32 ANOS: ENTRE O ABANDONO E A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO

17/10/2020

No último 5 de outubro a Constituição fez 32 anos. Muito embora ao longo de três décadas tenham sido escritos textos, artigos em jornais e revistas, bem como  organizadas coletâneas de especial relevância cientifica, a verdade é que há uma constante reflexão que coteja o texto original e o texto do presente, e um paralelo permanente entre as intenções constitucionais originárias e a Constituição reproduzida e vivida na nossa época.  

Uma das minhas primeiras experiencias como estudante de mestrado – estamos a falar de 1993 -  foi um cordial debate em sala na PUC/SP com um colega que lamentava o fato de que a Constituição tivesse o que ele chamava de “uma péssima redação”, especialmente pela “farta carga de direitos fundamentais exposta”, que “começam no artigo 5º, mas no mesmo artigo se repetem constantemente” e depois “tornam-se mais repetitivos ainda no Título VIII e em outros Títulos. Isso é um exagero!!!” dizia o companheiro de aulas e seminários. Eu contestava – atrevidamente, recém chegado ao Brasil, com a USP dizendo que deveria cursar um conjunto de matérias e na minha primeira disciplina de mestrado na PUC – que talvez o fato de que o país tivesse saído de uma ditadura militar justificara jurídica e politicamente essa opção por desenvolver um abanico de direitos tão generoso. Depois, eu me esforçava, num portunhol sofrível, por reforçar a ideia dizendo que o problema era nosso, porque cabia a nós estabelecer as conexões de sentido interpretando o texto. Eu estava recém começando a ler a obra do grande José Afonso da Silva, seu Curso de Direito Constitucional Positivo, numa edição na biblioteca do Térreo – a que leva o nome honroso e digno da Reitora Nadir Kfouri - , e na obra o professor explicava, já nas primeiras páginas, que esse amontoado de textos precisava fazer sentido, e que era essa, justamente, a tarefa do intérprete.      

Hoje penso que talvez esse tenha sido o primeiro episódio constatado de uma batalha de narrativas, que sempre me pareceu subjacente, mas que de um tempo a esta parte aflora escancaradamente, sobre a origem, características e propósitos da Constituição. Essas narrativas estão entreveradas pela chamada transição à democracia e por isso fazem referência ao passado que se projetou ao presente e á maneira como devemos firmar o cenário democrático e os direitos fundamentais.

Avançando no assunto, no âmago da questão me parece que razão assiste a Zagrebelsky no seu “Derecho dúctil”, quando defende que uma Constituição, ou como ele prefere, as “Constituições do pluralismo”, constituem uma plataforma de chegada e de partida para a comunidade política. De chegada porque representam o consenso do momento constituinte sobre o que nela deve constar, em termos de valores e fins; de partida porque determinam as regras do jogo para a disputa entre as diversas opções de governo. Fica claro que o Estado nasce com a Constituição, que os atores políticos e econômicos devem obediência as regras do jogo e que sua ação deve manifestar um compromisso com ela.

Entretanto, tenho a percepção de que no Brasil há quem otimistamente caracterize a Constituição de 1988 como o fim da passagem da ditadura à democracia e o triunfo irreversível do valioso consenso de 1988. A vitória de uma plataforma à qual todos manifestaram adesão. Se isto es assim, então haveria de se admitir que a Carta inaugurou um novo tempo, de democracia plena. Esta visão otimista certamente dá fôlego em momentos conturbados. No discurso tem um valor importante e serve de apoio pedagógico em alguns casos. Porém, as questões não são, nem tem sido, tão automáticas, simplesmente porque a Constituição não está fora do contexto nem à margem da luta dos atores sociais.

É dizer que, de alguma maneira, a Constituição e o Constitucionalismo brasileiro convivem com os traços do passado, simplesmente porque, apesar de ser um ponto de ruptura com a ditadura civil-militar e se constituir como uma aspiração de presente e de futuro a ser construído, os elementos do passado não desaparecem magicamente na linha da história. A construção do cenário constitucionalizado implica uma luta constante pela afirmação do Documento de 1988 e pela derrota definitiva dos fatores que impulsionaram o retrocesso de 1964 e outros, que aparecem contemporaneamente, infelizmente puxando retrocessos civilizatórios.

E nessa constante confrontação de atores sociais, econômicos, políticos, há polos, a lado e lado: há quem aceita as regras do jogo, e ainda mais, quem as defenda, e por isso fundamenta nela seus projetos, suas ações de governo, sua atuação cotidiana, qualquer que seja o âmbito, ainda que reconheçam as sequelas inegáveis do passado e, desde logo, consequentemente com esse pensar, se posicionem contrariamente às interpretações jurídicas que vez por vez aparecem para nos lembrar que há quem ainda não se conforme com “tantos direitos fundamentais” ; e há quem nega o projeto de 1988, quem o contesta, quem quer fazer a sua própria Constituição abandonando as regras do jogo e claro, sua narrativa sobre a ditadura é a de que “nem foi tanto assim”, foi mais uma “ditablanda”, e na verdade, nem ditadura foi, foi uma “revolução”, da qual deveria o povo brasileiro estar mais do que agradecido.

É claro que no meio desses polos há interpretações jurídicas, opções políticas, construções e raciocínios sobre a história, sobre o ser brasileiro, sobre democracia e cidadania, sobre Direito e direitos. Mas o que distingue e marca a diferença é o reconhecimento ou o abandono, ou seja, o respeito ou desrespeito, às regras do jogo. Também é claro quem o Brasil deu passos jurídicos importantes. Por exemplo, a ADPF  130, que determinou a inconstitucionalidade da lei de imprensa de 1967, relatada pelo Min. Ayres Britto. Porém, já comentamos em outro momento, em esta coluna, que em matéria de segurança pública a projeção do passado continua viva. Adicionemos uma questão bem atual, a necessidade de dar interpretação conforme à Constituição à lei de 1968 que estabelece a autonomia universitária, ainda que modificada por outros textos normativos até 1995.

Vale a pena observar, neste breve percurso pela linha da história, que alguns abandonos foram muito mais acelerados. Prestemos atenção ao seguinte: a Constituição apresentou e ainda tem um conteúdo dirigente, incitador de um grau de intervenção do Estado na economia, atrelado à necessidade de avançar na consolidação de uma estrutura destinada a concretizar tarefas e deveres próprios de um autêntico Estado Social de Direito.  Porém, no Brasil a tradição oligárquica e a fragilidade republicana – elites que nunca aceitaram as regras do jogo - junto às pressões para fazer ingressar o país, em condição desfavorável, numa globalização neoliberal regressiva, conduziu a um redirecionamento que levou a um sistema econômico cada vez mais tosco e descompromissado com os direitos sociais, convertidos aos poucos em mercadorias sujeitos à oferta e procura. 

É dizer, tanto a pressão externa para que o Brasil ingressara na roda do capitalismo internacional, abandonando critérios que passaram a ser chamados de estatistas, ideológicos e ultrapassados - como se o liberalismo não precisasse de Estado, não fosse corrente uma ideológica, e não fosse anterior ao Constitucionalismo social de começos do século XX – quanto as teses internas - que propalaram de forma perversa o crescimento econômico sem distribuição de renda, na filosofia já conhecida de que crescer significa concentrar renda, de que não se pode distribuir o que não existe e de que o correto é crescer primeiro e distribuir depois - geraram situação adversa.

Assim, por exemplo, a Emenda Constitucional nº 6 de 15.08.1995 alterou a redação do inciso IX do artigo 170 que dava tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte, e simplesmente revogou da Constituição Federal o artigo 171, retirando a possibilidade de que a lei determinasse benefícios para as empresas brasileiras de capital nacional que estavam vinculadas a atividades estratégicas e as preferencias para aquisição de bens e serviços.

A pergunta que resta é: foi compatível com o interesse nacional, em termos de economia e desenvolvimento, a dissolução do conceito de empresa brasileira de capital nacional, especialmente quando, por essa via, tentava-se criar as condições para fortalecer as atividades estratégicas e de desenvolvimento tecnológico com capital majoritariamente brasileiro e capacidade decisória ou foi, então e simplesmente, um abandono das regras do jogo de 1988?

A abertura neoliberal, nas condições impostas pela transnacionalização do capital,  se manifestou também no artigo 176, modificado para ampliar a “(...) brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras que tenha sua sede e administração no País” a pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica que pertencem à União. A reforma trouxe reflexos posteriores, nos investimentos nacionais e na remessa de lucros das empresas de origem estrangeira. Oras, o texto original dizia que a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” do artigo “(...) somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiro ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.   

Também a EC 9 DE 1975 teve uma repercussão importantíssima porque, como aponta Albino de Souza, procedeu à quebra do monopólio estatal do petróleo, que se realizou com referência ao monopólio da Petrobrás, a sociedade de economia mista criada pela Lei 2004 e pela qual a União atuava no setor: “Por esse processo, tão hábil quanto tortuoso, conservou-se o monopólio da União no sentido da propriedade sobre o recurso natural, mas abdicou-se do seu aproveitamento, abrindo- à concorrência com as empresas privadas, em setor cujo poderio e superioridade concorrencial lhes são indiscutíveis”. [1]

Veja-se que  § 1º do artigo 177, na origem, determinava que o monopólio da pesquisa e lavra de jazidas de petróleo, a refinação do petróleo, o transporte, a importação e exportação dos derivados incluía os riscos  e resultados decorrentes das atividades, sendo vedado à União ceder ou conceder participação em espécie ou valor, na exploração d jazidas de petróleo ou gás natural, com a ressalva do já disposto no artigo 20 § 4 da Carta. Hoje, com a Emenda de 1995, a União pode contratar com empresas estatais ou privadas a realização dessas atividades. Assim, embora se mantenha o monopólio da União sobre o recurso, a exclusão da Petrobras foi simultaneamente a abertura do mercado nacional às políticas das poucas grandes multinacionais e transnacionais do petróleo.

A EC Nº 40 de 2003, revogou todo o artigo 192 da Constituição., que tratava amplamente do Sistema Financeiro Nacional, ressaltando que sua estruturação era disposta para a finalidade de promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade.  O artigo previa a criação de lei complementar para determinar, conforme o inciso III, as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições financeiras, de seguro, previdência e capitalização, tendo em vista duas premissas de extrema importância; a) os interesses nacionais; b) os acordos internacionais.

A reinvenção da Constituição em todos estes artigos teve propósitos claros, predefinidos. Surge, por óbvio, uma outra indagação: a quem serviu esta desestruturação?

O que temos hoje, para encurtar, como resultado da relação entre economia, sociedade e direitos, após 32 anos, é uma simbiose entre a desatenção com o social - posto que na ótica de alguns que vociferam ainda contra a Ordem Económica de 1988, a Constituição não deve ser apenas a melhor garantia para o capital internacional, senão que deve ser também reduzida, retirando-se do seu interior a calibragem excessiva de direitos - com a necessidade de uma reforma política para um Estado de laboratório, disposto à medida da excepcionalidade que salva o capitalismo dos perigos ocasionados pelo dirigismo jurídico emancipatório. No fundo, uma versão do Estado de exceção que, como diz Paulo Arantes, não significa que o “Estado de Direito” saia de cena, porque as ditaduras convencionais são relíquias do tempo das chaminés.[2]  

A proibição de retrocesso dos direitos sociais, tão bem explicada por autores como W.C Rothenburg, passou a ser uma característica desconhecida e à margem da petrificação dos direitos fundamentais postulada pelo constituinte de 1988 no artigo 60,§ 4, IV, instituindo-se a “supremacia da vontade das partes na relação laboral” – uma amostra do sentido de classe das reformas que coloca de presente um neofeudalismo jurídico na esfera das relações de trabalho –. 

Finalmente, há de se lembrar a fuga da Constituição que implicou a promulgação da EC 95 de 16.12.2016, cujo efeito é a emergência permanente da efetividade do direito à educação e a saúde, ignorando taxas demográficas e gerando instabilidade jurídica e política. Seus impactos durante épocas de pandemia ainda estão por seres analisados.

Com as regras do jogo quebradas, quando aquelas não mais se prestaram para sustentar os propósitos elitistas e os compromissos para tornar o Brasil mais dependente, hoje despudoramente se traçam medidas para vigiar professores, se intervêm nas Universidades Públicas, se outorga licença com a linguagem violenta, velada ou aberta, ao racismo e à exclusão, e pretende-se uma reforma administrativa, que merece tratamento jurídico-crítico aparte.   

Sim, estes são tempos de acirrada luta nos planos mais determinantes da vida social –tempos de longo alcance porque, como diz certa letra de canção conhecida, “o futuro não é mais como era antigamente”. Tempos em que abrindo o jornal, confirmamos a predição de Galeano, quando escancarando as veias continentais dizia com fundadas razões que o Estado serve para três fins: para a repressão, para situar parentes em bons lugares e para se ocupar de empresas e bancos que estão na falência.

Desde aquele debate na PUC passaram-se mais de 30 anos, de agitada vida constitucional, e lamentavelmente a nossa época não é a melhor em termos de efetividade do projeto de 1988. Contudo, esse texto deve, merece e precisa ser defendido, porque contém ainda instrumentos para a democracia e a reconquista de direitos fundamentais. Isso implica, por supuesto, uma visão não contemplativa, senão de compromisso e ação para o respeito pelas regras do jogo e até para impulsar novos patamares civilizatórios, longe do cenário que os que nunca a aceitaram querem impor.    

 

 

Notas e Referências

[1] Albino de Souza. Washington Peluso. Ob. Cit. P. 546.

[2] O novo tempo do mundo. P. 318

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura