Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
A partir da década de 1980 se vem propagando no Brasil a necessidade de uma divisão de trabalho entre as partes e o Estado-juiz (referência marcante em Barbosa Moreira).
De lá para cá, a ideia avançou com os olhos voltados para os brocardos iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi ius.
Em suas leituras até então consolidadas, aqui explicitadas em estreitíssimo resumo, era função processual das partes a inserção de alegações de fato e produção de provas, ao passo em que era função do juiz aplicar o direito aos fatos (ou melhor, às alegações de fato).
Atentando para o caráter problemático do direito, sem descurar dos avanços provenientes da filosofia, mormente pós-giro linguístico, a doutrina começa a divisar a necessidade de reinterpretar o contraditório, superando as garantias de informação e relação (bilateralidade de audiência) para incluir as garantias das partes de influência e o dever do Estado-juiz de não surpreendê-las e oferecer respostas, no que se convencionou chamar “dimensão forte do contraditório” – e, inexoravelmente, da fundamentação das decisões.
E os fatos, igualmente, são reconstruídos no interior do procedimento, com todos os limites legais inerentes (v.g. regras de exclusão probatória, o problema das falsas memórias etc.).
Todas as epistemologias processuais estão, se bem que cada a uma a seu modo, atentas a essas questões.
Valho-me dessas brevíssimas considerações iniciais para chamar a atenção para algo que, de ordinário, não é atentado tanto em nível dogmático, como, e principalmente, das práticas jurídicas.
Refiro-me ao depoimento pessoal, meio de prova regrado pelo CPC nos arts. 385 e ss.
Como é cediço, na intimação para prestar depoimento constará expressamente a advertência de que, se o depoente não comparecer, ou comparecendo, se recusar a responder, incidirá a cominação de presunção ficta, presumindo-se verdadeiros os fatos que com o depoimento se buscava provar (art. 385, § 1º, CPC). Para os fins de incidência dessa cominação, há recusa a responder quando o depoente silencia (art. 385, § 1º, CPC) ou quando responde com evasivas (art. 386, CPC).
Importante notar que a presença do depoente na audiência de instrução e julgamento tem a ver com o dever de comparecimento e com o ônus de depor. O dever de comparecimento surge com a intimação para a audiência. Porém, o ônus de depor só surge se na intimação constar expressamente a advertência do art. 385, § 1º, CPC. Então, feita a intimação sem a advertência, “o dever de comparecer subsiste, mas não o ônus de depor”[1], daí por que, nesse caso, é nula a aplicação da cominação[2]. E aí, o não comparecimento do depoente constitui ato atentatório à dignidade da justiça, apenável com multa (art. 77, IV e § 2º, CPC)[3]. Todavia, se a parte comparecer e, antes de iniciar o depoimento, o juiz adverti-la, na forma do art. 385, § 1º, CPC, estará sanado o defeito da intimação e ativado o ônus de depor, tornando lícita a sua aplicação em caso de recusa a depor[4].
Não se aplica a confissão ficta se a ausência do depoente for justificada. Nesse caso, a audiência será redesignada (art. 362, II, CPC)[5], e soa imprescindível exigir-se nova intimação, igualmente com a advertência do art. 385, § 1º, CPC.
Eis o ponto que se quer destacar: para a aplicação da cominação basta a advertência na intimação para depor ou se é necessário que o juiz a reitere no depoimento?
A razão de ser da pergunta repousa na necessidade de evitar que a aplicação da confissão ficta se dê de modo a surpreender as partes, ou melhor, o depoente.
Há quem defenda a necessidade de a advertência sempre ser reiterada no início do depoimento[6]. O posicionamento é louvável, eis que arrimado nos deveres de lealdade e de prevenção do juiz para com as partes. É de todo conveniente que ele assim o faça.
Não parece, contudo, possível dizer que se trata de um dever do juiz e um direito da parte esse novo aviso. Assim, não reiteração da advertência pelo juiz, quando do início dos trabalhos, não impede a aplicação da sanção se ficar caracterizada a recusa para depor. Assim, conquanto elogiável tal proceder, ele não é devido, ou seja, sua inobservância não é (ou pelo menos não sempre) causa de nulidade.
Nada obstante, há um caso em que essa nova advertência, feita na audiência, revela-se imprescindível, de sorte que não reiterá-la é causa de nulidade da decisão que aplicar a cominação.
Trata-se da hipótese em que o juiz a aplica em razão de entender que o depoente apresentou respostas evasivas[7].
Segundo aqui se entende, o juiz não pode aplicar a confissão ficta na sentença por entender que as respostas foram evasivas se, antes, ou, mais especificamente, durante o depoimento, não tiver advertido a parte dessa impressão. Em tal caso, sua decisão gera surpresa, sendo nula por violação do contraditório (art. 10, CPC).
O que contraindica a aplicação confissão ficta sem reiteração da advertência, feita durante o depoimento, é o fato de a hipótese de incidência (=respostas evasivas) assentar em conceito indeterminado, definível apenas no contexto concreto de uso.
Não se sabe, de antemão, o que é uma resposta evasiva. Diferentemente da ausência ou silêncio injustificados, cuja constatação é deveras simples e objetiva, a “resposta evasiva” é conceito eminentemente interpretativo, só apurável no caso concreto.
Deveras, a mesma resposta pode ser considerada satisfatória por alguém, mas furtiva por outrem. Dois juízes podem valorar diversamente a mesma resposta. E pior: a parte pode crer que sua fala é categórica, enquanto o magistrado a reputa evasiva. Circunstâncias socioculturais atuam fortemente nessas barreiras – quando não verdadeiros fossos – linguísticos entre sujeitos dotados de horizontes cognitivos diversos. Quem tem alguma experiência prática sabe, v.g., que quando o juiz toma o depoimento da testemunha leiga indagando se ela “tem interesse no resultado do processo”, o risco de os interlocutores – juiz e testemunha – interpretarem a indagação de modo completamente distinto é real e frequente. O sentido pode variar de pessoa para pessoa, portanto.
Diante dessas variações, de resto plenamente críveis, é intolerável que a aplicação da confissão ficta resulte de ruído de comunicação!
A transparência e a previsibilidade que norteiam os atos processuais impõem ao juiz que dialogue previamente com o depoente a fim de evitar surpresas por falhas dialogais.
Se o magistrado considera as respostas do depoente evasivas, ele tem o dever deve adverti-la dessa impressão, sinalizando que, a seguir por essa trilha, poderá sofrer a cominação. Aí sim, mantida a postura fugidia, será válida (e legítima) a aplicação da confissão ficta.
Essa nova advertência é imposta pela garantia de influência e proibição de decisão surpresa que decorrem do contraditório, donde emana o dever de prevenção do juiz com as partes.
Afinal, o juiz tem de informar a parte para permitir que reaja no sentido de esclarecer eventual mal entendido ou empreender melhor postura, assegurando influência na formação do provimento e evitando a surpresa de ter a cominação aplicada sem qualquer indicativo prévio e inequívoco de que o juiz reputava as respostas evasivas.
Destarte, se o juiz reputar evasivas as respostas do depoente, terá de adverti-la, na audiência, dessa impressão, reiterando a advertência do art. 385, § 1º, CPC, sob pena de nulidade da decisão que aplicar a cominação de confissão ficta.
O art. 386, CPC, lido apressadamente, não conduz a essa conclusão. Descabe aplicá-lo tábula rasa, porém. Como é apenas em concreto e de pessoa para pessoa que se tem por configurada a ideia de “respostas evasivas”, deve o juiz prevenir a parte de que suas respostas soam evasivas e que poderá aplicar a confissão ficta. Sem isso, ausente qualquer sinalização do juiz a esse respeito no curso do depoimento, é vedada a aplicação da sanção na sentença.
Apenas essa interpretação, conscienciosa da garantia do contraditório, salva da mácula da inconstitucionalidade a regra do art. 386, CPC.
Notas e Referências
[1] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. V.III. RT, 2015, p. 521.
[2] “A parte deve ser intimada pessoalmente, com expressa menção, no mandado, à pena de confissão ficta, sob pena de nulidade do ato que aplicar essa sanção” (DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. V.2. 10ª Ed. Jus Podivm, 2015, p. 150).
[3] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. V.III. RT, 2015, p. 519.
[4] É a correta solução proposta por Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart: “parece mais adequado compreender pela possibilidade de se tomar o depoimento da parte que comparece, atendendo à convocação judicial – ainda que do mandado não constasse a advertência legal –, desde que o julgador esclareça ao depoente as consequências de seu silêncio. O que não se pode admitir é que o juiz aplique a sanção de confissão ficta para o não comparecimento da parte se no mandado de intimação não havia a menção à aplicação desse sucedâneo” (Prova e Convicção. 3ª Ed. RT, 2015, p. 456).
[5] AMENDOEIRA JR, Sidnei. Depoimento Pessoal e Confissão no Novo CPC. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. V.5. Coord. Geral Fredie Didier Jr. Editora Jus Podivm, 2015, p. 696-697.
[6] “Comparecendo a juízo, a parte deverá ser qualificada e novamente cientificada de que sua recusa em depor implicará em pena de confissão”. (PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Curso de Direito Processual Civil. V.II. 2012, p. 245).
[7] Com efeito, na hipótese de recusa a depor não se exige nova advertência, porque qualquer pessoa sabe que não responder significa calar diante das perguntas. Assim, a parte que silencia aos questionamentos a si feitos não pode se dizer surpresa com a cominação de confesso adiante aplicada, caso o juiz não tenha reiterado a advertência antes de iniciar o depoimento. Bem por isso, eventual alegação de surpresa constitui comportamento contraditório lesivo à boa-fé objetiva (art. 5º, CPC/2015) e litigância de má-fé (art. 77, II, CPC). Claro, o juiz pode reiterar a advertência ao depoente silente, mas aqui não há dever.
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