no debate travado em pé de igualdade por profissionais tecnicamente especializados (advogados), pautadas em elementos de prova não execrados pela lei, dotadas de publicidade e que tragam decodificadas, de maneira explícita e sem armadilhas argumentativas, as justificativas que assentam as suas conclusões. Surpresas, omissões, contradições, ocultamentos, obscuridades, arroubos e atropelos não se incluem na receita de uma prestação jurisdicional afinada aos ditames da Constituição de 1988.

O anteparo contra toda essa gama de anomalias é denominado processo (= devido processo legal ou processo devido constitucionalmente), cuja substância compreende uma constelação de garantias fundamentais e representa condição inexorável para que sejam inoculadas às decisões judiciais a legitimidade que se exige no contexto do Estado Democrático de Direito.[2] A sua importância é dado concreto extraído do direito positivo, especificamente da Constituição (CF/88, art. 5o, LIV), porém ainda obnubilada por setor majoritário da doutrina, que insiste em reduzi-lo a algo acessório ao poder jurisdicional.[3] Tem-se, por assim dizer, a diluição do processual pelo jurisdicional, fenômeno caracterizado por uma promiscuidade oriunda de pré-juízos, enraizados na tradição jurídica pela labuta impactante e serial da dogmática, durante longo trajeto histórico, a ponto de fazer com que o processo seja antevisto por uma via de pensamento profundamente aferrada à perspectiva da atividade jurisdicional e dos seus (denominados) escopos (sociais, políticos e jurídicos).[4]

É trabalho árduo quebrar a roda viva que movimenta o senso comum teórico em prol do desvelamento e destruição de compreensões que hoje se sedimentaram, traduzindo o comportamento assumido, de modo geral, pelos profissionais de direito. Não obstante, depende desse esforço a salvaguarda da teoria e prática da baixa constitucionalidade na qual se encontram atoladas, sobretudo no que respeita a concepção do que realmente significa o processo e a necessidade de enxergá-lo (e manejá-lo) a partir de seus autênticos contornos.

 

II

Em voga a apologia de uma prestação jurisdicional atenta à substancialidade do contraditório e à exigência de fundamentação adequada às decisões judiciais, reforçada, em tempo recente, pelo advento do CPC/2015.  Nada mais apropriado, sem dúvida.

O processo assegura um espaço democrático procedimental, onde os resultados dali provenientes não derivam do labor solitário da autoridade jurisdicional (=solipsismo judicial), mas também, e sobretudo, do empenho dos litigantes (representados por seus advogados). Essa é justamente uma das feições do contraditório, nunca sendo excessivo (re)lembrar que o caráter dialético dos procedimentos jurisdicionais é implicação lógica da democracia participativa, mecanismo que afiança, ao cidadão-jurisdicionado, a posição ativa de contribuir na formação das decisões públicas.[5]

Mais que isso: o contraditório assume, outrossim, a função axial de controlar a atividade jurisdicional e os resultados dela originários e, deste modo, contribui para o desígnio de obstar arbitrariedades e excessos eventualmente praticados pelo julgador – uma função, aliás, partilhada com as demais garantias fundamentais que dão conteúdo ao processo. Se o diálogo, travado entre autor e réu, é, pelo juiz, considerado na formulação dos provimentos jurisdicionais, decerto que o contraditório se presta ao controle do poder estatal jurisdicional, legitimando-o em deferência às expectativas alimentadas, ao longo do procedimento, pelas partes. Combate-se, com uma tal perspectiva, as incertezas, cerca-se a discricionariedade judicial, afronta-se a ausência de transparência e de previsibilidade, afastam-se às chamadas decisões-surpresas, que só se coadunam com o arbítrio e, por conseguinte, dizimam o ideal democrático.[6]

Perceba-se que essa concepção substancial do contraditório influi, sobremaneira, no redimensionamento do dever de fundamentação das decisões judiciais, pois aquilo que não foi a ele submetido não poderá ser objeto de decisão, bem assim tudo o que ele abarcou deverá ser alvo de manifestação do juiz.[7] Pouco adiantaria atribuir perfil forte ao princípio do contraditório sem que se calibrasse as coordenadas do dever de fundamentação, porquanto só é possível saber se as partes não foram surpreendidas, e se tiveram efetivas chances de influir, caso o julgador demonstre, motivadamente, que oportunizou o debate, rebatendo, um a um, todos os argumentos e provas apresentados pelas partes, enfrentando-os de forma minudente, de modo a indicar, com precisão, como e em que medida esses argumentos e provas tiveram, ou não, aptidão para convencê-lo.[8]

De resto, como o direito é linguagem vertida em texto e todo texto exige interpretação, a relevância da fundamentação está em que, a partir dela o juiz tem condições de demonstrar que decidiu juridicamente e não persuadido por pressões externas, ou mesmo com derivação no seu autossenso de justiça.[9]

Ao fim e ao cabo – e reforçando o que já foi dito – a imposição de uma fundamentação exauriente e analítica, alinhada aos ditames do contraditório substancial, traduzem-se em imprescindíveis estruturas ou trincheiras de controle, proteção e contenção do poder de julgar.[10]

 

III

Mas a empresa em arrimo à garantística processual, que segundo Eduardo José da Fonseca Costa é uma constitucionalística especializada,[11] exige rigor e cuidado constantes, para não se corromper entre confusões de entendimento e visões isolacionistas. Importa aqui o seguinte: é equivocado advogar a suficiência de procedimentos talhados na observância do binômio contraditório/fundamentação para que decisões judiciais despontem amoldadas a influxos republicanos e democráticos. Ou dito de outra forma: contraditório e fundamentação são nada menos que duas peças em um muro plural de garantias, cujo respeito em bloco é condição inexorável para que o processo assuma seu efetivo papel contrajurisdicional em favor do cidadão e de suas liberdades.

Pense-se, a guisa de reflexão, em casos concretos nos quais o juiz desempenha seu dever de estimular o contraditório, para que autor e réu controvertam sobre qualificações jurídicas a fatos integrantes do objeto litigioso por alguma razão desapercebidas ou não suficientemente exploradas. Ou ainda, naquelas situações em que as partes não se atentaram a questão de direito intertemporal, ou referente à aplicação ou não de padrão decisório obrigatório, ou mesmo acerca de antinomias, inconstitucionalidades e/ou inconvencionalidades capazes de macular determinado dispositivo legal.

Alguém poderia sugerir que nada disso importa. O argumento central seria o de que a prestação jurisdicional precisa manter-se, a todo custo, fiel ao objeto litigioso formado pela atuação (ação-reação) fomentada exclusivamente entre as partes. A autoridade judicial, assumindo postura marcada pela acomodação e obediência quase absolutas, receberia versões fáticas, qualificações jurídicas e elementos de prova, trazidos pelos litigantes. Depois, elegendo a interpretação que lhe parecesse mais adequada dentre aquelas que lhe foram exibidas, resolveria o litígio. Na medida em que o contraditório se circunscrevesse aos aportes fáticos e jurídicos, conduzidos ao ambiente procedimental pela atuação privativa dos litigantes, a mácula da surpresa, em decisões judiciais, estaria realmente – e definitivamente – afastada.

Em termos sucintos: a tutela jurisdicional despontaria como produto único do material resultante daquilo que foi debatido pelos litigantes, afastada, em qualquer hipótese, a possibilidade de intervenção da autoridade judicial, já que ausente, para o juiz, a ideia de liberdade em sentido positivo. A sentença, depois de formulada pela autoridade judicial a “escolha” entre as teses conflitantes, surgiria como consequência de pura repetição mecânica.

Acontece, porém, que essa é uma visão que peca pela ingenuidade e, principalmente, subestima a complexidade da jurisdição e do fenômeno jurídico na contemporaneidade, sendo muitas as razões para enjeitá-la:

i) juízes, agentes estatais que são, operam (ou deveriam operar) em atenção às leis votadas e aprovadas pelos representantes eleitos do povo. Aplicam com imparcialidade o direito positivo. Não há opção entre julgar por equidade[12] ou com alicerce em qualificação jurídica arredada de intencionalidades legais. A autoridade judicial não tem liberdade de “interpretar” conforme a sua consciência criativa, em desatenção aos limites impostos pelo legislador, como se fosse detentora de um poder absoluto e liberta de qualquer controle externo.[13] Esforçar-se para atribuir resposta jurisdicional adequada aos litígios implica, entre outros fatores, vergar-se ante o processo legislativo constitucional e aplicar a legalidade válida, edificada para tal ou qual finalidade. É postura que a ordem pública não admite distorções ou benevolências;[14]

ii) ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF/88, art. 5o, II). Pois não se pode conceber, pelo só fato de que o princípio da legalidade assim estabelece, uma jurisdição capaz de desencaminhar a lei dos propósitos para os quais foi ela elaborada. O avesso a isso seria algo como suplementar postura de pensamento individualista, que se afirma olhando unicamente para o próprio umbigo. Nada menos que espécie de solipsismo, que vira as costas à cláusula da separação de poderes, desdenha o papel do Legislativo e, por conseguinte, faz moucos os ouvidos do intérprete para a mensagem que o texto legal tem a dizer e que precisa ser ouvida. É arbitrário desprezar a lei, seja por compreendê-la mal, seja por afastá-la do contexto fático do caso concreto quando nele ela se encaixa com perfeição;

iii) a lei, que é igual para todos, deve ser aplicada analogamente a casos análogos. É fora de dúvida que não se encontra na esfera de disponibilidade das partes e/ou do juiz a escolha da lei a ser utilizada para a solução do litígio. Afastar a lei de sua hipótese de incidência, porque assim querem as partes, ou porque simplesmente deseja o juiz, é, numa e noutra situação, permitir que predadores exógenos ganhem passagem para um mundo que não lhes pertence e no qual não são bem-vindos. Ao fim, nada menos que trabalhar segundo uma pauta progressiva rasteira, a produzir arbitrariedades que só fazem recrudescer a insegurança jurídica já reinante – afinal, segurança há apenas quando a jurisdição nutre respeito pelo trabalho legislativo, exigência democrática e republicana da qual não pode se furtar;

iv) não há sentido em tapar os olhos para contradições ou dissimular ignorância às muitas displasias que assolam o ordenamento jurídico e que indicam inconstitucionalidades ou atentados às convenções internacionais aderidas pelo Estado brasileiro. A Constituição de 1988, com seu catálogo de direitos fundamentais de cunho social (além daqueles caracterizados de liberdades negativas, decorrentes do constitucionalismo clássico), fez promessas que constrangem, conjuntamente, as funções legislativa, executiva e jurisdicional (nessa exata ordem). Queira-se ou não, a jurisdição também protagoniza, respeitados os devidos limites, papel na realização desse projeto constitucional ainda não cumprido. Dito isso, impossível aceitar julgamentos que passem de atropelo em inconsistências legais, que dirimam conflitos com assento em textos normativos cuja constitucionalidade (convencionalidade) pode e deve ser questionada;

v) advogar que o juiz estaria impedido de provocar o contraditório a fim de que as partes travem debate exploratório sobre tal ou qual perspectiva jurídica, endossa aquele tipo de raciocínio que cinde fato e direito. Como se possível fosse adotar manobra a permitir que direitos sejam trabalhados de forma desapegada dos suportes fáticos para os quais a sua incidência está destinada. Fato e direito nunca se apresentam no quotidiano processual em sua pureza. O fato é pensado como matéria do direito, ao passo que a reflexão sobre o direito ocorre sempre atrelada ao próprio fato.[15]

Tudo isso parece conduzir à aceitação excepcional do caminho da terza via, algo que não deixa de ser controverso na medida em que implica interferência da autoridade judicial em espectro da liberdade que respeita exclusivamente às partes (= qualificação jurídica dos fatos). E a partir disso surgem, à reboque, problemas seriíssimos atinentes ao esvaziamento de garantias fundamentais processuais e, especialmente, à quebra da imparcialidade judicial. Por isso é insuficiente sugerir, como resposta, que ao juiz, frente as situações acima indicadas (qualificações jurídicas a fatos integrantes do objeto litigioso desapercebidas ou não suficientemente exploradas; questões não debatidas sobre direito intertemporal, aplicação ou não de padrão decisório obrigatório ou antinomias, inconstitucionalidades e ou inconvencionalidades capazes de invalidar determinado dispositivo legal), cumpriria meramente a concretização do dever de consulta, provocando as partes a exercitarem o contraditório, como se o debate processual fosse a receita (miraculosa) para se superar as fronteiras fincadas pelo devido processo legal. Todo cuidado é pouco, ademais, para que o contraditório (= garantia fundamental do cidadão) não seja transformado em instrumento a serviço do poder jurisdicional, vale dizer, num tipo de canal a permitir que o julgador module juridicamente a resposta decisória a partir daquilo que ele, em sua visão particular, entende “justo” e “adequado”.

Em miúdos: o simplismo parece estar nas duas pontas, seja naquela que aposta no privatismo processual, seja naquela outra de viés estatalista. O garantismo processual brasileiro já se debruça sobre essa complexa e tormentosa questão e, em breve, pretende colocar sobre ela alguma luz.

 

IV

A Constituição de 1988, a partir do seu texto analítico e previsões que atrelam o Judiciário a questões de altíssima repercussão política e social, instituiu uma jurisdição pujante e que se assume com extremada complexidade, e que por isso atua para além da sua função originária de resolução dos conflitos. Daí que mais que nunca é preciso situar o processo no seu devido lugar, para que funcione como espécie de antídoto contra desvios e abusos, que vezes por outra despontam da atuação desse poder estatal, hoje normativamente suplementado. 

Inaceitável que ainda se trabalhe o processo a partir da mirada que o reduziu a mero serviçal da jurisdição na consecução dos seus escopos. É mérito da instrumentalidade do processo – uma “vertente tecnológica da jurisdição”, nas palavras de André Leal[16]  – o baralhamento entre poder (= jurisdição) e garantia (= processo), originando disso um efeito colateral perigosíssimo: a banalização do devido processo, em favor de uma atividade jurisdicional pretensamente mais célere, eficaz e justa, no fundo compromissada com o paradigma da filosofia da consciência,[17] que desdenha a legalidade e aposta todas as fichas na figura de um juiz procustiniano,[18] que tudo pode, tudo vê e tudo sabe.[19]

Enfim, a valorização da jurisdição, com a sua ingerência em uma diversidade de assuntos, implica rigorosas precauções para certificar que seu exercício não extrapole em arbitrariedades. E, sem dúvida, o processo traduz-se em instituição privilegiada para balizar e legitimar esse poder estatal. Mas processo encarado em toda a sua expressão, holisticamente, e não a partir de uma miragem atomizada ou em fatias, tampouco visto como instrumento de opressão a serviço do Estado.

É claro que se exige da autoridade jurisdicional respeito ao contraditório e à fundamentação, mas todo cuidado é pouco, sobretudo em tempos nos quais são alvo de supervalorização doutrinária, a fim de evitar a crença ingênua e equivocada na suficiência dessas duas garantias fundamentais para o atingimento de respostas jurisdicionais constitucionalmente adequadas. Outras frentes de luta merecem atenção, todas ligadas a substancialidade do processo, a essa rede de segurança contrajurisdicional cuja finalidade é a tutela das liberdades dos jurisdicionados.

De modo objetivo, e sem aprofundamento, seguem exemplos de pautas a demonstrar que nesse campo inexiste espaço para o comodismo:

i) é indispensável compreender os róis de impedimento e suspeição (CPC/2015, arts. 144 e 145) como não taxativos, admitindo-lhes interpretação extensiva para ajustá-los a todas as possibilidades de violação da garantia de imparcialidade;[20]

ii) a regulamentação da importante figura do assessor judicial é medida que se impõe, mormente para sujeitá-la aos deveres e incompatibilidades aplicados aos próprios juízes;[21]

iii) já é o momento de repensar a excessiva publicidade televisiva, atualmente atribuída às seções do Supremo Tribunal Federal, e ponderar sobre suas virtudes e, principalmente, seus pecados;

iv) é preciso que se positive uma minudente “regra geral de equalização processual”, em atenção ao fato de que “a igualação entre as partes se faz sempre aos cuidados da lei, jamais apesar dela”;[22]

v) a legalidade, garantia fundamental do cidadão (CF/88, art. 5o, II), exige a devida valorização para que seja contemplada, até em respeito a cláusula da separação de poderes, como limite de atuação do poder jurisdicional, admitida a sua superação somente em circunstâncias excepcionais (por exemplo, inconstitucionalidades) e devidamente fundamentadas[23] (cruzada contra o fetiche panprinciopiológico);

vi) merece combate ostensivo a teoria precedentalista, que diminui a importância da legalidade frente a padrões decisórios supostamente vinculativos e se propõe a confiar a tarefa interpretativa exclusivamente aos tribunais superiores (nominados por seus defensores de “Cortes de Vértices”). Juízes e tribunais de segundo piso, conforme tal proposta, teriam papel restrito à atividade de aplicação das teses elaboradas pelo “andar de cima” do Judiciário, pouco importando seu conteúdo, estejam elas corretas ou não;[24]

vii) é preciso fazer imperar, na praxe forense, a perspectiva teórica de que o processo traduz-se em instituição de garantia contrajurisdicional das liberdades do cidadão. Significa isso que aos litigantes é lícito operarem no cenário procedimental, segundo limites éticos e legais, a partir de suas próprias vontades e livres de coerções ou interferências de magistrados;[25]

viii) não se pode permitir a prática, ocorrente mesmo após a vigência do CPC/2015, da chamada jurisprudência defensiva, mecanismo utilizado pelos tribunais com a finalidade única de atingir eficiências quantitativas. Quer-se julgar com agilidade, limpar o estoque de recursos que chegam dia a dia aos tribunais, ainda que em prejuízo à qualidade (conteúdo) da tutela jurisdicional e à própria ampla defesa;[26]

ix) como já propunha o saudoso José Ignácio Botelho de Mesquita, é imperiosa a criação de regra impondo ao Estado, de forma explícita, a responsabilidade civil pelos prejuízos decorrentes da inobservância pelos juízes de prazos processuais, quando esta se deva à sobrecarga de trabalho ou a deficiências materiais ou de pessoal. Também é preciso criar regra estabelecendo o dever do Estado de indenizar prejuízos causados por decisão eivada de erro grosseiro, de direito ou de fato, ressalvado o direito de ação regressiva contra o juiz, mas apenas em caso de dolo. Afinal, “que interesse pode ter o Estado, no aperfeiçoamento da administração da justiça, se não responde pelas imperfeições dela?”[27]

Metaforicamente, o processo como garantia de garantias é um feixe de juncos: não há privilégio entre um ou outro de seus componentes (contraditório, ampla defesa, fundamentação e publicidade das decisões judiciais, igualdade entre as partes, cláusula do juiz natural e imparcialidade judicial, direitos a defesa técnica e a produção probatória), todos têm idêntica relevância, sendo o respeito pelo conjunto que assegura ao jurisdicionado o exercício pleno das suas liberdades positivas e negativas. Sozinha, qualquer garantia fundamental processual pode ser facilmente corrompida, alquebrada; mas quando combinadas, cada qual atuando em perfeição, o processo (= garantia contrajurisdicional de liberdade do cidadão) surge em sua plenitude, com envergadura para exercer a sua função de tutelar o indivíduo contra arbítrios e excessos decorrentes do exercício do poder estatal-jurisdicional.[28]

 

Notas e Referências

[1] Artigo publicado na obra “Processo e Liberdade” – Estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa”, Editora Thoth. Os autores fizeram acréscimos à versão original.

[2] Merece atenção a precisa lição de Eduardo José da Fonseca Costa: “O processo — porque elo dialogal — habita a zona friccional entre a sociedade e o Estado, entre os jurisdicionados e a jurisdição, entre as partes e o juiz. Não se é de estranhar, assim, que o processo seja uma instituição estabelecida pela CF-1988. (...) Uma exploração provisória do texto constitucional, já identifica a institucionalidade garantística como o “ser” do processo: processo é instituição de garantia, não de poder estatal; “instituição garantística a serviço dos jurisdicionados”, não “instrumento a serviço do Poder jurisdicional”; afinal, é tratado no título sobre direitos e garantias fundamentais [CF, Título II], não nos títulos sobre a organização do Estado [CF, Títulos III et seqs.]. Mas é possível ainda avançar mais: processo é instituição de garantia de liberdade (pois regulado no Capítulo I do Título II, que cuida dos direitos fundamentais de primeira geração), não de igualdade (que é vetor que regula o Capítulo II do Título II, que cuida dos direitos fundamentais de segunda geração); presta-se, enfim, a resguardar a liberdade das partes em relação ao Estado-juiz, não a igualdade entre elas” (COSTA. Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Consultor Jurídico, nov. 2016. Disponível em: <www.conjur.com.br>. Acesso em 17 set. 2018).

[3] Como leciona Calvinho, “el proceso (…) florece en los derechos del hombre como garantia humana que brinda a la democracia un método de debate pacifico y un límite al avance del poder sobre la persona.” (CALVINHO, Gustavo. El proceso con derechos humanos: método de debate y garantia frente al poder. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2011. p. 182).

[4] DELFINO, Lúcio. Como construir uma interpretação garantista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, p. 207-222, abr./jun. 2017. Não se despreze um pernicioso efeito colateral, decorrente do desdém ao ser constitucional do processo: a naturalização do ativismo judicial em atropelo à Constituição, esta última fonte irradiadora da legitimidade e ponto de partida para a compreensão de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Não raro, garantias fundamentais processuais acabam vitimadas, solapadas por essa visão fagocitária da jurisdição (= força fagocitária da jurisdição), que faz do processo um apêndice sem lá muita força e presteza.

[5] Sobre o tema: PEGINI. Adriana Regina Barcellos Pegini. Processo civil democrático: Humanização do acesso à justiça. Birigui/SP: Boreal, 2015, p. 171; DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando Fonseca. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Direito Processual, 82. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 229-254.

[6] DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando Fonseca. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Direito Processual, 82. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 229-254.

[7] DELFINO, Lúcio. SOUSA, Diego Crevelin. Empório do Direito. As associações de magistrados e o veto do NCPC no tocante ao contraditório e ao dever de fundamentação – o que está em jogo? Empório do Direito, março, 2015. Disponível: . Acessado: 05/11/2018.

[8] DELFINO, Lúcio. SOUSA, Diego Crevelin. Empório do Direito. As associações de magistrados e o veto do NCPC no tocante ao contraditório e ao dever de fundamentação – o que está em jogo? Empório do Direito, março, 2015. Disponível: . Acessado: 05/11/2018.

[9] DELFINO, Lúcio. SOUSA, Diego Crevelin. Empório do Direito. As associações de magistrados e o veto do NCPC no tocante ao contraditório e ao dever de fundamentação – o que está em jogo? Empório do Direito, março, 2015. Disponível: . Acessado: 05/11/2018.

[10] DELFINO, Lúcio. SOUSA, Diego Crevelin. Empório do Direito. As associações de magistrados e o veto do NCPC no tocante ao contraditório e ao dever de fundamentação – o que está em jogo? Empório do Direito, março, 2015. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 05/11/2018.

[11] FONSECA COSTA, Eduardo José. Empório do Direito. Notas para uma garantística. Empório do Direito, julho, 2018. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 05/11/2018.

[12] DELFINO, Lúcio. A paradoxal decisão por equidade no Estado Democrático de Direito: apontamentos sobre o “Relatório Paulo Teixeira”. PIMENTEL, Alexandre Freire et al (Coord.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2014, p. 235-255. V. 3.

[13] Sobre o tema, consultar o importante ensaio: FONSECA COSTA, Eduardo José da. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. Empório do Direito, abril, 2018. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 05/11/2018.

[14] Sobre o tema, consultar: SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: A crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 197.

[15] É antiga a lição de Castanheira Neves no sentido de que fato puro e puro direito nunca se encontram na vida jurídica. Enquanto o fato não tem existência, senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse, senão no momento em que se trata de aplicar o fato. Quando o jurista pensa o fato, o faz sempre como matéria de direito; quando reflete sobre o direito, está a pensar como forma destinada ao fato. (NEVES, Antonio Castanheira. Questão de-fato, questão de direito. O problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967. p. 586).

[16]O livro “Instrumentalidade do Processo em Crise”, de André Cordeiro Leal, deveria ser de leitura obrigatória em todas as faculdades de Direito do País, mas infelizmente é ainda muito pouco lido. Nele se observa, por exemplo, a maneira pela qual Oscar von Bülow, cujas ideias estão na base da teoria instrumentalista do processo, deu suporte ao paradigma do Estado Social, entendido como ente destinado a zelar pelo povo (comunidade vivente) e acomodar suas aspirações nacionais, com promessas de acatamento de seus valores, pouco importando os riscos às liberdades individuais. Afirma categoricamente que Bülow jamais poderia ser considerado, como muitos insistem, o fundador da ciência processual atual, mas sim quem inaugurou uma vertente tecnológica da jurisdição, como atividade do juiz. Vai além e expõe que toda a tentativa de elevar esse “processo”, impregnado da herança bülowiana, à condição de garantidor de direitos fundamentais, fracassa exatamente porque não poderia ser, ao mesmo tempo, instrumento do poder (de criação e do dizer o direito pelo juiz) e sua limitação eficaz – eis o paradoxo. (LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 64-65).

[17] Sobre a questão atinente aos paradigmas filosóficos, consultar: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[18] Procusto configura simbolicamente a tirania intelectual exercida por quem não tolera e nem admite ações e julgamentos alheios. É a ilustração do mal que hoje assola o imaginário de muitos juízes e que fortalece (e explica) o fenômeno da discricionariedade judicial. Fala-se em “Síndrome de Procusto” para retratar aquele que enxerga discrepâncias apenas no outro, razão pela qual precisa “moldá-lo” ou “adaptá-lo” às próprias medidas. O sujeito solipsista é o “olho que tudo vê” (exceto ele mesmo), detentor da “justa” medida (MENNA BARRETO, Ricardo. Do Leito de Procusto à discricionariedade judicial: as implicações do solipsismo filosófico para o direito e sua superação pela hermenêutica jurídica. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 445-470, jul./dez. 2011).

[19] DELFINO, Lúcio. A espetacularização do processo (Uma preleção em família). Empório do Direito, novembro, 2017. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 24/09/2018. Acessado: 05/11/2018.

[20]SOUSA, Diego Crevelin de; DELFINO, Lúcio. Levando a imparcialidade a sério: o (mau) exemplo da Súmula n. 252 do Supremo Tribunal Federal (e do art. 971, parágrafo único, do Código de Processo Civil). Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 26, n. 101, p. 49-69, jan./mar. 2018. Consultar, sobretudo, a obra seminal: FONSECA COSTA, Eduardo José da. Levando a imparcialidade a sério: Proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: Editora Juspodivim, 2018.

[21]FONSECA COSTA, Eduardo José da; DELFINO, Lúcio. Persiste a situação de desdém legislativo dos assessores judiciais. Revista Consultor Jurídico, março de 2015. Disponível: <www.conjur.com.br>. Acessado: 05/11/2018.

[22] A proposta é de Eduardo José da Fonseca Costa: FONSECA COSTA, Eduardo José da. A igualdade processual como problema normativo. Empório do Direito, maio de 2018. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 23/09/2018.

[23] Ensina Lenio Streck que são seis as hipóteses nas quais o órgão judicial deve deixar de aplicar a lei votada no Parlamento: i) se for inconstitucional; ii) se for possível uma interpretação conforme a Constituição; iii) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto; iv) se for o caso de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto; v) se se estiver em face de resolução de antinomias; e vi) quando do confronto entre regra e princípios (com as ressalvas hermenêuticas no que tange ao pamprincipiologismo) (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

[24]Por todos:STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica. O sentido da vinculação no CPC/2015. Salvador: Editora Juspodivm, 2018.

[25] Leciona Eduardo José da Fonseca Costa: “O processo garante à parte a liberdade [FREEDOM] de decidir pelo que entende e pelo que lhe convém no processo. Noutras palavras, tem o poder de autodeterminar-se por sua própria vontade e, a partir dela, escolher autonomamente os seus comportamentos no processo. Isso implica, dentre outras coisas: i) a liberdade de alegar fundamentos de fato; ii) a liberdade de alegar fundamentos de direito; iii) a liberdade de formular pedidos; iv) a liberdade de provar os fatos alegados como fundamento; v) a liberdade de indagar às testemunhas; vi) a liberdade de inquirir a parte contrária; vii) a liberdade de convencer o juiz; viii) a liberdade de impugnar. Todas essas escolhas, próprias à atividade de parte, se devem fazer sem qualquer interferência do juiz, i.e., com «liberdade» [LIBERTY]. O juiz não se intromete no exercício delas. Afinal, é alheio, não-parte, im-parte, impartial, imparcial, neutro. É iniciativa exclusiva da parte manejar os fatos, os fundamentos jurídicos, os pedidos, as provas, as indagações, as inquirições e as impugnações que lhe amparam a ação e a defesa. Nenhum aspecto desse manejo poder ser adicionado, alterado, suprimido, determinado, impedido ou punido pelo juiz.” (FONSECA COSTA, Eduardo José. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico. 16/11/2016. Disponível: . FONSECA COSTA, Eduardo José da. Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty]. Empório do Direito, agosto de 2018. Disponível: ). Acessado: 23/09/2018. Sobre o tema processo e liberdade, conferir também: BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. O princípio da liberdade na prestação jurisdicional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 66, p. 111-124, abr./jun. 1980. Consultar ainda: CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004.

[26] Veja-se, por exemplo, que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo, reiteradamente, pelo não conhecimento de agravo interno que não impugne todos os fundamentos da decisão atacada. Utiliza-se, como fundamentos, o §1odo art. 1.021 do CPC/2015 e a sua própria Súmula 182 (AgRg nos EAREsp 1206558/RS, Terceira Seção, rel. Min. Nefi Cordeiro, julgamento: 12/08/2018, disponível: ). Acontece que nem o enunciado sumular e tampouco o dispositivo legal conferem tal alcance à dialeticidade recursal, porquanto exigem apenas o ataque específico dos fundamentos da decisão atacada. Nem um nem outro trazem, em suas redações, a expressão “todos”. Ora, estranhíssima a imposição direcionada ao recorrente para que impugne até mesmo fundamento com o qual está de acordo, como se agravos parciais fossem uma anomalia, entendimento cuja justificativa encontra porto seguro no objetivo único de diminuição da carga de recursos nos tribunais superiores (jurisprudência defensiva).

[27]BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. O princípio da liberdade na prestação jurisdicional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 66, p. 111-124, abr./jun. 1980

[28]Confira-se, como ilustração, passagem extraída de outro texto escrito por um dos autores: “Doa a quem doer, mas na arena processual, vez ou outra, o adversário da parte não é apenas a contraparte, mas também o próprio julgador, que por olvidar seu papel de guardião da Constituição, arvora-se em posturas atentatórias ao devido processo legal: determina a produção oficiosa de provas, ameaça testemunhas, admoesta advogados a fim de impor sua autoridade, impede a produção probatória requerida por uma das partes, cria embaraços à publicidade processual, vira as costas solenemente para o contraditório substancial, nega aos litigantes o direito a decisões fundamentadas, não leva a sério a cláusula do juiz natural e seu dever de imparcialidade, despreza a presunção de inocência, autoriza buscas e apreensões coletivas, utiliza-se de prisões preventivas como técnica para a obtenção de delações premiadas, etc. Se teoricamente já abandonamos a velha dicotomia indivíduo versus Estado, o mesmo não se deu por completo na lida nua e cura da praxe forense.” (DELFINO, Lúcio. Como construir uma interpretação garantista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, p. 207-222, abr./jun. 2017).

 

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